Logo O POVO+
Cinema para poucos
Reportagem

Cinema para poucos

Para o presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema, Diego Benevides, "é surpreendente que, em um governo que despreza a arte e a cultura, o cinema tenha aparecido como um tema de reflexão para quase 4 milhões de candidatos"
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Somente a sala 2, que terá ocupação reduzida a 30% da capacidade, será aberta na retomada da programação do Cinema do Dragão  (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Somente a sala 2, que terá ocupação reduzida a 30% da capacidade, será aberta na retomada da programação do Cinema do Dragão

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) - Democratização do acesso ao cinema no Brasil - no último domingo, 3, trouxe várias reflexões a respeito do assunto. Estudantes do Ceará narram como foi desenvolver textos sobre a temática frente a uma realidade do Estado que só detém 6% de seus municípios com salas de projeção audiovisual.

Para a estudante Letícia Alves, 20, a opção de assistir um filme na tela do cinema quase sempre é deixada de lado entre os planos para o fim de semana. Moradora de Cascavel, situada a cerca de 65 km de Fortaleza, ela precisa realizar um deslocamento de cerca de uma hora de duração até conseguir chegar à sala de cinema mais próxima de sua cidade, já na Capital. "Por eu morar em uma região afastada da zona urbana, é muito raro, eu frequentar o cinema. Isso me incomoda bastante, porque eu adoro essa experiência e gostaria de sair com meus familiares e amigos para ver um filme mais vezes", relata.

Letícia foi uma as alunas que fez a prova do Enem no domingo e, confessa: "Foi um tema inesperado para mim, me fez pensar muito no avanço tecnológico e sua relação com a desigualdade". Para a estudante, que atualmente cursa hotelaria no Instituto Federal do Ceará (IFCE) e espera passar no vestibular para Odontologia, uma das alternativas para contornar tal situação é "estimular essa cultura pouco disseminada nas regiões mais afastadas, com iniciativas culturais para a população mais carente", explica.

Para o presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine), Diego Benevides, a palavra democratização se conecta a uma discussão muito atual acerca do audiovisual no Brasil. "É surpreendente que, em um governo que despreza a arte e a cultura, o cinema tenha aparecido como um tema de reflexão para quase 4 milhões de candidatos que foram fazer a prova, convocando-os a repensar suas próprias experiências com o cinema, questionar os privilégios de acesso e olhar para o outro", comenta.

De acordo com o pesquisador, a inclusão desse tema na redação é importante por reconhecer o cinema não apenas como um assunto da educação, mas como elemento de construção da identidade cultural. "Muito já foi feito para descentralizar o cinema dos grandes centros urbanos nos últimos anos, mas ainda é um desafio conseguir chegar mais longe e ultrapassar as fronteiras nada imaginárias que ainda segregam o acesso à cultura e à arte na sociedade atual", comenta Diego.

A estudante fortalezense Thamires Theodoro, 22, também participante do primeiro dia de provas do Enem 2019, diz que é o preço dos ingressos que a tem mantido afastada das salas de cinema. "São muitas opções de cinema na Capital, mas os preços são absurdos", conta. No texto que escreveu para a prova de redação do último domingo, ela destacou a produção audiovisual cearense "La casa dos Vetim", produzida na periferia de Fortaleza. "Eu acompanho eles desde o início e sei que precisam de verba para finalizar o trabalho. O fator financeiro é que é um desafio para democratizar o acesso ao cinema no Brasil", explica.

O cineasta Halder Gomes, diretor de filmes como "Cine Holliúdy" e "O Shaolin do Sertão" lamenta que, no Brasil, a realidade de democratização do cinema seja afetada pela ausência de salas em grande parte dos municípios do interior. "Há sensações que só são vividas em uma sala de cinema, como essa emoção compartilhada, essa dimensão do olhar. É lamentável saber que há pessoas que sequer tiveram essa experiência", pontua.

A temática de "Cine Holliúdy" (2013), um dos principais filmes de Halder, traz como protagonista o proprietário de um cinema de uma cidade no interior do Ceará nos anos 1970, que começa a perder seu público com a chegada dos aparelhos domésticos de televisão. O filme apareceu como exemplo em textos de diversos estudantes que realizaram a prova, o que surpreendeu positivamente o cineasta. "Recebi dezenas de mensagens com pessoas falando que mencionaram o filme no texto. É prova que o cinema é uma forma de retratar a cultura, é pertencimento", comenta.

Este conteúdo exclusivo para assinantes está temporariamente disponível a todos os leitores

Projeto que leva às telonas

Enquanto a capital cearense concentra 67 salas de cinema, no interior do Estado os municípios de Aracati, Limoeiro do Norte e Quixadá têm apenas duas salas de cinema cada. Nesses locais, o cinema chega por meio do projeto Cine Bom Vizinho, criado em 2003 e que hoje mantém 11 salas de cinema em cidades do interior. O projeto é ligado à rede de supermercados Pinheiro. "Uma das iniciativas é o Projeto Escola vai ao Cinema, que já levou mais de mais de 280 mil estudantes de escola pública para assistir filmes em suas salas de exibição", conta o diretor de Operação da Rede, João Bosco.

O primeiro cinema da rede foi inaugurado em Sobral, com duas salas de exibição. Em 2010, foi inaugurada a primeira sala 3D no interior do Ceará, também em Sobral. Para acesso às salas, os ingressos custam R$ 8 a meia entrada. (Ivig Freitas/ Especial para O POVO)

172 municípios do Ceará não têm salas de cinema

Mesmo sendo um dos estados com a maior proporção de salas de cinema por habitante do Nordeste, o Ceará possui hoje 172 municípios (94% do total) sem um equipamento do tipo sequer. Segundo dados de 2018 da Agência Nacional do Cinema (Ancine), apenas dez municípios possuem salas de cinema. Na semana passada, o Eusébio passou a ter cinema, com a inauguração de cinco salas. E, no final de outubro, Acaraú também passou a ter o Cine Bom Vizinho, do Supermercado Pinheiro.

Atualmente, o Ceará conta com média de 91,6 mil habitantes para cada sala de cinema, 16ª média do tipo no Brasil e 2ª do Nordeste, atrás apenas de Pernambuco (81,8 mil).

A unidade da federação com a melhor média de habitantes por sala de cinema é o Distrito Federal, com índice 33,8 mil habitantes por sala. Estados do Nordeste ficam com as cinco piores posições do ranking, com Piauí (108,6 mil), Rio Grande do Norte (112,2 mil), Maranhão (113,4 mil), Alagoas (114,5 mil) e Bahia (129,9 mil).

Segundo os dados da Ancine, havia salas de cinema no Ceará em 2018 apenas nos municípios de Aracati, Caucaia, Fortaleza, Juazeiro do Norte, Limoeiro do Norte, Maracanaú, Maranguape, Quixadá, Sobral e Tianguá.

Além de apenas 12 dos 184 municípios do Ceará possuírem salas de cinema, a distribuição desse tipo de serviço também se mostra concentrada em torno da Capital. Segundo dados da Ancine atualizados pelo O POVO, até 79% de todas as salas de cinema do Estado estão concentradas na Região Metropolitana de Fortaleza.

Com inauguração de um novo complexo de cinemas em Eusébio na semana passada, o Ceará passou a contar com um total de 104 salas de cinema no Estado. Do total, 82 estão na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Individualmente, a cidade com a maior concentração é Fortaleza, que possui 67 das salas (64% do total).

Eusébio (5), Caucaia (4), Maracanaú (4) e Maranguape (2) completam a concentração de equipamentos na RMF. Os dois municípios distantes da Capital com o maior número de salas de cinema são Sobral e Juazeiro do Norte, que possuem, respectivamente, oito e seis salas. (Carlos Mazza)

 

A Sala 02 do Cinema do Dragão reabre nesta quinta.
A Sala 02 do Cinema do Dragão reabre nesta quinta.

Acessibilidade de pessoas com deficiência ao cinema avança mas ainda está longe

Uma parceria entre o Ministério da Educação (Mec) e a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), anunciada no dia 29 de outubro e que depois viria a ser comparada a um "spoiler" para a prova de redação do Enem, propõe disponibilizar 20 filmes nacionais com recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência visual, auditiva e com autismo.

A ideia é que as obras disponibilizem audiodescrição para cegos e pessoas com baixa visão, além da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para surdos ou pessoas com deficiência auditiva. Além das películas, o projeto prevê a adaptação das salas de cinema para receber pessoas com autismo. A proposta é que o ambiente tenha som e luzes reduzidos.

Para o especialista Klístenes Braga, ainda não dá para toda programação ser acessível, mas sugere que seja implementada aos poucos. "É importante criar o hábito. Por isso é necessário que tenha programação acessível com uma certa periodicidade. Uma vez por mês, por exemplo, e que vá aumentando gradativamente", analisa.

Lara Lima, que é cega e atua como consultora em audiodescrição, aponta que a principal dificuldade é a falta de acessibilidade no circuito comercial dos cinemas. "Quando falamos de filmes exibidos em festivais, às vezes tem verba para colocar acessibilidade, mas isso não acontece em salas comerciais", explica. "O 'Rei leão'(1994) conta com audiodescrição e legenda para surdos. Mas o remake (2019) não tem nada para pessoas com deficiência", lamenta.

A tecnologia pode ser uma aliada para garantir o acesso de pessoas com deficiência às salas de cinema. O MovieReading é um aplicativo que disponibiliza a audiodescrição em sincronia com as imagens. "Mas ele é um quebra-galho, porque a audiodescrição do filme precisa ser disponibilizada previamente e o usuário tem que baixá-la antes," critica.

Já para surdos ou ensurdecidos, uma medida que garante acessibilidade é a presença de legenda nos filmes. "O correto seria que os filmes tivessem uma legenda para surdos e ensurdecidos, que além dos diálogos informa sobre outros sons presentes nos filmes, mas se tiver apenas a legenda em português ajuda muito," explica Mariana Farias Lima, presidente da Associação dos Profissionais Intérpretes de Libras do Ceará (Apilce).

A campanha "Legenda pra que não ouve" procura sensibilizar artistas e produtores da necessidade da implantação da legenda. Conforme Mariana, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo é possível encontrar salas de cinema equipadas com dispositivos que fornecem recursos para que os surdos possam acompanhar a exibição das películas. "Mas, infelizmente, essa não é a realidade de Fortaleza".

Já para deficientes físicos que têm mobilidade reduzida ou andam com o auxílio de cadeira de rodas, são necessárias a instalação de corrimãos e a construção de rampas que facilitem o acesso. Para minimizar os problemas encontrados por pessoas com deficiência em espaços culturais, o Ministério Público do Ceará (MPCE) realiza, desde 2018, reuniões com equipamentos como o Instituto Dragão do Mar, além das secretarias de cultura de Fortaleza e do Estado. "Temos feito várias audiências onde buscamos encontrar soluções junto a esses equipamentos para garantir melhor acesso do público com deficiência. Todos os locais têm apresentado propostas de adequação," explica Eneas Romero de Vasconcelos, promotor de justiça do Núcleo do Idoso e Pessoa com Deficiência do MPCE.

Este conteúdo exclusivo para assinantes está temporariamente disponível a todos os leitores

Perfil

Pesquisa divulgada pelo DataFolha e JLeiva em 2018 revelou que em um ano 9% dos entrevistados em 12 capitais não foram a nenhuma atividade cultural. Além disso, cerca de um terço da população urbana havia frequentado apenas programações culturais gratuitas

 

Perfil

Pesquisa divulgada pelo DataFolha e JLeiva em 2018 revelou que em um ano 9% dos entrevistados em 12 capitais não foram a nenhuma atividade cultural. Além disso, cerca de um terço da população urbana havia frequentado apenas programações culturais gratuitas

 

O que você achou desse conteúdo?