Atualizada e corrigida às 17h50min
A insegurança para mulheres em Jericoacoara fez com que um grupo de 23 trabalhadoras criasse de maneira urgente, no aplicativo de mensagens WhatsApp, o Grupo Carona Segura Preá-Jeri. O alerta para a necessidade de uma rede colaborativa de transporte surgiu após registros de estupros e relatos silenciosos de vítimas atacadas, principalmente à noite, na rota Jeri-Preá.
Somente nos seis primeiros meses deste ano, foram 76 estupros entre Cruz, Jijoca de Jericoacoara e mais 19 municípios que formam a Área Integrada de Segurança 17 da Secretaria da Segurança Pública do Ceará (SSPDS).
Entre Cruz e Jericoacoara foram 9 casos registrados de janeiro a junho de 2019, segundo a SSPDS. Municípios onde estão localizados o Aeroporto Regional de Jericoacoara (Cruz) e o destino turístico internacional mais midiático do litoral do Ceará, distante 299,1 km de Fortaleza.
O cenário é grave já que em igual período de 2018 foram 84 registros na mesma região. A continuar assim, a tendência é que a quantidade de casos deste ano ultrapasse o número de estupros do ano passado.
Celi Alexandrino, advogada mineira que trocou Paris por Jericoacoara e abriu um escritório no distrito vizinho de Preá (Cruz), acompanhou duas dessas vítimas. “Eram pessoas ligadas a mim e tive contato com elas logo depois do ocorrido”, afirma. No primeiro caso a vítima não conseguiu levar a denúncia em diante. “Por vergonha, como imagino que deva saber. Não é algo fácil, agravado ainda por ocorrer em uma vila. Orientei-a, contudo, respeitei sua vontade”, explica.
No segundo ataque, conta Celi Alexandrino, o estuprador foi preso em flagrante e encaminhado para a delegacia de Jijoca de Jericoacoara. No entanto, ao ser transferido para um presídio onde aguardaria a conclusão do inquérito policial e a sentença judicial, foi assassinado por outros detentos.
Em decorrência do primeiro caso, ocorrido em setembro do ano passado, a advogada e outras mulheres organizaram um grupo para viabilizar transportes para trabalhadoras que tinham de fazer as rotas Jericoacoara-Preá e Preá-Jericoacoara. A maioria é empregada de pousadas, restaurantes, bares e outros equipamentos com atividades noturnas. Trabalham durante o dia e retornam para casa depois das 18 horas ou tarde da noite.
Um dos estupros, recorda Celi Alexandrino, ocorreu por volta de 00h no trajeto Jericoacoara/Preá na volta da vítima para a residência. “Como não existe transporte coletivo regular, os trabalhadores são obrigados a se submeter a boa vontade alheia em ceder carona. E justamente uma pessoa que deu carona, a estuprou. Como o ano era eleitoral, o poder público não tomou providências para sanar a questão do transporte”, denuncia a advogada.
O grupo “Carona Segura” tem 103 integrantes que pedem ou oferecem caronas para rotas vulneráveis para mulheres. A procura é maior que a oferta. “Particularmente, após os casos, diminui bastante minhas idas a Jericoacoara. Somente o fazendo a trabalho e durante o dia. Não me sinto segura na Vila de Jericoacoara e tampouco em fazer o trajeto Preá/Jericoacoara. O que é uma lástima, visto que um dos fatores que me atraiu até aqui foi a segurança. É muito triste ver que o ‘paraíso’ somente existe, hoje em dia, no imaginário”, constata Celi Alexandrino.
Além da criação de um grupo para caronas seguras, as 23 mulheres fundaram também o coletivo Grito de Paz Jeri ou #gritodepazjeri. No texto de apresentação, elas avisam que a ideia surgiu em julho do ano passado. “Temos presenciado casos de abusos e estupros, principalmente, de mulheres que pegam carona no trecho Jeri-Preá. Estamos enviando esta mensagem para que fiquem alertas à situação e para pedir ajuda da população e órgãos públicos”.
A paulista Cauane Polo, ex-gerente de pousadas em Jericoacoara e hoje instrutora de kitesurf, é uma das fundadoras do grupo. Ela conta que desde o surgimento do coletivo, em julho do ano passado, mais cinco mulheres foram estupradas. No entanto, não fizeram boletins de ocorrências porque não se sentiram acolhidas nem seguras para denunciar. Uma das intenções do “Grito de Paz Jeri” que tem perfis no Facebook e Instagram, indica Cauane, é diminuir a subnotificação. Vários casos não chegam à delegacia nem entram nos registros das SSPDS.
O estado psicológico da vítima e o constrangimento de ir a uma delegacia sem acolhimento apropriado dificultam a notificação de vários casos. Segundo Cauane Polo, esse argumento da “subnotificação” não pode servir de desculpas para que órgãos municipais de Jericoacoara e do governo do Estado ignorem ou minimizem uma situação amedrontadora em um concorrido destino turístico do mundo, que é Jericoacoara. “Há dois problemas urgentes: a insegurança para mulheres e a falta de transporte coletivo em “uma região que tem até um aeroporto para o turismo em Jeri”, inaugurado ano passado em Cruz, mas “não garante mobilidade digna nem para turistas nem para a população local”.
NÚMEROS
76
É o número de estupros registrados somente nos seis primeiros meses deste ano em Cruz, Jericoacoara e mais 17 municípios da Área Integrada de Segurança 17 da SSPDS
84
É o número de estupros registrados entre janeiro e junho de 2018 pela SSPDS em Cruz e Jericoacoara e mais 17 municípios da Área Integrada de Segurança 17 da SSPDS
Leia também: Jeri: Futuro do presente
Erramos: diferentemente do informado inicialmente, os 76 estupros foram na área da AIS 17, onde estão Cruz e Jijoca de Jericoacora, e ainda os municípios de Acaraú, Amontada, Apiuarés, Bela Cruz, General Sampaio, Irauçuba, Itapajé, Itapipoca, Itarema, Marco, Miraíma, Morrinhos, Pentecoste, Tejuçuoca, Tururu, Umirim e Uruburetama.
Abaixo assinado pede delegacia da mulher em Jericoacoara
A articulação das mulheres em Jericoacoara contra a onda de estupros registrados ou silenciados na área e entorno do destino paradisíaco também gerou um abaixo assinado puxado pelo coletivo Grito de Paz Jeri (#gritodepazjeri). Até agora, 90 pessoas assinaram uma lista de oito reivindicações destinadas ao prefeito de Jijoca de Jericoacoara, Lindbergh Martins, e uma ao prefeito de Cruz, Jonas Muniz.
Entre as petições, está a abertura de uma delegacia da mulher, na Vila de Jericoacoara. De acordo com Cauane Polo, uma das articuladoras do abaixo assinado e integrante do Grito de Paz Jeri, o equipamento facilitaria o atendimento especializado e evitaria a locomoção difícil para delegacias dos municípios de Cruz ou de Acaraú. Quem não tem carro próprio sofre com o preço alto de lotações precárias.
Além de pedirem a implantação de transporte coletivo de qualidade na rota Jericoacoara-Preá, Preá-Jericoacoara e Jericoacoara-Chapadinha-Jijoca, os habitantes pedem câmeras na Vila e ampliação da área de circulação da Polícia Militar (PM) nos três trechos. Principalmente no horário noturno e nas praias da Malhada, Serrote e Dunas. Lugares que passaram a ser considerados de risco com os estupros.
Duas viaturas para policiar a Vila de Jeri
O POVO enviou uma série de questionamentos para o secretário André Costa, da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará. Por nota, a SSPDS informou que PM “a Vila de Jericoacoara (Jijoca) e Preá (Cruz) são cobertas pela 2ª Companhia do Batalhão de Policiamento Turístico (2ª Cia/BPTur)”. Cruz, Jericoacoara e mais 17 municípios fazem parte da Áreas Integrada de Segurança 17 (AIS-17).
Na Vila, diz a nota, a PM realiza o patrulhamento por meio de apenas “duas viaturas que circulam diuturnamente”. No período de alta estação, há ainda uma “trinca de policiais militares reforçando a segurança no período noturno, na praça principal de Jericoacoara”.
No Preá, continua a nota da SSPDS, “duas viaturas da PM são empregadas no patrulhamento que incluem as imediações do Aeroporto Regional de Jericoacoara, localizado em Cruz”.
De acordo com Polícia Civil, Jijoca de Jericoacoara não se enquadra nas especificações da Constituição do Estado do Ceará para a instalação de uma Delegacia da Mulher. Lá existe uma delegacia municipal, que é polo plantonista, funcionando 24 horas por dia, nos sete dias da semana.
A nota da SSPDS informa ainda que o número de crimes violentos letais e intencionais (CVLI) na AIS -17 caiu 49,6% no primeiro semestre de 2019 quando comparado ao mesmo período do ano passado. Foram 58 casos registrados contra 115, em de 2018 ou 57 casos a menos.
Os dados de roubos em geral, classificados como crimes violentos contra o patrimônio (CVP), também diminuíram no semestre segundo a SSPDS. Em 2019, 324 registros foram contabilizados contra 410 do ano passado, representando 21% de redução. Com relação aos crimes de estupro, foram 84 de janeiro a junho do ano passado e 76 apenas nos cinco primeiros meses de 2019.
Ponto de vista - Espantar turistas?
Duas horas da manhã de terça-feira, 11/9/2018. Fomos acordados com um apelo de mais uma vítima de estupro! Uma jovem que sai do trabalho, em Jericoacoara, meia noite, e por negligência do poder público é obrigada a pedir carona para regressar à sua residência.
Um motociclista, idade entre 40 e 50 anos, em uma motocicleta de cor preta. A polícia que deveria garantir a segurança dessa mulher, a aconselha a não fazer "alarde" tendo em vista que estávamos em alta temporada e não poderíamos "espantar" os turistas.
Então, vamos esperar que façam isso com nossas mães, irmãs, amigas? Ou vamos exigir do poder público transporte digno para essas trabalhadoras? Priorizar apenas a segurança, transporte e integridade do turista? Tem de se garantir, também, o mínimo de dignidade para trabalhadoras.
São elas, na verdade, que movimentam e possibilitam que Jericoacoara e a região estejam aptas a receber turistas. Cada um pode fazer sua parte, não vamos deixar que isso se perpetue! Vamos defender nossas mulheres.
Celi Alexandrino, advogada mineira, moradora do Preá/Jericoacoara desde 2018
Quatro anos depois, assassinato de italiana em Jeri não foi elucidado
O caso mais midiático de violência contra a mulher em Jericoacoara é, provavelmente, o de Gaia Barbara Molinari, 29. A turista italiana foi assassinada e seu corpo encontrado nas dunas da Vila, no Natal de 2014. De lá para cá, a polícia cearense não conseguiu elucidar o crime e, em março do ano passado, retomou as investigações.
Quatro anos depois, a busca pelo autor (ou autores) do homicídio gera incômodos para a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) e para a Polícia Civil. O POVO enviou perguntas sobre o caso ao secretário André Costa e foi informado pela assessoria de imprensa que não poderiam "ser divulgadas, no momento, informações para não comprometer o trabalho policial".
À frente do inquérito, até agora sem solução, está atualmente a delegada Socorro Portela. É a sexta policial a coordenar a apuração do assassinato. Ela traz na bagagem a experiência de ter sido eficiente na chefia geral da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). O assassinato de Gaia Molinari repercutiu internacionalmente e se tornou sinônimo de impunidade, chamando atenção pelas prisões questionáveis realizadas pela Polícia Civil. Das três principais pessoas apontadas como suspeitas do crime, nenhuma teve a participação comprovada.
Gaia era relações públicas de uma multinacional francesa. Residia em Paris, mas era natural de Piacentina, uma província localizada no Norte da Itália. Desembarcou em Fortaleza em 16 de dezembro de 2014 e hospedou-se numa pousada, no Centro, a convite de um amigo. No local, conheceu a carioca Mirian França, com quem viajou a Jijoca de Jericoacoara, no Litoral Oeste. A previsão de retorno das duas era 24 de dezembro. A italiana permaneceria na Capital e Mirian seguiria para Canoa Quebrada, no Litoral Leste. Porém, apenas a carioca embarcou no ônibus.
Na manhã do dia 25 de dezembro, Gaia foi encontrada morta, com sinais de estrangulamento, na localidade de Serrote, próximo à trilha que dá acesso à Pedra Furada. Mais de 50 pessoas foram ouvidas no inquérito sobre a morte. A primeira a ser detida foi um homem natural de Jijoca, com deficiência. Ele foi trazido até Fortaleza para realizar exames e foi liberado em seguida. Na ocasião, a Polícia Militar justificou que havia a possibilidade de linchamento do suspeito por parte da população, motivo pelo qual ele foi detido para averiguação.
Em seguida, Mirian França, inicialmente foi ouvida como testemunha, teve a prisão decretada. Ela teria apresentado versões contraditórias sobre o dia do crime. Mirian permaneceu presa por 15 dias e foi solta após pressão e defesa exercidas por representantes dos Direitos Humanos.
Em de março de 2016, o sobralense Douglas Sousa foi capturado. Ele trabalhava no hotel ao lado do estabelecimento onde Gaia estava hospedada e permaneceu 44 dias preso. Quando foi solto, a Polícia Civil informou que ele continuava suspeito do crime.
Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara não se manifesta sobre violência
O POVO entrou em contato por telefone e enviou e-mail na sexta-feira (12/7), às 16h54min, para o prefeito Lindbergh Martins, de Jijoca de Jericoacoara. A mensagem eletrônica foi endereçada também para Flávio Costa, secretário da Segurança e Trânsito, para Francisco Ary Leite, chefe de gabinete do prefeito e para Everardo Gomes, secretário de Transportes. Nenhum deles retornou com respostas.
Além de ligações para o telefone celular do secretário Flávio Costa, na sexta-feira (12/7) e na segunda-feira (15/7) sete perguntas foram enviadas, via WhatsApp, para o número do executivo na sexta, às 8h54min. Não houve resposta. Nem na terça-feira (16/7), quando o jornal enviou nova mensagem, às 10 horas.
Na terça-feira passada, O POVO voltou a ligar para a Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara. Às 9h55min, foi atendido pela telefonista que se identificou por Cristiane. Após ser informada sobre as tentativas de entrevistas, afirmou que pediria ao Everardo Gomes que retornasse para o número do celular do repórter. O que não aconteceu.
SAIBA MAIS
Em 9/1/2018, a Justiça cearense condenou Francisco Fagner Fernandes de Souza, 23, a dez anos de prisão por estuprar e assaltar, à mão armada, uma turista alemã em Jericoacoara
O crime aconteceu em 26/12/2015, na Duna do Pôr do Sol. Um ano depois do assassinato da turista italiana Gaia Molinari
No dia do estupro e roubo, a alemã, de 24 anos, estava acompanhada de um austríaco. A turista conseguiu fazer o boletim de ocorrência
Quatorze dias depois do estupro, a polícia prendeu Francisco Fagner na praia de Icaraizinho, em Amontada. Ele tentava vender a máquina fotográfica e o celular roubados da turista