O retorno do Talibã ao poder no Afeganistão representa a volta de um dos regimes mais opressores contra mulheres em tempos modernos, tendo Estado e religião como instrumentos. É uma das experiências extremas que chegam ao século XXI, nas quais as crenças são usadas para tratar de formas diferentes os gêneros. É possível ser diferente? Dentro da fé islâmica e se valendo do Alcorão, mulheres praticam o feminismo.
O feminismo islâmico como movimento estruturado data dos anos 1980. Ele surge na tentativa de erradicar ideias e práticas patriarcais endossadas como muçulmanas, por terem sido naturalizadas e perpetuadas, e busca recuperar a ideia central do Islã de igualdade de gênero — indivisível da igualdade humana. Assim como na teologia feminista, é a partir da reinterpretação de textos religiosos que essas mulheres visitam os textos do profeta Maomé e atestam a equidade de gênero pela qual lutam.
Cila Lima, pesquisadora do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Mundo Muçulmano (GTOMMM) na Universidade de São Paulo (USP), em sua pesquisa de doutorado, revelou que o movimento feminista islâmico surge em um encontro de outros dois principais movimentos sociais de mulheres muçulmanas: o secular, de caráter político-social, que faz uso de uma narrativa feminista universalista, dirigida a todas as mulheres de sua localidade; e o islamista, que rejeita o feminismo e atua de acordo com leituras literais e de raízes fundamentalistas das fontes religiosas islâmicas.
O movimento feminista secular nasce com foco na participação das mulheres nos espaços políticos e econômicos, mas com uma linguagem secular que abandonava as tradições culturais e religiosas, considerando a religião em si como um fator de opressão. Já o islamista tem caráter fundamentalista, onde as próprias adeptas se autodenominam como antifeministas, seguindo à risca as tradições. Nesse contexto, o feminismo islâmico surge como uma válvula de escape para aquelas mulheres que não podiam exercer sua religião e sua cultura de forma plena e outras que exerciam a religião de forma bastante opressiva, invisibilizando as mulheres.
"Essas mulheres que não se encaixavam mais nesse movimento criaram uma narrativa que une religião e feminismo. Uma linguagem religiosa, um paradigma religioso, que passou a ter uma metodologia feminista como uma linguagem religiosa, então a fusão dos grupos é na narrativa", explica Cila.
A principal vantagem do feminismo islâmico é que ele consegue ter uma narrativa clara para todas as mulheres, independentemente do território onde estão. No Oriente Médio, por exemplo, existem países com inúmeras restrições às liberdades individuais das mulheres, como é o caso do Iraque, Síria, Paquistão e Afeganistão. Em cada território, as reivindicações mais urgentes são diferentes. No caso do feminismo islâmico, a luta é pela reinterpretação do discurso, algo que não muda de contexto em relação ao território.
"Então, dá pra estudar esse corpo desterritorializado como uma narrativa. Certo que quando estudamos limites e atuação desse movimento, percebemos diferenças na atuação dos países. As ONGs feministas islâmicas trabalham com a inserção na educação e a ideia do efeito dominó." Cila explica ainda que cada ONG feminista islâmica leva algumas participantes de vários países. A ideia é formar aquelas pessoas para ter argumentos e narrativas para chegarem em seus países e desenvolverem grupos pra lutar contra a narrativa patriarcal religiosa, criando, assim, multiplicadores do discurso.