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Intensivistas: os baques de quem está no front
Reportagem

Intensivistas: os baques de quem está no front

Na primeira linha de enfrentamento à pandemia, os relatos da exaustão. Leitos são ampliados, mas já faltam profissionais
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Trabalhar diariamente em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é como estar em uma guerra. O tempo todo em estado de alerta, descanso escasso, utilizando o arsenal possível. O confronto, nesse caso, é contra um adversário invisível. A enfermeira intensivista Daniely Viana, 33 anos, atua na terapia intensiva há nove anos. "Nunca pensei em minha vida que viveria em uma época de pandemia, com uma exaustiva carga horária de trabalho, onde se teria tamanha dificuldades em conseguir insumos para prestar uma assistência adequada", relata a profissional do Instituto Dr. José Frota (IJF) e do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC).

Ela convive com o medo desde que se deparou com o primeiro caso em um dos hospitais em que trabalha. Ainda usavam só máscaras cirúrgicas, acreditando que na instituição ainda não existia Covid-19." A partir de então, as relações mudaram. "Passamos a ter medo de abraçar os nossos colegas de trabalho, passamos a ter medo de tocar nos nossos entes queridos e até mesmo a conviver com quem amamos", rememora.

A situação foi pior porque não tinha nem a possibilidade de se distanciar em alguma medida da família. "Não cheguei a me isolar porque tenho uma irmã acamada e ela depende totalmente de mim para ter uma vida digna. Foi um período bastante difícil." Ela se emociona ao lembrar. "Chegava em casa chorando e pedindo a Deus para que não os contaminasse". A situação piorou quando colegas próximos se infectaram. O período dramático foi amenizado com ajuda de tratamento psicológico, meditação e o trabalho da espiritualidade.

"Perdi o medo a partir do momento em que conversei com Deus e refleti que caso eu ficasse doente e morresse, teria entendido que já teria cumprido minha missão neste plano. Apenas o pedi que guardasse minha irmã de tudo isso e que isso ocorresse que a permitisse antes da minha partida, que ela voltasse a andar sem depender de ninguém para nada", imaginava, delimitando que, a partir daí, começou "a viver um dia de cada vez."

Lá na primeira onda, ela chegou a trabalhar 84 horas semanais. "Muitos colegas estavam adoecendo e os pacientes não poderiam ficar sem assistência", explica. Com a diminuição de casos, mortes e hospitalizações, foi como se houvesse um armistício. "Já sonhava em ter os nossos abraços de volta, a normalidade da atividade física, e pelo menos pequenas reuniões em pequenos grupos mesmo sendo com máscara", almejava. Com todos os cuidados, mesmo trabalhando em exposição extrema ao vírus diariamente, ela nunca se infectou. Nem a mãe ou a irmã. Um alívio.

Ela estava de férias até o início de fevereiro. Ao retornar, deparou-se com a realidade novamente trágica. "Minha equipe surtada, com muito mais medo que antes, olhares angustiantes. A ficha só caiu quando passei a ver gente nova e sem comorbidades morrendo, quando me passaram a quantidade exorbitante de doentes esperando uma vaga de UTI." A segunda onda tem sido muito mais exaustiva. Além de os profissionais estarem bastante cansados, percebe-se que essa variante do vírus "tem sido traiçoeira".

Aos profissionais que atuam nas unidades de alta complexidade, o paciente Covid-19 apresenta um desafio a mais com relação a outras doenças. "O que vai para UTI tem dificuldade de lidar com essa troca respiratória, o pulmão dele fica comprometido. Os que ficam em ventilação mecânica, a gente tem de estar fazendo ajuste, colhendo exame, alterando a conduta a todo momento. Ajuste fino no cuidado", explica o médico intensivista Zilfran Teixeira, presidente da Sociedade Cearense de Terapia Intensiva (Soceti).

Ele trabalha no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), no Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) e no Hospital Antônio Prudente. Ele é categórico: "A gente não tem profissionais com qualificação para cuidar de todos esses leitos. Estamos em situação de guerra". Ele diz que a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) sugeriu "exceções com o objetivo de salvar vidas." A orientação é colocar pessoas com mais experiência coordenando as unidades e médicos com menos experiência conduzindo diretamente o paciente. A resolução sugere a proporção de um médico a cada dez pacientes em UTIs.

A situação é preocupante porque muitos médicos intensivistas experientes estão sobrecarregados. Do ponto de vista de expertise, agora as equipes sabem como conduzir melhor e isso gera mais conforto aos profissionais. "Uma jornada de 12 horas já é muito exaustiva. Tem gente passando 24, 36 horas. Não é recomendando mas não tem gente para colocar", aponta.

"Está muito difícil atualmente em preencher as escalas pois a linha de frente está adoecendo e o mais frustrante e ver que a ficha de uma parcela da população ainda não caiu", salienta Daniely. 

 

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