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Sonhos interrompidos: dez jovens atletas morrem em incêncio no CT do Flamengo
Reportagem

Sonhos interrompidos: dez jovens atletas morrem em incêncio no CT do Flamengo

Dez adolescentes morreram e três saíram feridos em tragédia na madrugada da última sexta-feira. Causas e responsabilidades serão investigadas
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Familiares e torcedores homenagearam as vítimas no CT do Flamengo, em fevereiro de 2019 (Foto: CARL DE SOUZA/AFP)
Foto: CARL DE SOUZA/AFP Familiares e torcedores homenagearam as vítimas no CT do Flamengo, em fevereiro de 2019

Nas fotos, sorrisos estampam rostos pueris. De 14, 15, 16 anos, com origem em cidades a muitos quilômetros do Rio de Janeiro, todos tateando um sonho. A brincadeira de criança, o talento descoberto com a bola nos pés, a miragem de ser jogador de futebol em grande clube, foram interrompidos quando o caminho já não parecia tão longo. Dez sonhos foram abreviados.

Era 5h17min, quando o quartel do Corpo de Bombeiros recebeu o chamado: as labaredas lambiam o alojamento dos jogadores de categorias de base do Flamengo, no Centro de Treinamento George Helal - conhecido como Ninho do Urubu -, no bairro Vargem Grande, no Rio de Janeiro. Dormiam 26 garotos no alojamento. Metade deles não conseguiu sair fisicamente ilesa à tragédia. Ninguém deverá esquecer.

O maior desastre da história do Flamengo e o segundo maior do futebol brasileiro - atrás somente da queda do avião da Chapecoense, que vitimou 71 pessoas, em 2016 -, deixou, além dos dez mortos, três feridos.

Jonatha Cruz Ventura, capixaba de 15 anos, está em estado grave, com cerca de 30% do corpo queimado. Os cearenses Cauan Emanuel Gomes Nunes, 14, e Francisco Dyogo Bento Alves, 15, também estão entre os sobreviventes. Eles foram resgatados com vida, medicados, e devem ser liberados ainda hoje, conforme boletim médico liberado pelo clube ontem.

Conforme o vice-governador do Rio, Claudio Castro, os bombeiros chegaram cerca de 20 minutos após o chamado e às 6h20min o fogo estava controlado. O incêndio começou quando todos dormiam. Um dos sobreviventes, Samuel Barbosa, 16, publicou nas redes sociais que acordou com a fumaça e só teve tempo de chamar um amigo e fugir.

"A maioria não conseguiu porque a quantidade de fogo era muita. E aconteceu que o ar-condicionado pegou fogo, daí foi gerando um curto-circuito em todos os ares-condicionados. Foi pegando em tudo. E foi muito rápido. Não deu para conseguir chamar quase ninguém", disse Samuel. O alojamento estava instalado em contêineres e deveria, com a recente reforma do CT - ao custo de R$ 23 mi -, ser transferido para novas instalações em breve.

Samuel Macua, 17, atleta cearense que esteve por seis meses na estrutura, em 2017, quando jogou no time de base do Flamengo e conviveu com alguns dos adolescentes mortos na tragédia de ontem, relembra que o espaço não era motivo de reclamação dos jovens atletas. "Todo quarto tinha janela e ar-condicionado. A gente só falava mesmo do chão, que fazia muita zoada. Mas ninguém achava ruim, a gente estava ali vivendo um sonho de tentar ser profissional num time grande", lembra.

Cobrindo a rotina do Flamengo há quase dois anos, o jornalista Venê Casagrande, repórter no site Coluna Flamengo, comenta a aura de tristeza que tomou o dia de ontem. "Entrevistei um segurança que estava de plantão, e ele ajudou a resgatar dois meninos. A tragédia poderia ser ainda maior. É um dia muito triste".

O governo do Rio de Janeiro decretou luto de três dias em homenagem às vítimas do incêndio. O presidente da República, Jair Bolsonaro, prestou, em nota, condolências às famílias das vítimas. "Certamente essa é a maior tragédia pela qual o clube já passou nos 123 anos de sua existência, com a perda dessas pessoas", resumiu o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim. O dirigente declarou que o clube "não medirá esforços para minimizar a dor e o sofrimento das famílias". Zico, Pelé, Neymar, Diego - atleta do time principal do Flamengo, jogadores que passaram pelo time de base do rubro-negro - como Lucas Paquetá, Vinicius Jr., Felipe Vizeu -, e times do Rio de Janeiro e País prestaram homenagens e demonstraram pesar com o desastre.

A Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro cancelou toda a rodada do Campeonato Carioca. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) determinou que todas as partidas organizadas terão, na próxima rodada, um minuto de silêncio como gesto de homenagem às vítimas. (Com agências)

 

Dyogo, jovem goleiro cearense, sobrevivente do desastre no Ninho do Urubu
Dyogo, jovem goleiro cearense, sobrevivente do desastre no Ninho do Urubu

Dois dos três sobreviventes feridos na tragédia são cearenses

Garotos nascidos e criados nos bairros Dias Macêdo e Mondubim, em Fortaleza, são dois dos três feridos que conseguiram sobreviver à tragédia no Ninho do Urubu, Centro de Treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro. Há quase dois anos vivendo nos alojamentos do clube carioca, o goleiro Dyogo Alves, de 15 anos, e o atacante Cauan Gomes, 14, viveram na madrugada de ontem o pior e mais traumático momento das curtas trajetórias em busca do sonho de se tornar jogador profissional de futebol.

Ambos têm estados de saúde estáveis e devem receber alta ainda hoje. Os dois inalaram fumaça durante o incêndio e foram socorridos em hospital municipal do Rio de Janeiro, sendo transferidos em seguida para unidade particular, com assistência do Flamengo. O goleiro Dyogo também teve queimaduras nas mãos.

Com passagens compradas pelo clube carioca, os pais dos garotos viajaram ontem à tarde de Fortaleza para o Rio, onde encontraram os filhos cerca de 15 horas após a tragédia. Pai do goleiro Dyogo, o representante de vendas Francisco José, 52, tomava o café da manhã, quando soube do incêndio pelo grupo da família no aplicativo WhatsApp. "O impacto foi muito grande", diz Francisco, que teve dificuldades para ter informações concretas.

Ao saber do ocorrido, ele passou a fazer ligações em busca de notícias sobre o filho. Apenas após duas horas, Francisco recebeu as primeiras confirmações, repassadas por uma assistente social do Flamengo, de que o Dyogo havia sido socorrido. Na sequência, outro funcionário do clube informou que o adolescente passava bem. "Continuei aflito. Só depois consegui falar com ele, por telefone. Ele me ligou com a voz um pouco rouca, tinha inalado fumaça e teve queimaduras nas mãos".

Dentro da aeronave, o porteiro Jonh Emanuel, 37, pai do atacante Cauan, conversou rapidamente por telefone com O POVO, às 16 horas, antes da decolagem. Até aquele momento, ele ainda não havia tido contato diretamente com o filho, mas já fora informado de que o jovem estava bem. O garoto de 14 anos chegou a quebrar janelas para tentar salvar colegas no incêndio.

Dyogo e Cauan foram levados para o Flamengo por intermédio de um grupo de empresários, entre eles o atacante Osvaldo, ex-Fortaleza, Ceará e São Paulo, que agencia a carreira de jogadores de futebol.

Destaque no time de futsal do Fortaleza, Cauan foi levado para uma "peneirada" no Flamengo, com 400 garotos. Ele foi o único que passou no teste.

Ex-treinador de Cauan, William Júnior, 36, destaca o potencial do rapaz. "É joia rara, tem um futuro gigante. No momento que vi o Cauan, vi um profissional na minha frente. Tenho contato com ele até hoje".

Nas conversas com o futuro atleta, William diz que o garoto nunca reclamou de estrutura, apenas da saudade dos amigos e familiares. "Ele falava que queria voltar. Eu dizia: 'Cauan, o futuro é aí. Você já está aí'. Mas ele aguentou", ressalta.

O goleiro Dyogo atuava no futebol de campo pelo Estação - modesto clube de base com sede no Antônio Bezerra -, antes de se transferir para o Flamengo. Depois de ser destaque e campeão do Campeonato Cearense Sub-13 em 2017, o arqueiro foi levado para vestir a camisa rubro-negra sem precisar participar de "peneirada".

"Na realidade, sempre ele quis ser jogador de futebol. Vários clubes do Brasil assediaram ele - Fluminense, Figueirense, Ceará, Sport e Uniclinic. Eu não pensava que ele ia chegar tão longe, de ser desejado por um time como o Flamengo", diz o pai de Dyogo, que chegou a treinar o próprio filho em seu projeto social.

Sem alvará, CT acumula 30 autos de infração

Sem alvará de funcionamento para um dormitório, num espaço em que somente poderia funcionar um estacionamento, conforme nota da Prefeitura do Rio de Janeiro, o alojamento das categorias de base do Flamengo - alvo de incêndio ontem -, era composto por seis contêineres interligados. O Município informou que, por não possuir alvará de funcionamento, a Secretaria de Fazenda lavrou quase 30 autos de infração contra o clube em pouco mais de um ano.

Em nota, a prefeitura do Rio informou que a licença do Centro de Treinamento (CT) tem validade até 8 de março, mas o alojamento não consta como área edificada no projeto que foi autorizado em 5 de abril do ano passado. Na área de alvará de funcionamento, a Prefeitura indica que há registro de pedido em setembro de 2017. A consulta prévia foi deferida pelo Município, "mas o certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros não foi apresentado, portanto, o alvará não foi concedido". Por isso, a gestão municipal determinou "abertura de processo de investigação para apurar as responsabilidades". O Ministério Público do Trabalho anunciou força-tarefa de procuradores paras os mesmos fins, e não descarta pedido de bloqueio de bens do Flamengo para garantir pagamento de indenizações para sobreviventes e familiares dos mortos na tragédia.

Também por meio de nota, o Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro informou que o CT está em processo de regularização dos documentos junto à corporação e ainda não possui o Certificado de Aprovação. A falta de documentação, conforme o comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro e Secretário de Defesa Civil, Roberto Robadey, "implica até que não havia segurança".

Em 30 de novembro de 2018, o Flamengo inaugurou o módulo profissional do Ninho do Urubu. Com este espaço, todas as outras categorias seriam remanejadas e o sub-15 deixaria os contêineres a partir da próxima semana. A perícia, concluída pela Polícia Civil, trabalha com hipótese de curto-circuito em um dos aparelhos de ar-condicionado.

O Rio foi atingido, na última quinta-feira, 7, por tempestade de grandes proporções. As precipitações podem ter contribuído para o quadro de fatores que levou ao desastre, conforme Heitor Luis Albuquerque Barbosa, engenheiro de Segurança do Trabalho do Centro Integrado de Prevenção de Acidentes, da Prefeitura de Fortaleza. "A chuva pode ter inundado e comprometido as instalações elétricas. Faltaram aspectos preventivos, como um sistema para evitar raios, plano de manutenção corretiva e preventiva das instalações elétricas, ter pessoas treinadas e materiais para o combate imediato ao incêndio. Ao que me parece, nem mesmo tinha extintor. Houve negligência", apontou.

Acúmulo de poeira que se impregna no ar-condicionado e até mesmo falhas na placa eletrônica podem causar a combustão de aparelhos, como explica o professor do curso de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral, André Lima. Ele ainda indica que a "fumaça dos colchões é muito tóxica e o gás carbônico liberado causa entorpecimento e desmaio, ainda mais em ambiente fechado, como devia ser o dos contêineres".

Análise: o Brasil é o país das tragédias anunciadas

No lamentável país das tragédias anunciadas e acumuladas, onde os responsáveis - por dolo ou culpa - jamais são punidos, mas dão entrevistas como se vítimas do acaso fossem, dez adolescentes perderam a vida na madrugada de ontem no Centro de Treinamento do Flamengo, além de três feridos, dois cearenses.

Não se espera outra atitude das autoridades a não ser uma profunda e ampla investigação de responsabilidades, afinal, os jogadores das categorias de base de diversos lugares do Brasil estavam em área precária, muito diferente do luxuoso local para os profissionais, com investimento de R$ 23 milhões, inaugurado no fim do ano passado.

O chefe da Defesa Civil do Rio de Janeiro, coronel Roberto Robadey, afirmou para a rádio CBN que a planta de alojamento tinha irregularidades. Há inquérito aberto na 42ª Delegacia Policial do Recreio dos Bandeirantes para apuração, inclusive sobre a existência ou não de alvará para construção dos alojamentos em área de estacionamento.

Meninos morreram, famílias estão destroçadas. A tristeza é profunda e respostas são necessárias - sem protecionismo, sem corporativismo ou sentimentos de paixão típicos do futebol. Até porque nenhuma das manifestações de solidariedade vai minimizar a terrível situação que poderia ser evitada.

LEIA MAIS

A situação atual dos alojamentos das categorias de base de Ceará e Fortaleza. Esportes, página 24

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