Logo O POVO+
Saudade faccionada
Reportagem

Saudade faccionada

PONTO DE VISTA
Edição Impressa
Tipo Notícia

Há muito não vejo minha família materna e paterna. Parte deles vive no bairro onde eu nasci, me criei e vivi até os 14 anos. Por quase dois também não consegui visitar a casa do meu pai. A disputa territorial entre facções é o principal motivo. Nem estamos longe. É um bairro vizinho do outro.

Como aceitar, então, que não posso pedalar pelas ruas onde corri e brinquei de pega-pega? Não tenho como. É obedecer. São muitos nãos quando a afirmativa deveria ser: eu posso ir e vir. Mas isso não existe. Mesmo que alguns familiares sejam próximos, participem deste sistema perverso e autorizem a minha entrada com: “tem isso não, é de boas. é só dizer o meu nome”, eu tenho medo.

É um temor estendido quando passo por ruas com pixos diferentes daqueles comandos escritos na minha. Tento buscar na mente o nome daquele bairro não-dominado para dar como resposta, caso me perguntem de onde sou, ou ensaio um “não sou envolvido com nada, cara”, mas sei que essa resposta pouco importa.

“Dói-me muito o que me contas”, escreveu o papa Francisco ao saber como o coroinha Jefferson de Brito, 14, foi assassinado em Fortaleza. Quando mortes como essa ocorrem, o terror foi instalado e as ordens surgem: ninguém no meio da rua, nenhum morador de outro bairro na nossa área.

Serviços como a entrega de alimentos, medicamentos ou a passagens de pessoas em corridas solicitadas por aplicativos também é desautorizada. O recado é que uma tropa pode invadir o território da outra. É sempre da mesma forma. Os pais deixam de enviar seus filhos ao parque, quem pratica exercício no fim da tarde também evita sair de casa. Assim, caminhamos. Melhor: não vamos a lugar nenhum.

Dói-me muito ter perdido dezenas de amigos, mortos por ex-colegas, após ser o alvo-prometido no ato do batismo da facção ou por um desvio de conduta da constituição criminosa.

Entendo que o problema está para além das facções e disputas territoriais. Os envolvidos no esquema, sim, são vítimas de um sistema capitalista e escravocrata ainda instalado no Brasil. Este problema só será resolvido com trabalho intersetorial tendo a população preta e pobre no centro de políticas públicas.

O que você achou desse conteúdo?