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Estresse Pós-Traumático: o que mudou para quem estava na vizinhança do Andréa na hora da tragédia
Reportagem

Estresse Pós-Traumático: o que mudou para quem estava na vizinhança do Andréa na hora da tragédia

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A 80 e poucos passos do ex-edifício Andréa, convivo com pessoas repetidas há 20 e muitos anos. Sou do sétimo andar, minha avó do primeiro, tive tios morando no quinto, no oitavo e vi centenas de pessoas se revezarem em 15 apartamentos a um quarteirão da caixa d’água da Estância.

(Mais da) Metade dessa fauna me desperta aquela ânsia odienta de quem cansou das mesmas caras, dos mesmos papos, do conservadorismo tacanho dos privilegiados do Dionísio Torres. Dona B., do segundo andar, sempre foi exceção. Há uns 30 anos ela deve ter 70 e poucos — ou assim especulávamos eu e meus irmãos, que outrora dividiam quarto comigo. Hoje, sei que ela é pouco mais nova que minha avó, Dona Nizinha, de 89 anos. E nesta idade misteriosa, até bem pouco tempo atrás Dona B. dirigia (bem mal), era independente e mostrava uma cabeça privilegiada.

Faz pouco tempo, eu não sabia dizer quando, mas parte dessa mente se perdeu numa densa fumaça. Há poucas semanas, minha mãe, que conhece o filho de Dona B., desfiou a linha temporal de tal senilidade repentina. A queda do edifício Andréa levou consigo um pouco da minha vivaz vizinha anciã.

Ela ainda me reconhecia em viagens pelo elevador, mesmo de máscara, mas hesitava, como que com medo de pouco conhecido. A independência se foi de vez com uma queda e uma fratura no fêmur, que tirou o figurativo da fratura na alma. Minha avó, que também enfrenta certo nível de senilidade, parece hoje bem mais jovem que ela.

Dona Nizinha conhecia Dona Penha, a mais próxima das vítimas da queda do prédio. Eu conheci filhos dela, me acostumei a ver netos, mas praticamente nunca troquei palavras. Era um respeito mudo. Como a memória de minha avó anda rasa e os 89 anos já viram muita dor, o momento passou e a vida nessas famílias disfuncionais da classe média ocidental acabou mudando o foco dela.

Dona B., não. Talvez tenha perdido alguém — Dona Penha, especulo. E quem tantas décadas de certeza viveu, se viu encarada de finitude. E nessa luz que encara de volta, a mente começou a fechar os olhos.

A queda de um prédio é um desastre humanitário. É a quebra da ordem natural das coisas — concreto sobrevive mais que carne.

Não dá para passar incólume.

Tendo a cultivar com carinho todos os meus complexos. É como se os traumas me tornassem alguém mais original, ainda que nem sempre totalmente funcional. Como se minha dor fosse tão — ou quase tanto — pesada quanto a de quem de fato viveu perdas.

A minha vizinhança, ou pelo menos parte dela, viveu um trauma claro e objetivo. Às 10 e pouco acordei com uma explosão. E lembro de todos os detalhes daquele dia. De descer as escadas com chinelas, de ver um amontoado de escombros e ter certeza de que ninguém sobrevivera, de levar água para profissionais, de subir à laje do meu prédio morrendo de medo de uma nova tragédia.

Não tenho idade para o tempo anuviar essas memórias — a principal sendo a do barulho do prédio caindo e das vidas se esvaindo.

Nunca tive medo de trovão. Cresci apegado ao lógico, sabendo se tratar de um eco de um relâmpago já passado. Nunca tive medo de balões estourando, batidas altas na rua, ruídos desconhecidos da noite.

Há seis meses, descobri que estes “nunca” se esgotaram até que as nuvens invadam minha mente e aquele dia, um ano atrás, não seja mais tão vívido.

Para mim, 2020 — morte, perdas, pandemia, o inexplicável — começou em 15 de outubro de 2019.

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