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A campanha política nos territórios dominados de Fortaleza
Reportagem

A campanha política nos territórios dominados de Fortaleza

Candidatos minimizam riscos, mas domínio do crime nos territórios é desafio para eleições 2020, afirmam pesquisadores
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SÉRIE trata do conflito de facções (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR SÉRIE trata do conflito de facções

Manhã de sexta-feira, 2 de outubro. Um candidato à Prefeitura de Fortaleza se desloca pelas ruas de um bairro da periferia da cidade cuja área é dominada por facções. Está acompanhado de apoiadores. Súbito, a equipe de assessores se alvoroça.

A caminhada se desviou de seu roteiro previsto, entrando num beco que deveria ter sido evitado. Há tensão. Uma líder comunitária garante que o local é seguro. Mas aconselha que a atividade se encerre logo. Uma hora depois, o grupo se dispersa.

Durante todo esse percurso, um jovem seguia à frente com um rojão nas mãos, disparando salvas a cada vez que entrávamos ou saiamos de alguma rua.

Desde o início da campanha ao Paço, era a segunda vez que eu experimentava estar em local vulnerável. A primeira havia sido dias antes, também em região periférica. Acompanhava uma candidata por ruas estreitas de um bairro quando o grupo de repente parou. Uma assessora cochichou: a partir dali, não poderiam avançar, e apontou um monturo além do qual a via se apertava ainda mais.

De lá, minutos depois, dois jovens desceriam em passos apressados. Um deles disse ao cruzar com o comboio da campanha: "Não quero fotos aqui". Tinha o cabelo descolorido e uma tatuagem de lágrima logo abaixo do olho esquerdo. Em seguida, postou-se numa esquina. A candidatura mudou de rumo, e a ação daquele dia acabou pouco depois.

César Barreira é um sociólogo cuja vida foi dedicada ao estudo da violência e da política. É coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC). Para ele, "há uma possibilidade real de interferência nessa eleição" em Fortaleza por parte de grupos criminosos - leia-se, facções.

"A entrada das milícias no Rio de Janeiro se deu por estas duas vias: pela prestação de serviço, em parte ocupando o espaço do Estado, e também pelo medo", explica o pesquisador.

Barreira acrescenta: "Quem pode pedir voto naquela área dominada? Isso já é uma delimitação. Seria uma forma de controle do território". Mas também de quem o habita, indica.

Reféns dessa sujeição exercida pelo crime, os eleitores se aproximariam então de uma outra modalidade de tirania política presente no estado décadas atrás: o voto de cabresto. "Teríamos uma situação de quase reproduzir aquele voto de cabresto, comandado pelos proprietários de terra", compara.

Nas duas primeiras semanas de campanha na capital cearense, os 11 candidatos que concorrem no pleito diversificaram suas agendas, contemplando bairros do centro econômico e das margens. Da Barra do Ceará ao Jangurussu, visitaram espaços com altos índices de homicídios e presença mapeada de organizações criminosas.

Questionados pelo O POVO se chegaram a evitar lugares da cidade por causa do domínio de grupos contraventores, a maioria respondeu que não. Uma parte, porém, admite influência das facções na dinâmica eleitoral (veja quadro com as respostas dos candidatos) e teme que isso pode colocar a democracia em risco.

Socióloga da UFC, Paula Vieira pondera que essa restrição ao ir e vir dos postulantes ao Paço e à Câmara de Vereadores não necessariamente resulta em distorção do processo de votação e escolha de representantes. Ela aponta, no entanto, um desdobramento grave desse cenário.

"As eleições são um espaço de competitividade eleitoral em que há essa disputa do imaginário, processo decisório do eleitor e representação", avalia. "O efeito é que, em termos de campanha de rua, essa competitividade não chega nesses territórios."

Logo, "um candidato da facção ou grupo territorial pode ter alguma validação maior, um direcionamento mais específico, que sejam candidatos que os grupos julguem ser melhor para eles".

Há outra consequência, adiciona a pesquisadora: "o não comparecimento às urnas" pelo temor de atravessar territórios. Mesmo com as obrigações exigidas pela legislação eleitoral, ela continua, é possível que uma fração do eleitorado se sinta insegura para registrar nas urnas o seu voto.


 

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