Mulheres enfrentam desigualdades estruturais em todos os tempos, mas em momentos de crise as dificuldades se tornam mais evidentes. É o que explica Teresa Esmeraldo, professora do curso de Serviço Social e do Mestrado Acadêmico em Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará (Uece). Em entrevista ao O POVO, Teresa comenta sobre o crescente número de mulheres chefes de domicílio e sobre alguns dos impactos que a pandemia da Covid-19 trouxe para o cotidiano destas famílias.
Ela, que também é coordenadora do Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH) da Uece comenta também sobre esta dimensão que se intensifica no momento de isolamento social. Para a professora, “é fundamental investirmos na potência criativa de encontros coletivos”.
O POVO - O Ipea indica que 45% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres no Brasil. No Ceará, esse número é de 47% e mais da metade destes não têm cônjuges do sexo masculino vivendo no mesmo domicílio. O que isso pode dizer sobre a situação das mulheres e sobre as famílias aqui no Estado?
Teresa Esmeraldo - É importante reconhecermos que esta tendência de crescimento do número de famílias “chefiadas” por mulheres no Brasil tem persistido a cada ano. Esta tendência pode suscitar diferentes interpretações. Talvez possa significar transformações nos padrões tradicionais de família, cuja “chefia” era atribuída aos homens, na condição de provedores. É possível que esta transformação tenha se dado, a partir de uma ampliação da autonomia das mulheres, pois apesar da persistência das desigualdades de gênero, elas passaram a ocupar mais espaços na sociedade e a dividir com os homens o sustento da casa e a criação dos filhos.
Entretanto, não podemos desconsiderar uma perspectiva interseccional. Sabemos, pelas pesquisas e indicadores sociais, que as famílias “chefiadas” por mulheres, em sua maioria, o são por mulheres negras, trabalhadoras informais, empregadas domésticas, moradoras das periferias e que estão situadas na base da pirâmide social do nosso País. Conforme o IBGE, a linha de pobreza se posiciona entre as famílias que sobrevivem com cerca de R$ 420 por mês. Hoje 63% das famílias chefiadas por mulheres negras, sem a presença do cônjuge e com filhos de até 14 anos, sobrevivem com este valor mensal. O mesmo recorte se reduz para 39,6% para famílias “chefiadas” por mulheres brancas. Estes dados são extremamente preocupantes, revelando a reprodução de desigualdades. Desse modo, falar na situação destas mulheres e de suas famílias significa reconhecer que as mulheres negras são o segmento social mais afetado pelas desigualdades sociais e que esta situação se reproduz nas famílias por elas chefiadas.
OP - Raça e classe social são dois fatores que já se mostram evidentemente aumentando os dados da pandemia. De que forma ser mulher impacta nesse momento?
Teresa - Sabemos que as crises atingem mais as mulheres, em particular, as mulheres negras e pobres, em razão das desigualdades estruturais de gênero, raça e classe que se interseccionam e se reproduzem. Os movimentos feministas, a ONU Mulheres e os movimentos de mulheres do Brasil e do mundo tem destacado que as estratégias de combate a pandemia atingem homens e mulheres de modo diferenciado. Mesmo quando trabalham fora, as mulheres ainda realizam, em nosso País, a maior parte do trabalho doméstico, sobretudo as mulheres das classes trabalhadoras. Cabe a elas, quase todo o esforço em atividades de cuidado não remunerado com idosos e crianças, além de outras tarefas domésticas de limpeza e higiene. Por isso, as medidas de isolamento social têm deixado muitas mulheres ainda mais sobrecarregadas de trabalho, estressadas e tensas.
Além disso, as mulheres negras são a maioria em algumas das categorias profissionais economicamente mais vulneráveis aos efeitos da pandemia, como as empregadas domésticas, faxineiras e diaristas. E, no sistema de saúde, as mulheres estão na linha de frente dos cuidados prestados aos infectados pelo vírus, já que são ampla maioria nas áreas de enfermagem, serviço social, e serviços de asseio e conservação.
OP - Estar em casa é a recomendação das autoridades de saúde. Entretanto, o que o isolamento social traz para as mulheres chefes de família?
Teresa - Dentre os principais problemas que as afetam, em particular aquelas sem a presença do cônjuge, neste contexto de pandemia, é a situação de vulnerabilidade econômica. Ela se dá em razão de estarem inseridas, em sua maioria, no trabalho informal, e do risco de ficarem desempregadas, agravando a situação de pobreza em se encontram. Ademais, há a sobrecarga do trabalho doméstico. Elas podem não ter com quem dividir o trabalho dentro de suas casas. Muitas contam com o apoio de parentes, entre eles pessoas mais velhas, como os avós, com quem não poderiam ter contato no momento atual, pois idosos fazem parte do grupo de risco da Covid-19.
Outra dimensão é a violência doméstica e familiar. Sabemos que a casa nunca foi um lugar seguro para as mulheres, pois é neste ambiente que elas correm o maior risco de sofrer violência, e o período mais longo passado dentro de casa com outros membros da família, além da convivência com possíveis agressores, só aumenta essa exposição. Daí a tendência mundial de agravamento da violência contra as mulheres e meninas neste cenário de pandemia.
OP - Em termos de políticas públicas, como podemos avaliar o que tem sido prestado nesse momento especialmente para essas mulheres?
Teresa - O contexto da pandemia expôs, no cenário nacional, os efeitos devastadores da contra-reforma do Estado e dos cortes orçamentários nos gastos públicos efetivados com a ascensão da extrema direita ao poder em nosso país. Nesse cenário, pensamos que atuar no sentido de fortalecer o campo das políticas públicas para as mulheres, sob uma perspectiva interseccional, com o compromisso ético e político de defender, garantir e assegurar direitos.
É preciso reconhecer e enfrentar o racismo estrutural e as desigualdades de gênero, indo na contramão da tendência conservadora nacional, no sentido de assegurar políticas públicas interseccionais e transversais, nas áreas do trabalho, assistência social, saúde, educação, cultura e demais políticas. Para tanto, é necessário o diálogo do Estado com os movimentos negros, em particular, com os feminismos e movimentos das mulheres negras, a fim de se criar oportunidades reais para que as mulheres negras e suas famílias possam sair da condição extrema desigualdade social, econômica e política.
OP - Nesse sentido, qual pode ser o papel da sociedade civil - seja individualmente, seja nas organizações e projetos?
Teresa - Penso que, nesses tempos sombrios em que vivemos, é fundamental investirmos na potência criativa de encontros coletivos. Somos desafiados, não apenas nos espaços sócio-institucionais, mas na vida cotidiana, ao diálogo e à articulação entre saberes plurais – afetivos, políticos, teóricos e práticos – para fortalecermos o campo das lutas democráticas e populares de resistência contra as opressões de gênero, raça, sexualidades e classe. Essas opressões se entrelaçam e se (re)produzem no Brasil contemporâneo.