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Feminismo.
Reportagem

Feminismo.

No ano em que Marielle Franco foi assassinada, mulheres capitanearam o #EleNão e a luta contra o assédio se fez grito em centenas de denúncias, o feminismo reafirmou sua força e urgência. Olhar para 2019 significa ser resistência e front por um modelo mais inclusivo de democracia
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O POVO: Para quem o feminismo fala e por que é tão importante falar sobre isso?

Antonia Pellegrino: O mundo, tal como é hoje, foi feito pelos homens e para os homens. Então (o feminismo) é um movimento de reivindicação por um lugar igual. Ninguém quer ser superior ao homem. É uma luta das mulheres, feita pelas mulheres, em parceria com os homens, pro bem de toda a sociedade. Você não pode mais falar em democracia sem falar de mulheres, negros, populações historicamente excluídas e consideradas minoritárias. Minoria do ponto de vista das relações de poder que estruturam a nossa sociedade. O feminismo é para homens, mulheres, jovens, para todo mundo. Porque propõe um modelo de democracia mais inclusivo.

 

OP: O feminismo tem lutado inclusive contra a chamada masculinidade tóxica, que impõe um padrão de comportamento para homens. Como isso se expressa?

Antonia Pellegrino: Primeira coisa nessa questão sobre masculinidade tóxica é dizer que não é todo homem que tem a masculinidade tóxica. Um homem ter comportamentos considerados tóxicos não significa que ele é tóxico 24 horas por dia. Eu acho essa discussão um pouco nociva e está sendo endereçada de uma maneira ruim para os homens. Acho que essa discussão não é do feminismo. Essa reflexão sobre masculinidade tóxica deveria ser mais colorada sobre o que os homens querem ser à luz do feminismo. Depois desses cinco anos mais expressivos de lutas feministas, onde a gente deu um salto quântico na forma como a gente se vê, agora tá na hora dos homens também fazerem o trabalho deles de repensar, entender quais são os comportamentos que fazem mal a eles e às mulheres. Nas relações de trabalho, em tudo. Então acho que não me cabe muito essa discussão.

 

OP: O ano começou com a trágica notícia do assassinato da vereadora Marielle Franco, com quem você conviveu. Como esse fato repercutiu na luta feminista?

Antonia Pellegrino: Eu acho que essa tragédia, essa morte muito prematura de uma mulher que tinha uma carreira e representava muitas mulheres... A Marielle é muitas. Ela é negra, favelada, periférica, filha, lésbica. Ela abarca na figura dela muitas mulheres. E acho que a morte dela representou assim tudo o que a gente não pode mais. A gente não pode mais perder mulheres assim. A gente não pode mais ter uma democracia que não inclua esse tipo de mulher protagonizando os debates da política. A gente não pode mais não estar nesses espaços da política. Isso direcionou múltiplos feminismos pros espaços de disputa de poder. Catalisou muito uma urgência de disputar o poder. A gente conseguiu uma bancada federal com aumento de 50%. No Rio de Janeiro foram eleitas três mulheres negras na Assembleia Legislativa. A morte dela produziu muitas sementes e acabou sendo muito potente. Antes de qualquer coisa, a gente preferia estar com ela, óbvio. O fato é que essa tragédia potencializou e unificou uma disputa em um certo sentido.

 

OP: Além da pouca representatividade, vemos que ainda é escassa a agenda feminista nos espaços de poder. Como você avalia o resultado eleitoral?

Antonia Pellegrino: Como em toda eleição, o resultado não nos deixa nem um pouco otimistas. Mas, pro nosso campo, eu acho que sim. A gente teve aumento de 50% da nossa bancada de mulheres. O que não significa que sejam todas mulheres dentro de uma agenda de direitos de mulheres, porque aí é outra discussão. Pra mim não faz diferença nenhuma eleger uma mulher pelo fato de ser mulher. Quero eleger mulheres que defendam uma agenda de mulheres, uma agenda mais inclusiva. Esse é o eixo. Entre votar numa mulher que não defende isso e votar num homem que defende isso, eu vou votar no homem. Porque a questão é a agenda. É claro que prefiro que essa agenda seja tocada por mulheres, mas não sendo... Agora a gente não só ampliou, como acredito que também qualificou. Foram eleitas mulheres como a Tábata (Amaral, do PDT de São Paulo), a Talíria (Petrone, do Psol do Rio), que são mulheres dentro de uma agenda feminista. É uma construção. E a gente parte de um patamar muito baixo, né? Então acho que a gente tem que comemorar sim. Ampliar 50% é uma vitória.

 

OP: Como você avalia a mobilização feminina pelo #EleNão, na campanha presidencial?

Antonia Pellegrino: Eu acho que as mulheres têm a imaginação política do futuro possível. E acho que eles entenderam a força que a gente tinha, talvez tenham entendido melhor do que nós mesmas. E criaram uma contranarrativa ao #EleNão que foi repleta de fake news, uma narrativa poderosa pra galvanizar um certo conservadorismo inclusive de mulheres em torno do candidato eleito. Agora não é à toa que dedicaram tantos esforços. O #EleNão foi muito forte, muito potente. E, passada essa ressaca da eleição, ao virar o ano, a gente tem que se apropriar, retomar essa força e entender que a gente, óbvio, tá na resistência, mas muito mais do que isso. A gente tá num front pra imaginar um outro país e propor um outro projeto, muito mais democrático e inclusivo.

 

OP: Agora em dezembro vieram à tona as denúncias contra o médium João de Deus. E houve a tentativa de silenciar o relato de centenas de mulheres. O que ainda emperra a luta contra o assédio?

Antonia Pellegrino: Eu acho que o que emperra é um certo imaginário que é contra as mulheres, contra as vítimas. A gente tem que dar credibilidade às vítimas. 330 mulheres não inventam tantos relatos. Só que precisaram 330 mulheres fazer esses relatos pra esse cara ser preso. Então, olha o tamanho do poder dele, das relações de poder em torno dele. Quando a gente consegue se unir pra fazer denúncias é forte. As dificuldades maiores estão nas pequenas denúncias, quando uma mulher que denuncia uma pessoa, um cara. É sempre muito difícil, porque é um massacre. Remete a centenas de medos, as pessoas perseguem, ameaçam. Então é um ambiente muito tóxico para as mulheres, mas a gente tenta.

 

OP: Diante de tudo o que aprendemos ao longo de 2018, como as mulheres devem olhar para 2019?

Antonia Pellegrino: Eu acho que a gente deve entrar em 2019 entendendo que nós fomos uma força decisiva na eleição. A gente tem que ter consciência desse nosso poder e usar esse poder ainda mais a nosso favor. Segunda coisa, eu acho que a gente tem um desafio de comunicação e de conversa. A gente ficou nesse ciclo de 2016 a 2018 voltadas pra nós mesmas. Pela primeira vez, a gente tava falando, se ouvindo, compartilhando experiências e isso foi muito saudável e muito potente. Acho que agora é hora de olhar pra fora, de dialogar com os homens, dialogar mais, expandir o nosso movimento. Entender que ele é estrutural na sociedade. Ele não é um movimento pelas mulheres. Ele é um movimento pela sociedade. E pra isso a gente precisa ter a sociedade com a gente. Não adianta ser um movimento apenas de mulheres.

 

ANTONIA PELLEGRINO. ESCRITORA

Entre as vozes que atualmente expressam de forma ativa o feminismo no Brasil, está a de Antonia, escritora e roteirista, formada em Ciências Sociais, mestre em Letras pela PUC-RJ, premiada pela Academia Brasileira de Letras e Academia do Cinema Brasileiro. É curadora do blog "Agora é que são elas", abrindo debates em torno de causas da agenda feminista, como equidade de direitos, combate à violência contra a mulher e luta contra o assédio.

 

 

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