No dia 17 de dezembro de 2010 um quitandeiro iniciou a derrubada de um autocrata. A frase, dita assim, resume o episódio que foi estopim para um levante popular na Tunísia, país no norte da África, que posteriormente pôs fim a um governo marcado pelo autoritarismo e pela corrupção.
A partir desse episódio, seriam desencadeados movimentos similares em outras nações da África do e do Oriente Médio. Há dez anos o mundo se deparava com a “Primavera Árabe”, série de revoltas populares com efeitos visíveis até hoje e que equinócio algum conseguiu prever os novos desdobramentos.
A Tunísia, governada por Abidine Ben Ali há mais de 20 anos, era um país conduzido pelo autoritarismo, pela corrupção e pela pouca liberdade de imprensa e de expressão, como boa parte da região onde está inserida.
Para os tunisianos, a Primavera começou na atitude desesperada de Mohamed Bouazizi, jovem que sustentava a família a partir da venda de verduras e legumes. Bouazizi ateou fogo no próprio corpo em frente à sede do governo, na cidade de Sidi Bouzid, em um protesto contra a corrupção que havia sido vítima naquele mesmo dia.
Policiais pediram propina para deixá-lo trabalhar com suas vendas e posteriormente o agrediram e tomaram sua mercadoria ao vê-lo recusar-se a ceder. Bouazizi tentou reaver os pertences junto à gestão da cidade, mas sem sucesso.
Então ele comprou um latão de combustível, derramou sobre si e acendeu a faísca que daria lugar à revolução. O homem morreu no mês seguinte, em 4 de janeiro de 2011, fato que fez multidões enfurecidas irem às ruas do país. Era a hora de uma resposta. Na Tunísia, a Primavera Árabe começou pelo fogo.
Dez dias após a morte de Bouazizi, o autocrata Ben Ali fugiu para Arábia Saudita, onde permaneceu exilado até a sua morte, em 2019. Vendo o sucesso inicial do levante, países vizinhos como Egito e Líbia iniciaram atos pró-democracia e contra os próprios governos autoritários.
O descontentamento popular era grande demais para ser contido nas fronteiras de uma única nação. Posteriormente, mais de uma dezena de países, cada qual com suas particularidades e pautas, protestaram. Fosse pela crise econômica, pelas más condições de vida, pela corrupção ou contra o autoritarismo.
Apesar da Tunísia ser o berço do movimento, foi apenas quando os atos chegaram na cidade egípcia do Cairo, que ouviu-se o termo "Primavera Árabe". Em 25 de janeiro, centenas de milhares de pessoas manifestaram-se na Praça Tahrir pela renúncia do ditador Hosni Mubarak, no poder há cerca de 30 anos.
Em 11 de fevereiro de 2011, o movimento derrubou o ditador e inspirou mais países a fazerem o mesmo. "Al-shaab yureed iskat al-nizam" (O povo quer a queda do regime) foi o lema que fez a região marchar unida durante a Primavera Árabe.
Fábio Gentile, PhD em Filosofia e Política pela Universidade L'Orientale, de Nápoles, aponta um fatores importantes na insurgência: a juventude aliada às redes sociais.
"Boa parte das manifestações foi protagonizada por jovens. Quem são esses jovens? Universitários, pessoas com fluência em vários idiomas e que viajaram pelo mundo. Eles trouxeram princípios do ocidente relacionados à democracia. Dentre eles as redes sociais. Facebook e Twitter desenvolveram um papel importante na difusão dos protestos. Rapidamente todo o mundo soube o que estava acontecendo”, explicou.
Apesar de reconhecer papel fundamental das redes, Gentile alerta para perigos do uso das ferramentas. "Em alguns casos, elas podem passar uma imagem bem limitada da complexidade. Precisamos entender o contexto no qual aquilo aconteceu e os próprios problemas de consenso. Nem toda a sociedade árabe queria modificações, é uma região com setores muitos fragmentados. As redes podem passar a falsa impressão de que todos apoiaram as manifestações ou estavam a favor das pautas e maquiar a realidade", pontua.
Para além de Ben Ali e Mubarak, os líderes do Iêmen, Ali Abdullah, da Líbia, Muammar al-Gaddafi, e mais recentemente do Sudão, Omar al-Bashir, caíram pelos efeitos da revolução (ver gráfico).
Vendo o que ocorria na África, monarquias do Oriente Médio como Arábia Saudita, Bahrein e Jordânia preocupavam-se ao perceber que não estavam a salvo do cenário. Reis autoritários passaram a temer que a democracia batesse às portas de seus palácios.
Apesar de histórica, a Primavera Árabe não atingiu os resultados esperados pelos manifestante na maior parte dos países envolvidos. Excluindo a Tunísia, a queda de autocratas não cedeu espaço às sonhadas reformas democráticas, mas a conflitos, inclusive armados.
Além de golpes, novos governos autoritários fortalecidos e monarcas que seguem de pé em países do Oriente Médio. O movimento que inspirou esperança também deixou feridas abertas que sangram ainda hoje na Líbia, na Síria e no Iêmen, onde conflitos após o enfraquecimento do poder central continuam a fazer estragos.