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A difamação à imprensa como estratégia de ataque
Reportagem

A difamação à imprensa como estratégia de ataque

| Imprensa | A recorrência de casos reflete novo patamar de ataques diretos à imprensa. Ataque à jornalista Patrícia Campos Mello levanta debate sobre o machismo
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Jornalista Patrícia Campos Mello (Foto: Alice Vergueiro/Abraji)
Foto: Alice Vergueiro/Abraji Jornalista Patrícia Campos Mello

Ataques à imprensa profissional têm sido cada vez mais recorrentes no Brasil. As investidas ocorrem de diversas formas, seja contra veículos ou pessoas físicas. Semana passada, um caso chamou a atenção. Em depoimento prestado à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News no Congresso, Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário de uma empresa de disparos de mensagens em massa por WhatsApp, fez insultos à jornalista da Folha de São Paulo, Patrícia Campos Mello.

Ele afirmou que Patrícia queria informações em troca de sexo. Na ocasião e nas redes sociais, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) disse acreditar que Hans falava a verdade. A jornalista comprovou que o depoimento era mentiroso com registros das conversas que teve com Hans — sua fonte, à época. Na quarta-feira, 12, dia seguinte ao ocorrido, mulheres jornalistas organizaram manifesto de apoio à colega.

O ataque à imprensa tem alcançado novo patamar. Para especialistas, os casos refletem um "projeto de governo" com o objetivo de tirar a credibilidade da imprensa e enfraquecê-la. O teor sexual das mentiras como estratégia desqualificatória suscita ainda a discussão sobre machismo e misoginia.

Elizabeth Saad, professora do Departamento de Jornalismo e Editoração das Escolas de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), frisa a importância do papel institucional e legítimo que a imprensa exerce na sociedade. "O jornalismo deve relatar e analisar os fatos, auxiliando a formação da opinião pública", diz.

Por causa do caráter intrinsecamente questionador, é comum que diversas governos em diferentes épocas critiquem veículos de comunicação. Atualmente, no entanto, um "conjunto de sistemas, máquinas e aparatos" têm intensificado e mudado a forma dos ataques. "As tecnologias criaram uma aceleração no modo de as pessoas se expressarem, ficou muito mais evidente essa polarização", detalha.

Ela considera que o cenário de acirramento não vai mudar. Isso ocorre, principalmente, por causa do aumento do volume de ferramentas. "O futuro é arriscado para o campo do jornalismo. Mas isso não significa o impedimento do jornalismo como uma instituição legítima e democrática", avalia Elizabeth.

O cenário atual e as perspectivas demandam "uma questão séria de segurança dos jornalistas". "Há, cada vez mais, uma necessidade de organização da mídia, das empresas, dos próprios jornalistas de buscarem caminhos de segurança digital e proteção. Como o que a Patrícia fez de registrar todos os contatos com a fonte", diz.

Janayde Gonçalves, professora de ética e legislação jornalística da Universidade de Fortaleza (Unifor), destaca gravidade dos ataques tendo em vista que representam uma violação a acordos internacionais e dispositivos legais. "Quando existem amarras ou qualquer empecilho para que a imprensa possa se posicionar livremente, a gente tem uma série de consequências negativas", defende.

Apesar de as agressões à imprensa não serem "novidade", "ataques diretos como os que vêm sendo feitos, inclusive pelo presidente, nunca houve na história". "Existem levantamentos estatísticos que mostram que essa média de ataques verbais e diretos é de um a cada três dias. Além desse problema, temos a descaracterização da própria profissão", destaca.

"É muito importante que as entidades representativas continuem fazendo o papel de levantamento de dados, que esse problema seja levado as entidades internacionais e que a população de forma geral esteja atenta. Essas atitudes não são gratuitas, existem com uma intenção ideológica por trás. O atual governo tem um projeto político de ataque a todas as minorias e liberdades".

 

 

 

Ataques são um contrafluxo às conquistas democráticas

"As mulheres sempre tiveram seu espaço de fala e autonomia desacreditados, o que temos de diferente agora é que estamos em um momento de contrafluxo às conquistas democráticas dos últimos anos", opina Cynara Mariano, professora de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). "O que observo são ataques que se voltam não só contra as mulheres, mas contra todos os 'filhos da democracia". Para ela, desde a Constituição de 1988, o País viveu "muitos anos com políticas públicas relativamente eficientes para a inclusão, defesa e emancipação de grupos vulneráveis" e agora há um período de ataque à democracia.

Em relação às mulheres, Cynara afirma que há uma questão cultural e antropológica a ser compreendida. "Tudo o que é tido como feminino é a negação do que foi constituído como masculino. As mulheres não tiveram autonomia para definir aquilo que as caracteriza", expõe. "Então quando uma mulher se coloca como firme e assertiva, características que nos foram negadas, há uma tentativa de cercear novamente." A professora exemplifica a situação relembrando o poder simbólico alcançado quando Dilma Rousseff assumiu a presidência e um maior número de mulheres foram eleitas parlamentares. "O contrafluxo veio de muitas formas, são exemplos aquela colocação de 'bela, recatada e do lar' e agora as propostas de políticas cerceando a sexualidade."

A cientista social Paula Vieira também aponta o destaque conquistado pelas mulheres como uma das explicações para os ataques. "Quando nosso trabalho e vivências eram invisíveis, não havia motivo para retirar, simbolicamente ou não, a fala das mulheres", afirma. "Hoje, com a inserção das mulheres no trabalho e em posições visíveis, elas têm se sentido mais impulsionadas a falar e se colocar nos espaços de poder. É aí que sentimos a resposta da violência estrutural da dominação masculina - que também afeta os homens."

Outra explicação vem da chamada hipersocialização advinda das redes sociais. Um estudo recente da Anistia Internacional, em parceria com a empresa de inteligência artificial Element AI aponta que, em 2017, a cada 30 segundos uma mulher sofreu algum tipo de abuso no Twitter. Foram analisados 288 mil tuítes enviados a 778 mulheres da política e jornalistas do Reino Unido e Estados Unidos naquele ano. Segundo o levantamento, o foco dos ataques era direcionado a jornalistas e políticas presentes na rede social, mas também atingia usuárias comuns. Além disso, a pesquisa mostra que a chamada "patrulha de trolls" é mais propensa a atacar mulheres negras: elas foram 84% mais mencionadas em mensagens abusivas. Um em cada 10 tuítes mencionando negras era violento ou problemático, comparado a um em cada 15 para brancas.

"Aumentamos o poder de socialização na hiperconectividade e os discursos se ampliam. Quando pessoas que têm alguma identificação com essas práticas as enxergam nesses espaços, se sentem fortalecidas", explica Paula, que é integrante do Laboratório de Estudos de Política, Eleições e Mídia da UFC.

 


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