A epidemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2) é a sexta emergência mundial em saúde pública declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Pelo menos outras duas também chegaram ao Brasil, o surto de H1N1, em 2009, e o crescente número de casos de microcefalia associada ao zika vírus, em 2016. Para a especialista em Ética e Saúde Global Deisy Ventura, professora e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, o Brasil é um dos países mais bem preparados. Ao O POVO ela fala ainda sobre desafios a serem vencidos e outras formas de viver em relação à natureza e à alimentação para evitar surgimentos consecutivos de pandemias.
O POVO - Estamos em meio a uma emergência mundial em saúde pública. É possível estimar uma progressão da Covid-19 no Brasil e o País está preparado para enfrentá-la?
Deisy Ventura - A gente vê muitas estimativas que estão sendo feitas, mas que não são mais do que projeções e que variam muito entre si. Não ousaria dizer nenhum número preciso. A única coisa que é consensual é que haverá um número grande de casos e que nenhum país está preparado para uma pandemia de um vírus desconhecido para o qual não tem vacina nem tratamento. Mas, diante das circunstâncias, comparativamente o Brasil é um dos países que está mais bem preparado porque existe o SUS, um sistema de saúde com acesso universal e gratuito e com extensão em todo o território nacional, sendo capaz de fazer vigilância.
Além disso, temos uma massa crítica de profissionais que são capazes de reagir e elaborar políticas. Então, a gente está muito melhor posicionado que Estados que não têm essa infraestrutura pré-existente à crise e a qual é impossível de formar de uma hora para a outra. Claro que a nosso desfavor conta o fato de que o SUS vem sendo sucateado nos últimos anos; a estrutura deveria estar mais forte agora não fossem essas políticas de redução de custos, de austeridade e de teto para a Saúde.
OP - O vice-ministro da Saúde do Irã afirmou que "Este é um vírus democrático, que não faz diferença entre pobres ou ricos, ou entre políticos e cidadãos comuns". Em que medida essa afirmação pode estar correta?
Deisy - Essa afirmação e essa lógica são absurdas. Não tem nada de democrático na doença, ela vai ser sempre sentida de forma diferente a depender do número de pessoas e essa doença é mais letal entre pessoas vulneráveis. Precisamos considerar quem é que tem direito aos bens da vida como água potável, saneamento básico, moradia decente, educação, trabalho. Esses determinantes sociais chamam a atenção para o fato de que a saúde é determinada por muitos fatores pelos quais vamos ter grupos mais ou menos suscetíveis.
Não é que o rico não adoeça e não morra, mas até morrer tudo é diferente. O tipo de doença, a incidência da doença, como vivi essa doença, como a doença e a minha morte impactam na minha família. A única igualdade é a morte em si e isso não queremos, o resto é tudo desigual. É preciso descartar esse tipo de raciocínio que é simplório e, por isso mesmo, errado.
OP - Países vizinhos com menos infectados que o Brasil, como Colômbia, Peru e Argentina, têm adotado medidas mais restritivas que as postas em prática aqui. Desde a semana passada alguns restringem entrada de estrangeiros e também determinaram isolamento obrigatório para quem chega do exterior e a suspensão de aulas e de grandes eventos. O Brasil está demorando a agir?
Deisy - Acredito que não. Adotar ou, como no caso do Brasil por enquanto, recomendar a restrição da mobilidade das pessoas - e com impactos econômicos sérios - tem que ser feito na hora certa. Quando o Brasil tinha um número pequeno de casos isso teria sido inócuo. Qual é o sentido de limitar a circulação das pessoas se temos poucos casos e com isso não consegue ver onde eles estão? Um outro aspecto é que tentar conter a circulação muito cedo desacredita as autoridades, porque parecerá como uma medida exagerada. E, finalmente, a questão crucial é a transmissão comunitária, quando não se consegue mais delimitar o vínculo de uma pessoa com um caso confirmado que tem uma explicação epidemiológica. Só quando a transmissão se dá nesse nível é que se justificam essas medidas.
Acho que o Brasil não tinha que fazer antes e acho também que o fechamento de fronteiras é de eficácia muito limitada. Com um vírus incerto sobre seu tempo de incubação e que pode ser assintomático, se fechar a fronteira, o vírus pode já estar dentro. Além disso a gente separa famílias, dificulta a chegada de ajuda, cria problemas enormes. Fechar a fronteira é um gesto político, um gesto ou para tranquilizar as pessoas ou para se encaixar em alguma agenda ideológica. Não acho que o Brasil agiu com atraso, o que eu acho é que a gente deve acreditar mais nas autoridades sanitárias, pois acreditando nelas vamos entender que cada medida tem prós e contras.
OP - Quais os principais desafios que a emergência da Covid-19 está apresentando e poderá apresentar em curto prazo para o País?
Deisy - Existe primeiro a sobrecarga do sistema de saúde, que podemos evitar se levar à sério as recomendações das autoridades sanitárias. É o desafio mais importante no momento. A gente tem que investir em prevenção. Somos um país que no ano passado teve 1,5 milhão de casos de dengue e 40 mil casos de síndrome respiratória aguda grave causada pelo influenza, dos quais cinco mil pessoas morreram. Nem o país mais rico do mundo está pronto para receber centenas de milhares de pessoas ao mesmo tempo e nem deve, né?
Depois disso são inúmeros outros desafios. Um deles é a questão trabalhista; cadê a legislação do trabalho para garantir que o trabalhador terá sua falta justificada e não vai sofrer consequências? E a pessoa que está na economia informal, como ela vai fazer para comer e para sobreviver? Alguns países já anunciaram a anistia de conta de energia elétrica, por exemplo. Outro é a saúde mental; como se manter bem durante o isolamento social? É preciso aprender a viver de uma outra maneira porque não se sabe quanto tempo e a incerteza é também um desafio. São muitas medidas que precisam ser pensadas e temos que ir pelo caminho de grande investimento público para a proteção das pessoas e não de interesses privados.
OP - Em entrevista a outros veículos, a senhora disse que as pandemias estarão cada vez mais presentes em nossas vidas. Com base em quais fatores a senhora constrói essa percepção?
Deisy - São três elementos mais evidentes. O primeiro é a invasão de habitats naturais pelo homem e passam a existir contatos que não aconteciam antes entre humanos e animais silvestres. É uma devastação ambiental absolutamente predatória e irresponsável mundo afora, inclusive no Brasil. Há uma urbanização desenfreada que desafia os habitats com consequências importantes do ponto de vista de mutações de vírus, de emergências de novas doenças e até de reemergências de doenças que já estavam controladas ou erradicadas.
Um segundo aspecto é a produção de alimentos derivados de animais. A gente tem hoje esquemas de produção de carne e derivados da carne que submetem os animais a um confinamento em condições inaceitáveis. Esses animais vivem em ambientes fechados sem ver o ar livre e a intrusão de um elemento estranho pode gerar consequências terríveis gerando doenças. Há ainda, nesse âmbito, o uso indiscriminado de antibióticos e produtos não regulamentados que vão criando patógenos resistentes. É um verdadeiro foco de possibilidade de mutações e propagação muito rápida de doenças.
E o terceiro ponto é a mudança climática. Ela vai mudar a cara de muitas regiões do mundo e com ela existe uma transformação importante da biodiversidade, que pode levar a fenômenos de mutação viral e emergência de doenças. É por isso que sabemos que pandemias vão acontecer com muita frequência a menos que a gente mude nossas atitudes em relação à natureza e à alimentação.
OP - Podemos esperar que a epidemia de Covid-19 deixe algum legado para a saúde
pública brasileira?
Deisy - Espero que sim e espero que os legados mais importantes sejam a valorização do SUS e a valorização dos profissionais da saúde. São esses profissionais que agora vão ser, de uma forma muito literal, a nossa salvação, principalmente os da saúde pública. O Brasil precisa aprender que o SUS é um tesouro que temos e que não há qualquer segurança sem ele.