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Narrativas de médicos sobre uma tragédia estendida
Reportagem

Narrativas de médicos sobre uma tragédia estendida

Perto dos quatro meses da maior tragédia sanitária do Ceará, sete médicas e médicos narram a lida em um cotidiano de morte e de cura
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Especial médicos na pandemia Covid-19. Cena do dia a dia de médicos e médicas durante o caos sanitário causado pelo coronavírus em Fortaleza. 28/6/2020. Fortaleza-Ceará-Brasil. Foto: Nilfacio Prado (Foto: Nilfacio Prado)
Foto: Nilfacio Prado Especial médicos na pandemia Covid-19. Cena do dia a dia de médicos e médicas durante o caos sanitário causado pelo coronavírus em Fortaleza. 28/6/2020. Fortaleza-Ceará-Brasil. Foto: Nilfacio Prado

Deu vontade de chorar quando Beatriz Helena, 51, ginecologista e obstetra, teve a certeza clandestina que mãe e feto não sobreviveriam à Covid-19.

A médica teve de se segurar para não desabar diante da delicadeza em mais um dia difícil de pandemia nos hospitais do Ceará.

"E, de repente, me vejo frente a frente com a morte. Sinceramente, não fui preparada pra isso. Não na minha especialidade", escreveu para O POVO.

Ao se despedir, Beatriz fez um carinho nos cabelos da gestante e ainda esperançou: 'Vocês vão ficar bem. Daqui a quatro meses nos veremos no seu parto'.

"Ela me olhou profundamente e assentiu com um pequeno movimento de cabeça. Nós duas sabíamos que esse momento não aconteceria. Saí de lá dilacerada. A maternidade tem linguagens que nem sempre precisam ser faladas", contou a obstetra do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Fortaleza.

Beatriz Helena e mais seis médicos do Coletivo Rebento - Em defesa da Ética, da Ciência e do SUS escreveram para O POVO sobre situações limites e reflexões em meio ao caos da Covid-19.

Com o impedimento determinado pela Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) aos repórteres do jornal de entrarem nos hospitais, médicas e médicos narram trechos da rotina no enfrentamento à pandemia. Com o cuidado na preservação da identidade de pacientes e a delicadeza de tecer sobre o sofrimento ou alento de muitos que padeceram ou regressaram para casa.

São travessias cruzadas. E nesses percursos de socorro pela vida do outro e do próprio profissional de saúde, o texto da também obstetra Liduína Rocha, 51, toca o de Beatriz Helena. Liduína põe uma lupa no drama.

"Nem morrer nos torna iguais, como pode parecer. É necessário refletir sobre o fato de que quase metade das gestantes e puérperas que morreram pela Covid sequer foram intubadas", aprofundou a presidente do Comitê Estadual de Prevenção à Morte Materna, Fetal e Infantil.

Elas morreram, segundo Liduína Rocha, "esperando a assistência que não houve, porque o sistema de saúde havia chegado ao seu limite e lutava para não ser desmontado". Foram 19 óbitos em Fortaleza. A médica, que aparece paramentada na imagem de abertura deste especial, descobriu que havia sido contaminada pelo novo coronavírus após passar mal quando auxiliava uma cesárea.

Pelos bairros de Fortaleza, Sami Gadelha, 33, patologista e plantonista do Serviço de Verificação de Óbito (SVO) vive o drama de atestar a morte causada pelo novo coronavírus e, consequentemente, interferir num costume que virou inusual de uma hora para outra na vida privada: o ritual do adeus de um bem querer.

O anestesista Nilfacio Prado, além do texto, constrói a narrativa visual deste especial com fotografias em preto e branco. Olhares sobre os quase quatro meses de batalhas vencidas e perdidas contra o vírus.

Confira a seguir, quatro narrativas de uma série de sete textos escritos pelos médicos. Produzidos, inicialmente, para a plataforma do O POVO . Relatos carregadas da emoção e da subjetividade desses tempos-limite. No próximo domingo, o DOM publicará os escritos de Eloide Bonfim, Leonardo Bezerra e Ramon Rawache. Boa leitura.

 

FORTALEZA, CE, BRASIL, 23-06-2020: Liduina Rocha, ginecologista. Médicos e médicas Coletivo Rebento. Pauta sobre a realidade do dia a dia médicos enfrentamento Covid, escreveram uma carta com esta sendo esse momento de pandemia. Em epoca de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 23-06-2020: Liduina Rocha, ginecologista. Médicos e médicas Coletivo Rebento. Pauta sobre a realidade do dia a dia médicos enfrentamento Covid, escreveram uma carta com esta sendo esse momento de pandemia. Em epoca de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

"Nem morrer nos torna iguais"

O coração batia rápido e forte, o avental impermeável se encharcou de suor, e eu experimentava uma sensação de náusea que me acompanharia pelos próximos dias. Respirei buscando a consciência de sentir o ar entrar nos pulmões e no corpo, e me concentrei em ajudar a concluir a cesárea que estava auxiliando.

Há 5 dias já não via nenhum familiar, incluindo os que, a muito custo, foram convencidos da necessidade de mudar de casa. Aliviada, pensei que, se eu estivesse com Covid, estariam protegidos de mim. Essa é uma das várias crueldades dessa doença: precisarmos nos proteger uns dos outros.

Swab colhido, agenda do consultório cancelada, reuniões postergadas, um oxímetro que virou quase a extensão da minha mão, e os nove dias seguintes passados em grande parte na varanda, olhando a imensidão do mar, para me apresentar a experiência de pensar na morte. E na vida.

Pensar nas muitas vidas, a humanidade inteira, e nas mortes, agora mais de 50 mil aqui no Brasil. Mortes com faces desconhecidas, mas também de pessoas próximas, queridas. Mortes provocadas pela Covid, mas em grande parte definidas pelas escolhas de política pública.

É preciso que se diga que nem morrer nos torna iguais, como pode parecer. É necessário refletir sobre o fato de que quase metade das gestantes e puérperas que morreram pela Covid sequer foram intubadas.

Morreram esperando a assistência que não houve, porque o sistema de saúde havia chegado ao seu limite e lutava para não ser desmontado.

O SUS, que salvou muitas vidas, e é construído pelas mãos de muitos e muitas trabalhadores e trabalhadoras, que como eu também adoeceram, e muitos morreram, também em condições muito diferentes.

Em todo o mundo, somos o País com o maior número de profissionais da enfermagem mortos. Olhando com mais atenção, predominam nesse obituário mulheres e negras, que como eu são profissionais da saúde, mas exercem suas atividades em um nível de vulnerabilidade brutalmente maior.

Pegam transporte coletivo lotado diariamente, precisam ter rotinas de muitos plantões pela baixa remuneração, têm dificuldade de acesso aos EPIs. Não, não estamos no mesmo barco.

O coração ainda bate forte, ainda sinto uma sensação de náusea. Respiro fundo. E não é pela Covid. É pela compreensão da profunda desigualdade social, a doença que mais mata neste País.

 

FORTALEZA, CE, BRASIL, 23-06-2020: Beatriz Andrade, ginecologista. Médicos e médicas Coletivo Rebento. Pauta sobre a realidade do dia a dia médicos enfrentamento Covid, escreveram uma carta com esta sendo esse momento de pandemia. Em epoca de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 23-06-2020: Beatriz Andrade, ginecologista. Médicos e médicas Coletivo Rebento. Pauta sobre a realidade do dia a dia médicos enfrentamento Covid, escreveram uma carta com esta sendo esse momento de pandemia. Em epoca de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

A vida pulsa dentro de outra

Fui desafiada a escrever a minha história na linha de frente contra a Covid. Quero voltar a um tempo e dizer o motivo que escolhi a ginecologia e a obstetrícia. A vida que pulsa dentro de outra vida sempre me atraiu e aos meus olhos é um milagre.

Nesses 26 anos de profissão fui presenteada com a vinda ao mundo de pessoinhas que representam o futuro. E o futuro é cheio de tantas possibilidades... Fascinante demais!

E, de repente, me vejo frente a frente com a morte. Sinceramente, não fui preparada pra isso. Não na minha especialidade.

No último plantão, além das inúmeras pacientes que atendi com sintomas de Covid, fui chamada a dar um parecer obstétrico em uma paciente gestante na vigésima-segunda semana com dispneia severa (desconforto respiratório intenso). Me paramentei, entrei na área de isolamento e deparei com ela.

Catéter de oxigênio no nariz, deitada em uma maca encostada na parede, por falta de leito. Aguardavam, ela e o filho que carregava em seu ventre, a transferência para um hospital terciário onde a assistência ao binômio mãe e filho seria mais adequada.

Trocamos olhares. E jamais esquecerei aquele olhar cheio de desesperança (é a única palavra que me vem à mente agora). Expliquei que estava ali pra saber se ela e o bebê estavam bem.

Coloquei o sonar (aparelho usado para auscultar os batimentos cardíacos do feto) no seu ventre e escutei o som da vida que insistia em pulsar apesar de todas as adversidades. Ficamos um tempo assim: a escutar aquele sopro de vida e esperança (pausa para o meu choro...).

Ao me despedir, fiz um carinho nos seus cabelos e falei: "Vocês vão ficar bem. Daqui a quatro meses nos veremos no seu parto". Ela me olhou profundamente e assentiu com um pequeno movimento de cabeça.

Nós duas sabíamos que esse momento não aconteceria. Saí de lá dilacerada. A maternidade tem linguagens que nem sempre precisam ser faladas. Meus pacientes, mãe e feto, faleceram dois dias depois da minha visita, aguardando um leito de UTI.

O choro de alegria do nascimento, da força da vida, não será ouvido. E é com essa saudade do que não vivi que termino o meu depoimento.

 

Nilfácio Prado, médico
Nilfácio Prado, médico

Caleidoscópio de sensações

A condição humana do profissional de saúde, sobretudo neste momento, foi e está sendo testada ao máximo. Cada um sente a angústia do conflito interno entre o instinto de autopreservação e o sentimento de dignidade de honrar a palavra empenhada
no juramento.

Como médico, cumpro o que jurei há mais de uma década. Mediante o desconhecido, continuo empregando princípios milenares: primum non nocere (primeiro não prejudicar). Dei a mão a colegas caídos, amparei pacientes temerosos da condição de fragilidade e tento orientar meu semelhante não só com medicamentos ou técnicas apuradas. Também com palavras, gestos e esforços presenciais e a distância.

Como pessoa, preservo aqueles que são a real marca da minha humanidade. Meu pai, homem idoso, simples do Sertão e que me deu a base sólida para enfrentar as intempéries da vida, permanece em casa sob suporte dos filhos. Minha esposa asmática, mesmo apreensiva, está ao meu lado com amor e compreensão. Por eles, também, não posso cair.

Sob influência desse caleidoscópio de sensações, tento somar com a minha diferença e coleto imagens do fronte desse momento tão singular e único. Como médico e como pessoa, sigo com meus semelhantes a frente sob a luz da esperança de dias de melhores.

 

Especial médicos na pandemia. Médico Sami Gadelha, patologista. Plantonista do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) Dr. Rocha Furtado. Fortaleza-Ceará-Brasil. 25/6/2020. Acervo pessoal
Especial médicos na pandemia. Médico Sami Gadelha, patologista. Plantonista do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) Dr. Rocha Furtado. Fortaleza-Ceará-Brasil. 25/6/2020. Acervo pessoal

Para evitar sofrimento maior

Nesse período de pandemia, considerando que o Serviço de Verificação de Óbito (SVO) não tem a infraestrutura e os equipamentos necessários para a realização das necropsias de pacientes com suspeita clínica de Covid-19, e para evitar o deslocamento de familiares e de funcionários das funerárias e a aglomeração dessas pessoas na nossa sede, passamos a realizar nosso serviço nos deslocando para a casa de pessoas que faleceram em seus domicílios.

Lá, conversamos com as famílias e, com base nos sintomas relatados, construímos nossas suspeitas e informamos à família a possível causa da morte. Se houver suspeita de Covid-19, colhemos o material para o exame e orientamos sobre os cuidados que a família deve tomar para se proteger do contágio e obter o resultado do teste.

O que percebo como mais angustiante para as famílias das vítimas é que, a partir do momento em que se levanta essa hipótese de Covid-19, um dos cuidados necessários para a proteção dos próprios familiares é a realização do enterro diretamente, sem possibilidade de velório.

A notícia e a consequente quebra do ritual de despedida geram uma indignação tão impactante que, por vezes, se exterioriza como hostilidade a quem traz esse julgamento, nós, profissionais de saúde.Talvez mais ainda naqueles casos em que isso ocorre de modo mais rápido, em poucos dias, em que a família mal tem tempo de lidar com a possibilidade de estar com um membro seu infectado, quanto mais de ele ter falecido.

Justamente por estar ciente de que tudo o que estou testemunhando, no momento em que comunico a suspeita de Covid-19, são manifestações do desamparo das famílias, me posiciono da maneira mais assertiva possível, explicando o que aconteceu quantas vezes forem necessárias e que todas as medidas são para tentar evitar que aquela família sofra ainda mais tragédias por conta dessa doença.

Acredito, sobretudo, que entender o que aconteceu é o primeiro passo para que essas famílias superem essa dor e sigam em frente, e sinto-me lisonjeado de estar oferecendo ajuda nessa iniciativa.

 

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