As despedidas com Gilmar de Carvalho raramente eram definitivas. Suas partidas acompanhavam a possibilidade de um encontro futuro. Os planos para um abraço, uma nova conversa, uma outra entrevista, um próximo livro, um projeto. E, na pandemia, esses compromissos ficaram mais improváveis. “Quando tudo isso passar, vamos nos ver de novo”. Tantos dizem essa frase na esperança de que o coronavírus já não seja um problema em alguns meses. As palavras, que viraram um bordão, são, na verdade, uma maneira de expressar a fé. Tornaram-se a crença de que, em algum momento, haverá reencontros - e todos estarão ilesos. Mas, na noite de sábado, 17 de abril, o professor, jornalista e pesquisador da cultura cearense Gilmar de Carvalho morreu em decorrência de Covid-19, aos 71 anos.
Ele estava internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital particular desde o dia 20 de março. Durante o período, surgiu o “Grupo Amigos Gilmar”, que começou com a curadora e pesquisadora de artes visuais, Dodora Guimarães. Pouco tempo depois, o que era apenas a movimentação de oito pessoas se transformou em uma rede com mais de 100 integrantes. Era uma iniciativa para informar sobre a saúde dele, reunir recursos para o tratamento e formar uma corrente de energias positivas.
A grandiosidade dessa mobilização é o reflexo da importância que o professor teve na vida dos cearenses e na cultura do Estado. Autor de mais de 50 livros, Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho atuou em várias áreas: no Jornalismo, na Publicidade e, principalmente, na pesquisa sobre os saberes populares do Nordeste.
Como professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde trabalhou por três décadas, formou milhares de profissionais da Comunicação. Na área, deixou um legado extenso, com publicações de livros como “Publicidade em cordel: o mote do consumo” (1994), “A televisão no Ceará, 1959-1966: indústria cultural, consumo e lazer” (2004) e “O Gerente Endoidou: ensaios sobre Publicidade e Propaganda” (2008).
Mas também era apaixonado pela cultura cearense. Neste espaço, sua contribuição é evidente. Escreveu dez obras apenas sobre o poeta Patativa do Assaré (1909 - 2002); encantou-se pela literatura de cordel e produziu “Lyra popular: o cordel do Juazeiro” (2006), “Moisés Matias de Moura: o cordel de Fortaleza” (2011), entre outros; fez amizades com os mestres; viajou pelo interior do Ceará em busca de narrativas; fascinou-se pelas pessoas que formavam as terras do Estado; e deixou em vida dezenas de livros, como “Madeira matriz: cultura e memória” (1999) e “Memórias da xilogravura” (2010).
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Além da área acadêmica, ainda foi reconhecido por seus romances e obras teatrais. “A obra de Gilmar de Carvalho em teatro, romance, ensaios e artigos nos reconecta a nós mesmos enquanto povo cearense porque perscruta a construção e a reconstrução de nossas identidades”, afirma Ricardo Guilherme, dramaturgo e diretor teatral. Para ele, a matéria-prima do pesquisador foi unir o passado, o presente e o futuro em seu trabalho. “Mesmo quando discorre sobre uma determinada época, seu olhar tem todos os tempos o tempo todo por ser transversal em relação à história, o que o faz reprocessar e atualizar o mito da chamada cearensidade”, explica.
Seu interesse irrefreável por gente fez com que estudasse diferentes linguagens artísticas, regiões e saberes populares. Essa curiosidade apareceu em meados de sua juventude. Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho, nascido em 1949, em Sobral, mudou-se para a capital antes dos dois anos de idade. Em Fortaleza, tinha breves contatos com o sertão por causa de sua madrinha, que vivia na cidade de Granja.
“Fui um menino chato, destes que leem tudo, de Proust a Joyce, de Guimarães Rosa a Clarice Lispector. Tinha o nariz empinado. Devia ser insuportável”, disse em entrevista para O POVO, em outubro de 2020. Aquele garoto desinteressado de suas raízes se transformou após uma viagem para Juazeiro do Norte, em 1976. “Voltei completamente mexido. Vi um mundo que não compreendi, num primeiro momento, mas que sabia novo, sincero, sem afetação, sem frescuras. Era o mundo da religiosidade e das tradições populares”, disse.
“O Gilmar era um intelectual orgânico e inteiro. Sua importância para a cultura passa pelo intelectual, porque construiu um pensamento e um repertório em torno dos conceitos de cultura, ação cultural e política cultural”, comenta o secretário da cultura do Estado do Ceará, Fabiano dos Santos Piúba. Entretanto, ele ressalta outros trabalhos: “Para além do pensamento, o professor e pesquisador tem uma atuação social e política também como criador, artista, escritor, editor e curador das artes e da cultura. Portanto, o pensar e o fazer são indissociáveis."
“Gilmar de Carvalho pensou e imprimiu um jeito de ver, ler e interpretar o Brasil e a cultura brasileira. E o mais bonito disso tudo era que seus projetos acadêmicos e artísticos foram sempre pensados no coletivo. Nada era para ele. Todos os seus projetos acadêmicos e artísticos tinham um caráter social e coletivo”, indica Fabiano Piúba.
“Ele doou toda sua inteligência e atuação acadêmica e política para o Ceará. Para um Ceará que brota debaixo do chão e aflora com a cultura de sua gente. Assim foi como professor, pesquisador, jornalista, escritor e curador. Creio que ele deve ser lembrado nessa diversidade reunida em uma única pessoa que sempre estava bonita para chover. Gilmar era uma chuva no sertão.”
Até algum dia, Gilmar.
O Gilmar de nossas memórias
Nem toda a importância de Gilmar de Carvalho para a cultura cearense está registrada oficialmente. Era um incentivador. Estimulava a elaboração de projetos artísticos e fomentava a produção de quem conhecia. E isso só pode ser lembrado por meio das memórias de seus parentes, amigos e alunos. A cantora e compositora Mona Gadelha, por exemplo, recorda as várias vezes em que o professor a ajudou. "Ele tinha essa habilidade de perceber as coisas e colocar em um recorte, em uma perspectiva histórica, e isso era fascinante nele", diz a artista.
Ela lembra muitos momentos em que o jornalista esteve presente para incentivá-la. Em um desses dias, tinha apenas um fim de semana para finalizar o projeto de pesquisa para aplicar a um mestrado. Então encontrou-se com ele na rua e decidiu não desistir, porque o escritor havia pedido para tentar.
“Depois ele foi na minha defesa. Ele ficava o tempo todo perguntando quando eu ia publicar. Tinha até pensado que ele faria o prefácio... Ele era uma pessoa que queria ver você brilhar.. Tinha essa generosidade muito própria de pessoas com vocação de mestre. Queria ver o sol brilhar para todo mundo”, lembra.
Espedito Seleiro, mestre da arte em couro, aponta que Gilmar não era somente um pesquisador, mas também um grande divulgador da cultura caririense. "Por onde ele andava, fazia questão de mostrar o nosso trabalho e falar sobre a nossa gente. Muitas vezes até levou nossos produtos para vender lá em Fortaleza. Ele mesmo organizava tudo", afirma. O artesão afirma que, com a morte de Gilmar de Carvalho, "os cearenses e os brasileiros perderam um grande ser humano e a cultura perdeu um grande pesquisador."
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"Gilmar era o que podíamos dizer de um cearense do tamanho do mapa do Ceará. Dedicou sua vida a escrever de "nóis" e por nós. Sua escrita uniu o sertão e o mar, o erudito e o popular. Fez do desconhecido, reconhecido, e enriqueceu a literatura do Nordeste", reflete Alemberg Quindins, músico popular, historiador e fundador da Casa Grande - Memorial do Homem Kariri.
Antenado às linguagens culturais de modo amplo, Gilmar também surpreendeu. É o que conta a jornalista e ex-aluna Teresa Monteiro, que, em 1998, tentava definir o tema de sua monografia. "Sabia, apenas, que queria abordar alguma coisa sobre o negro - quer fosse na música ou no cinema. Sabendo disso, o Gilmar - do nada! - me chega com uns quatro CDs dos Racionais e me pergunta: 'Você conhece?'. Nunca tinha ouvido falar! Detalhe: os CDs eram dele!", compartilha.
"A monografia e, sobretudo, a orientação fluíram a partir desse encontro de ideias, rimas e gerações. Depois de formada, ele sempre me perguntava se eu havia prosseguido na pesquisa sobre rap... Em outubro (de 2020), Gilmar disse que estava querendo voltar ao assunto, mas de uma maneira atualizada", afirma.
Esse incentivo é o mesmo relatado por Magela Lima, jornalista, ex-aluno e amigo de Gilmar. "Ele deixou um legado muito grande de pensamentos. Um pensamento que muda o Ceará. Ele apostou numa intelectualidade. Ele achava bonito as pessoas estudarem, ele era entusiasmado pelo conhecimento em uma época que as coisas ficaram muito superficiais. Ele estimulou muita gente a seguir carreira na pesquisa e na vida intelectual.", destaca Magela.
O secretario da cultura Fabiano Piúba viveu situação semelhante. Quando ainda estava no início dos seus 20 anos, participou de um evento Sindicato dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará (ADUFC). Durante um sarau poético, encontrou Gilmar de Carvalho, seu vizinho de bairro. “No final, ele me procurou, sentou-se ao meu lado, deu um apoio moral e afetivo e me deu uns conselhos para que eu acreditasse na minha capacidade crítica e criativa. E foi assim que nos tornamos amigos”, lembra.
Mas todos que conheceram o pesquisador ressaltam a forma como seus comentários chegavam ao ponto - sem rodeios. Mona Gadelha lembra que as frases dele eram sempre necessárias. E Piúba também comenta: "O seu pensamento era afiado como lâmina e leve como a pena de uma patativa. Sempre a nos provocar, instigar, mas inspirador e estimulante com seu afeto." (Clara Menezes, Luciano Cesário e Mirla Nobre)
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Nas páginas do O POVO
A contribuição de Gilmar de Carvalho para a cultura cearense talvez ainda seja imensurável. Com dezenas de livros, peças de teatro, romances e outros projetos realizados, ele estava sempre com novos projetos para começar. Durante sua trajetória, O POVO registrou centenas de momentos marcantes do pesquisador, que também costumava contribuir com textos analíticos para o jornal. Confira algumas das reportagens que foram registradas em anos anteriores.
Gilmar, obrigado
“[...] A poesia tem esta capacidade de nos deixar embevecidos. Ela pode nos salvar nestes momentos de crise e da dificuldade de sonhar e de levar a palavra para outros limiares”. Assim Gilmar concluiu o último e-mail que trocamos em debates de poesia que tivemos, e, como sempre, ensinando-me muito. Há poucos meses prometeu-me uma vinda à Varjota, logo depois que a tempestade causada pela pandemia passasse, infelizmente é duro acreditar que isto não será possível.
Conheci Gilmar por sua ficção na prosa e dramaturgia, e não demorou para me adentrar em seu trabalho como pesquisador da cultura popular. Logo no primeiro contato, um atravessamento único com “Parabélum”. Esse, um marco literário no país, é responsável por eu repensar tantos caminhos da arte que, jovem, começava a trilhar ali neste sertão de mundo que vivo. Neste romance, enovelado de tantas referências, Gilmar alicerça o seu dizer político mais importante que consegui decifrar, que se estende à toda sua obra e talvez seja o seu maior legado, o de encontrar em sua terra, seu povo, suas vivências e tradições, o centro de seu mundo. Pra nossa sorte, esse lugar é o Ceará.
A partida repentina de nosso desbravador, professor, pesquisador e artista da cultura popular, deixa em todos que tiveram um contato, seja com sua obra ou com sua pessoa, um sentimento de orfandade, e isso não é em vão. Gilmar tomou o Ceará pelo braço, indo a cada pedaço de seu chão, seja sertão, serra ou praia, e o convidou para se enxergar, para se celebrar, para se dizer e se orgulhar do que tem, do que sabe, do que faz. Gilmar nos deu parte do Ceará que sempre tivemos. Disse de suas gentes, seus sabores, suas celebrações, suas coreografias, seus símbolos, seus sons, dando luz ao que de fato era preciso ver, e, através de suas palavras traduziu um tanto de nós. Por muitas vezes permitiu que fôssemos a própria poesia “que nos deixa embevecidos [...]” e que nos “salva dos momentos de crise e da dificuldade de sonhar”.
É difícil despedir-se de alguém que sempre foi luz. Mais que suas palavras e livros, deixa-nos o legado de, enquanto humano, distribuir humanidade. Obrigado sempre, mestre, por nos ensinar tanto. Obrigado.
Mailson Furtado, escritor, diretor teatral, produtor e gestor cultural cearense
Gilmar, um rio que marcou nossas vidas
A dor deste domingo (ou sábado) triste não tem chuva que lave, não tem sol que ilumine, não tem nada que a gente possa dizer: a vida continua. Não tem palavra alguma que dê conta do tamanho dessa perda. Para os amigos, para a cultura cearense, para a mal conhecida e pouco difundida cultura brasileira fica uma lacuna difícil de ser preenchida.
Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho (1949 – 2021), o nosso querido professor Gilmar de Carvalho, autor do revolucionário romance Parabélum (1ª dentição, edição do autor, 1977) e de mais de meia centena de livros documentais da história social, da antropologia cultural, da dramaturgia, da arte e da cultura cearense foi um intelectual incansável, abnegado, “fuçador”, destemido e de águas profundas. A sua sólida formação intelectual tinha o lustre da invenção, do jogo criativo, do bom humor apurado. O seu conhecimento não tinha bitola, fronteira ou algum limite.
Gilmar de Carvalho leva com ele um Ceará que ele enxergava por inteiro. Perdemos um amigo, um aliado da história, da arte e da cultura. Com ele aprendemos o valor da amizade, a grandeza do mundo, o destemor diante da vida. Gil era corajoso, valente e solidário. Tudo dele era dividido, partilhado, distribuído.
Conheci Gilmar de Carvalho em 1974. A nossa grande amizade foi como um rio, crescendo com a correnteza. Cultivamos uma cumplicidade tremenda. Foi um amigo irmão em todos os momentos da minha vida desde então. Um interlocutor de todas as horas, atento, perscrutador, cauteloso. Ele sabia ouvir, falar e silenciar.
Qualidades que ele levou para vida acadêmica e para as suas pesquisas de campo. Gilmar conheceu as entranhas do Ceará sertanejo, litorâneo e serrano. Hoje os quatro cantos deste Ceará que rezou para ele nos últimos dias chora pelo tesouro que perdemos para esse tal Covid-19.
Choro com o povo que chora por Gilmar. Porque, quando um irmão parte, a gente olha pros lados e se vê só.
Dodora Guimarães, curadora e artista visual