“Não haver um diagnóstico preciso e atual em torno dessa realidade afirma como se isso não fosse um problema. Jamais teremos ausência de estudos sobre mercado financeiro... O fato de não haver tanta preocupação estatal em qualificar essas informações só reitera o quão desimportante são esses meninos que estão fora da escola. É como se a gente já tivesse desistido dessas vidas”. A avaliação é do professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Grupo de Pesquisa de Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (Vieses), João Paulo Barros.
[SAIBAMAIS]Conforme ele, a partir do novo cenário de insegurança do Estado, um grupo de pesquisadores iniciará estudo sobre as repercussões psicossociais da violência urbana nas escolas.
“Esses jovens fora da escola são socialmente estigmatizados. Se, por um lado, o efeito psicológico é não reconhecer outras perspectivas de futuro fora da violência, por outro, esse jovem passa a ser visto como descartável, matável. Está fora da escola, faz escolhas erradas, não tem jeito. Então, sua morte não causa comoção social capaz de mudar a realidade”.
Na opinião do coordenador do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Rui Aguiar, também professor da Faculdade de Educação da UFC, a evasão e o abandono escolar são consequência também da desqualificação do currículo atual. “O currículo se adequa muito a um tipo de criança e de adolescente que sempre teve sucesso na escola, do infantil ao 6º ano. Depende de jovens que estudem dentro de condições ótimas. Aí, quando chega na adolescência, que não se adaptam, o processo de evasão tem início”, considera.
Ele pontua ainda a necessidade concreta de geração de renda para a família, que na maioria dos casos se concretiza em subempregos, como entregador de água e gás, lavador de carro… “Embora o Ceará tenha um grande número de aprendizagem remunerada, não chega a todos que precisam. Educação profissional, hoje, só é ofertada para quem concluiu o ensino fundamental. Por isso, é importante repensar o modelo de currículo, principalmente nas séries finais do ensino fundamental”.
Identidade, interação em grupo e autonomia. Esses são princípios perdidos quando um aluno não vai à escola porque não lhe é permitido esse acesso. Ele não pode ir e vir, não pode conviver com o grupo social dele e é obrigado a compartilhar de uma identidade que não o representa. “Mexe nos três fundamentos de desenvolvimento de um adolescente. A pergunta é: o que fazer para proteger as escolas da violência? Isso exige investimento grande na mudança curricular, com certa autonomia das instituições em relação à dinâmica da comunidade, com projetos pedagógicos que interpretem as necessidades da comunidade”, argumenta Rui Aguiar. (Sara Oliveira)
"O POVO vai descrever algumas histórias contadas por vozes de articuladores de órgãos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes que vivem em territórios de vulnerabilidade social de Fortaleza.
Os nomes das pessoas, das escolas e dos bairros não serão divulgados por motivos de segurança.
Os relatos são referentes aos anos de 2016 e 2017 e os casos específicos não foram questionados junto à as secretarias da Educação para que o anonimato das fontes fosse mantido.
“Em 2016, fizemos pedido de matrícula para mais de 100 crianças que moravam em um conjunto habitacional. Conseguimos matricular 83 em escolas longe, dialogando e pedindo transporte escolar. Continuamos recebendo denúncias de falta de vagas. Em 2017, visitamos algumas escolas para entender e nos deparamos com uma realidade diferente: em algumas escolas, que tinha casos de falta de vagas, tinha vagas sobrando. Se apresentou, então, um novo contexto de Fortaleza, que é de crianças que não conseguem ir à escola por causa da violência”.
“Recebemos relatos de que, em um dia de conflito, em uma única escola, 200 alunos deixaram de ir”.
“Numa escola, quatro turmas do ensino fundamental II foram fechadas porque os alunos faltavam”.
“Entre agosto e setembro do ano passado, tinha uma escola onde pelo menos 20 alunos não conseguiam atravessar por causa da questão do território”.
“O caso de um outro aluno, que precisou se mudar de território e nunca voltou para pegar a transferência e se matricular em outra escola” .
“Tínhamos um problema que era uma comunidade que a Prefeitura entregou as casas, mas não tinha escola. Aí providenciaram a alocação em outra escola, só que em um bairro de facção diferente. Um dia mandaram sair todas as crianças da creche ameaçando invadir, para colocar pânico mesmo. A Polícia veio. Tiraram as crianças e ficaram uns dias sem aula”.