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Ideologia de gênero.
Reportagem

Ideologia de gênero.

Em torno desta expressão, dão-se embates, inclusive semânticos. Há os que nela vêm uma estratégia para desconstruir a família. E há os que garantem que tal alarde não passa de ardil para perpetuar preconceitos. Afinal, do que se trata este tema que assusta tanto?
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O POVO - Nunca se falou tanto em Ideologia de Gênero quanto ao longo deste ano. O senhor poderia definir o que é Ideologia de Gênero?

Contardo Calligaris - A Ideologia de Gênero é o que pensam as pessoas sobre o gênero, por razões que não têm nada a ver com as evidências empíricas nem com os achados científicos a respeito. Como sempre, ideologia é o que as pessoas pensam a partir da posição que ocupam no tecido social, independentemente do que a Ciência e a Empiria dizem. Então, Ideologia de Gênero é a conversa de quem diz que só existem dois gêneros, que a divisão de gênero é binária, que cada um tem o gênero que lhe é dado quando nasce, à vista de seus órgãos genitais. O que é uma bobagem, do ponto de vista da ciência de qualquer área. Curiosamente, o termo Ideologia de Gênero foi inventado pela Igreja Católica para atacar, não se sabe bem em nome de quem, as pessoas (cientistas, biólogos, geneticistas, endocrinólogos, psicólogos e psiquiatras) que começaram a se dar conta de que o gênero era uma questão muito mais complexa do que parecia à primeira vista. Estamos num momento em que é fácil ler no jornal ataques à Ideologia de Gênero, geralmente feitos por pastores, ataques como se os cientistas e cia estivessem promovendo, por alguma razão misteriosa, a complexidade do gênero. Mas, na verdade, para qualquer um que tenha um pouco de cultura, Ideologia de Gênero só pode querer dizer que são os pensamentos sobre gênero das pessoas que não acreditam na Ciência ou nos dados empíricos, e que, portanto, têm ideias sobre gênero a partir de suas crenças pessoais, sejam elas políticas ou religiosas, e que eles impõem e querem impor aos outros.

 

OP - Este conceito é quase às avessas do que essas pessoas religiosas costumam apresentar como Ideologia de Gênero.

Contardo - Sim, completamente às avessas. Qualquer pessoa que tenha o mínimo de sanidade mental e que trabalhe, como eu trabalho, por exemplo, com adolescentes transgêneros ou intersexo, sabe que isso é de uma complexidade tamanha! Trabalho junto com psiquiatras, endocrinologistas, e para todos nós isso é de uma dificuldade muito grande! E a gente trabalha no respeito a essas pessoas, evitando tratá-las como a Medicina tratou durante muito tempo, ou seja, tomando decisões por conta delas, sem se dar conta de qual realmente é o problema. Passo a minha tarde encontrando alguém que, por exemplo, tem vulva e vagina, mas em vez dos ovários tem testículos. Para depois ouvir uma figura tosca, em nome de não sei qual referência religiosa, de um Deus que eu não consigo entender quem é, que na verdade só há dois gêneros? Então, se o Deus dos qual eles falam tinha realmente a intenção de criar só dois gêneros ele tem um sério problema de controle de qualidade. Se fabricasse carros, ele já teria fechado! Porque existem dezenas de condições diferentes, psicológicas, sociológicas, genéticas e hormonais, onde realmente decidir qual é o gênero de um sujeito é praticamente impossível.

 

OP - Por que este tema ainda enfrenta tanta resistência?

Contardo - O que acontece é que quando você tenta explicar isso para a maioria das pessoas que não sofrem deste transtorno, elas têm um entendimento profundamente errado. Elas entendem como se fosse algo de fantasia sexual. Como elas mesmas têm fantasias sexuais sobre mudança de sexo... Acredite, a maioria dos homens tem fantasia de como seria ser possuído como uma mulher. Esta é uma fantasia masculina corriqueira. Como todo mundo a tem, então quando escuta um homem dizer: "Tenho transtorno de gênero, minha identidade é feminina", eles acham que o cara está sofrendo de um excesso de lubricidade, de 'sem-vergonhice', e o que ele está querendo é viver a fantasia de ser possuído passivamente. Não tem absolutamente nada a ver! O problema de gênero não tem nada a ver com fantasia sexual. Então, a complexidade do gênero e da sua relação sexual realmente está muitos quilômetros acima da maioria dos boçais que falam de Ideologia de Gênero. Gênero é uma coisa incerta, complexa e um lugar de grande sofrimento para um monte de gente.

 

OP - Por que esta questão se tornou tão relevante para a sociedade brasileira nos últimos tempos?

Contardo - Provavelmente porque ela passou a fazer parte de uma espécie de onda moralista, que não é só brasileira, é mundial. Como sempre, as ondas moralistas são construídas em cima das dificuldades que as pessoas têm para controlar suas próprias fantasias, seus próprios impulsos. Eu vou explicar para que fique claro. Quando você tem uma onda moralista do tipo: "Não podemos falar de homossexualidade nas escolas"; "Não podemos falar de gênero nas escolas". Por que não podemos? Por que surge esse discurso moralista? Porque as pessoas estão engajadas numa tremenda campanha para controlar seus próprios desejos, seus próprios impulsos. E elas só conseguem mais ou menos. Como conseguem mais menos do que mais, o remédio é proibir aos outros o que elas acham que não conseguem controlar em si mesmas. Então, se eu tenho, por exemplo, a fantasia de sair e ser estuprado por três machões, se eu não consigo voltar para casa sem parar na rua e pedir para uma travesti me possuir... Não estou falando de coisas raras, falo de coisas realmente frequentes. Tem muitos pais de família que vão para a missa todos os domingos e que buscam travestis quando saem da igreja. Se eu não consigo reprimir essas fantasias em mim, o que eu posso fazer para ter a ilusão de controlá-las é proibi-la nos outros. Dizer "O transgênero não pode existir".

 

OP - Para os que combatem enfaticamente a chamada "Ideologia de Gênero" qual é a ameaça que ela representa?

Contardo - É uma ameaça interna, não é externa. É totalmente interna no sentido que a ameaça está nas fantasias que eles alimentam e que sequer confessam para si mesmos. A ameaça está do lado da fantasia sexual deles, porque realmente como ameaça social é zero.

 

OP - O senhor poderia me apontar o que seria o contraponto dessa 'Ideologia de Gênero de Botequim', como o senhor classifica?

Contardo - Para a Biologia e a Psicologia, na verdade, não há dois gêneros. Há um leque de gêneros possíveis entre dois extremos, dificilmente realizados, que são o masculino e o feminino. Ou seja, o gênero não é uma problemática binária. E eu acharia maravilhoso um mundo onde mesmo as pessoas que não conseguem conviver com o gênero do seu corpo, as pessoas que têm transtorno de identidade de gênero, pudessem viver assim como são, sabe? Existem muitos lugares possíveis para se ocupar no espectro de gêneros. Lugares que deveriam ser possíveis de ocupar na vida, na sexualidade, nos afetos e na vida da cidade. Porque os gêneros são mais que dois.

 

CONTARDO CALLIGARIS. ESCRITOR

Contardo Calligaris é escritor, psicanalista, psicoterapeuta e dramaturgo
italiano radicado no Brasil. Formou-se na Suíça e na França e deu aulas
em universidades nos Estados Unidos. Publicou mais de dez livros. Um os
principais eixos de seu trabalho é “conduzir as pessoas à refl exão sobre a
existência humana, contribuindo para amenizar as angústias causadas pelos
desafi os contemporâneos e pelo confronto com o outro, que pode limitar
prazeres e contradizer certezas e seguranças”.

 

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