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A vida pulsa dentro de outra
Reportagem

A vida pulsa dentro de outra

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Tipo Notícia
Beatriz Andrade tem 27 anos de formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É ginecologista infanto-puberal da Clínica Femini Imagem. É obstetra do Hospital Nossa Senhora da Conceição. (Foto: Aurelio Alves/ O POVOS)
Foto: Aurelio Alves/ O POVOS Beatriz Andrade tem 27 anos de formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É ginecologista infanto-puberal da Clínica Femini Imagem. É obstetra do Hospital Nossa Senhora da Conceição.

Fui desafiada a escrever a minha história na linha de frente contra a Covid. Quero voltar a um tempo e dizer o motivo que escolhi a ginecologia e a obstetrícia. A vida que pulsa dentro de outra vida sempre me atraiu e aos meus olhos é um milagre.

Nesses 26 anos de profissão fui presenteada com a vinda ao mundo de pessoinhas que representam o futuro. E o futuro é cheio de tantas possibilidades... Fascinante demais!

E, de repente, me vejo frente a frente com a morte. Sinceramente, não fui preparada pra isso. Não na minha especialidade.

No último plantão, além das inúmeras pacientes que atendi com sintomas de Covid, fui chamada a dar um parecer obstétrico em uma paciente gestante na vigésima-segunda semana com dispneia severa (desconforto respiratório intenso). Me paramentei, entrei na área de isolamento e deparei com ela.

Catéter de oxigênio no nariz, deitada em uma maca encostada na parede, por falta de leito. Aguardavam, ela e o filho que carregava em seu ventre, a transferência para um hospital terciário onde a assistência ao binômio mãe e filho seria mais adequada.

Trocamos olhares. E jamais esquecerei aquele olhar cheio de desesperança (é a única palavra que me vem à mente agora). Expliquei que estava ali pra saber se ela e o bebê estavam bem.

Coloquei o sonar (aparelho usado para auscultar os batimentos cardíacos do feto) no seu ventre e escutei o som da vida que insistia em pulsar apesar de todas as adversidades. Ficamos um tempo assim: a escutar aquele sopro de vida e esperança (pausa para o meu choro...).

Ao me despedir, fiz um carinho nos seus cabelos e falei: "Vocês vão ficar bem. Daqui a quatro meses nos veremos no seu parto". Ela me olhou profundamente e assentiu com um pequeno movimento de cabeça.

Nós duas sabíamos que esse momento não aconteceria. Saí de lá dilacerada. A maternidade tem linguagens que nem sempre precisam ser faladas. Meus pacientes, mãe e feto, faleceram dois dias depois da minha visita, aguardando um leito de UTI.

O choro de alegria do nascimento, da força da vida, não será ouvido. E é com essa saudade do que não vivi que termino o meu depoimento.

 

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