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Edifício Andréa: "Nunca vou esquecer o que vi e ouvi"
Reportagem

Edifício Andréa: "Nunca vou esquecer o que vi e ouvi"

Cabeleireiro conta como sobreviveu ao desabamento que bateu à porta do MR Retrô. Deu tempo salvar os cachorros e o gato
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O DESABAMENTO do edifício Andréa ocorreu na última terça-feira, 15/10 (Foto: Sandro Valentim / O POVO)
Foto: Sandro Valentim / O POVO O DESABAMENTO do edifício Andréa ocorreu na última terça-feira, 15/10

No Instagram de Marcello Rodrigues, 42, a fotografia de um laço preto ilustra um aviso sobre a vida que teve de dar um tempo. "Por motivo da tragédia ocorrida no edifício ao lado do Salão, a Defesa Civil evacuou a área e com isso o MR Retrô não irá funcionar até segunda ordem. Oremos pelas vítimas! Atenciosamente, Marcello Rodrigues e Diego Albuquerque.

E não tinha como ser diferente. O Salão de Beleza, localizado na travessa Hilnete - paralela à rua Tibúrcio Cavalcante, só não foi engolido pelo desabamento do edifício Andréa porque a queda do prédio de sete andares pendeu para o asfalto em uma linha quase reta.

"Na porta da nossa casa tem um QG dos Bombeiros e do IML (Pefoce). Aí, você imagina o que tivemos que ouvir. Estou do lado dos escombros, foram duas noites em claro porque os apitos, os aplausos e as lágrimas não nos deixavam dormir", ressente o cabeleireiro Marcello Rodrigues.

As cenas do momento do desabamento e do que foi acontecendo na manhã do dia 15/10 e depois, conta o rapaz, ainda não deram trégua. "Estamos vivendo uma coisa que jamais imaginei na vida. Um misto de felicidade por estar vivo, derrota por não poder ter feito nada, angústia ao ver pessoas sendo retiradas mortas dos escombros e tristeza pelas famílias que esperam por notícias", pontua.

Por motivo indizível da história de cada um, Marcello Rodrigues era a única pessoa no Salão na hora do tombo inimaginável do Andréa. Apenas ele, os cachorros Bartolomeu e Romeo e o gato Inácio. Diego Albuquerque, seu companheiro, havia saído para fazer pagamentos. "E isso é uma das coisas que mais agradeço a Deus".

Desorientado, por causa da poeira que se fez e dos gritos por socorro de outras vítimas, o cabeleireiro até chegou a ligar para o marido e avisou do prédio que acabara de cair. "Juro que nem lembro de ter ligado, mas confesso que o melhor momento daquela manhã foi quando olhei nos olhos do Diego e disse: amor, tira a gente daqui. E ele respondeu: tiro", recorda Marcello.

Antes dali, o cabeleireiro percorreu o "cenário de guerra". Aturdido, encontrou duas senhoras em estado de choque e perdidas nos destroços. Foi para o "olho do furacão" e ajudou um senhor que sangrava e não sabia para onde ir. "Entrei no salão para buscar umas coisas e vi como o abandonei. Luzes acesas, tesoura e pente no chão, café na xícara do cliente. Sim, é isso que você faz quando você percebe que o mundo está acabando, você corre", relembra.

Traumatizado, Marcello decidiu viajar para "sair do inferno". E me diz que está bem. "Talvez diga para poder acreditar nisso". De resto, a única "lembrança boa" foi testemunhar a disposição de homens e mulheres (bombeiros) trabalhando no resgate. "Deveriam ser venerados. Nunca vi tanta vontade de trazer alguém de volta daquela montanha de tristeza", refaz.

Sobrevivente do desabamento do Edifício Andréa, em Fortaleza, conta como foi a tragédia

Bom dia, Demitri,

Estamos vivendo uma coisa que eu jamais imaginei na vida. Um misto de felicidade por estar vivo, derrota por não poder ter feito nada, angústia ao ver pessoas sendo retiradas mortas dos escombros e tristeza pelas famílias que esperam por notícias.

O cenário aqui na rua, tanto do salão como da casa onde moramos, está parecendo o de um filme de guerra. Poeira fina por toda parte, ambulâncias por todos os lados, homens passando o tempo todo com as mais diversas fardas.

Pessoas passam com comida, fizemos bastante café, homens choram, mulheres choram, a rua chora. Tem um carro do IML na porta da minha casa, esperando pelo fim de quem está lá.

Eu não consigo pensar em nada que seja feliz ou até mesmo terminar o pensamento, ele foge de repente. Entrei no salão para buscar umas coisas e vi como o abandonei. Luzes acesas, tesoura e pente no chão, café na xícara do cliente. Sim, é isso que você faz quando percebe que o mundo está acabando, você corre.

Eu corri, mas pro lado oposto ao que poderia ser chamado de seguro. Eu fui pro olho do furacão. Ao entrar no meio do caos, vejo um homem sangrando sem saber pra onde ir, sentei aquele pobre senhor na calçada e disse: o senhor vai ficar bem! Nem eu acreditava naquilo.

Consegui ajudar duas vizinhas que não sabiam para onde estavam olhando, pois já não tinham mais expressão alguma. O pânico tomou de conta delas. Foi quando, de repente, me vi de pé em cima do portão do inferno. O mesmo portão que na noite anterior parei com meu fiel amigo Romeo (cachorro) para passear.

O portão que guardava tantas histórias de vidas, tantas histórias estavam debaixo dos meus pés. Ouvi gritos, ouvi estalos, ouvi meu coração bater. Uma pessoa estava presa e minha impotência humana não me permitia fazer absolutamente nada.

Um homem grita: tá vazando gás! Foi só assim que meu sentido do olfato foi ativado. Era enorme o cheiro do gás de cozinha. O caos se instalou, uma ambulância chegou e eu consegui caminhar até o salão que nunca chegava. As pessoas gritavam, choravam e, principalmente, filmavam. Como pode alguém consegui ligar uma câmera de celular em meio tanta agonia? Como uma pessoa tem coordenação motora para se colocar entre o celular e o caos na hora do selfie?

O senhor que menti pra ele (sangrando), já não estava mais na calçada. As vizinhas, já não sabia mais onde estavam. Foi quando um guarda me perguntou: o senhor mora aí? Eu já estava na porta de casa e acenei com a cabeça que sim. "Você precisa sair daí, isso pode explodir".

Sabe quando você avista o ônibus chegando e corre pra parada, pra não correr risco de perder? Foi o que eu fiz. Dessa vez, não mais para o olho do furacão. E, sim, para salvar os meus. Era o que me restava. Peguei Bartolomeu, Romeo e Inácio e sai correndo com a ajuda de uma vizinha, que também não sabia o que fazer.

Diego havia saído para fazer uns pagamentos. E isso é uma das coisas que mais agradeço a Deus. Eu havia ligado pra ele pra que voltasse logo, pois o prédio vizinho havia desabado! Como uma pessoa é capaz de fazer isso? Dá uma informação dessas e pronto? Eu juro que nem lembro de ter ligado, mas confesso que o melhor momento daquela manhã foi quando olhei nos olhos do Diego e disse: "amor, tira a gente daqui". E ele respondeu: "tiro!"

Foi a coisa mais segura que eu ouvi naquela manhã.

Se eu puder ajudar no seu trabalho ficarei feliz com isso, estarei de volta a Fortaleza, quando meu coração parar de sangrar. Talvez eu fale assim pra acreditar nisso.

Marcello Rodrigues, 42, cabeleireiro e dono do Salão MR Retrô. O salão fica ao lado do Edifício Andréa, que desabou em 15/10/2019, em Fortaleza   

Retorno

No primeiro momento, o cabeleireiro Marcello Rodrigues achava que reabriria o salão em quatro dias. Depois, viu que não tinha condição emocional nem a rua voltaria à rotina

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