Em 2021, celebramos e relembramos os 140 anos da Greve dos Jangadeiros, evento emblemático na história do Ceará e do Brasil, que demarca a relevância dos trabalhadores do mar nos levantes e contestações ao sistema escravista. Nos dias 27, 30 e 31 de janeiro de 1881, bradando o lema "No porto do Ceará não se embarcam mais escravos", os jangadeiros e outros trabalhadores do Porto de Fortaleza se negaram a transportar pessoas escravizadas em suas jangadas para embarcações que partiam rumo ao sul do país.
À frente do levante esteve José Luís Napoleão, liberto natural de Icó, que conquistou a sua liberdade, e a de membros da sua família, poucos anos antes de se insurgir contra o tráfico interprovincial. A sua primeira esposa, Maria Simôa da Conceição, a Tia Simôa, é outra protagonista nesse contexto, relembrada no presente e sobre quem sobraram pouquíssimos registros históricos, infelizmente.
A Jangada Libertadora foi uma embarcação pertencente a Francisco José do Nascimento, o famoso Dragão do Mar, um dos participantes e líder do segundo levante dos jangadeiros, que ocorreu em 30 de agosto de 1881. O objeto foi transformado em símbolo do movimento libertador do Ceará e, como tal, viajou com seu proprietário para as festas do Ceará Livre, realizadas no Rio de Janeiro, em 1884. A declaração da abolição cearense movimentou o cenário nacional e pôs em evidência o Dragão do Mar como um grande líder abolicionista.
Conduzida em procissão cívica ao Museu Nacional, a jangada foi doada ao primeiro museu do país no dia 13 de abril de 1884, gerando onda de protestos e reclamações incisivas da classe senhorial. Celebrada e contestada, a Libertadora foi consagrada junto com o Ceará e o Dragão do Mar, estampando publicações, como a capa da Revista Ilustrada, de Agostini, gravada em medalhas, pintada em quadros, enfim, espraiando-se junto com a campanha abolicionista.
Infelizmente, a Libertadora desapareceu na virada do século XIX para o XX. Transferida ao Museu Naval em 1886, a famosa jangada ainda participou de uma regata comemorativa à abolição em 1888, na Enseada de Botafogo. Foi, provavelmente, a sua última aparição ao público.
Em 1921, um sobrinho do Dragão do Mar despertou o interesse de outro museu pelo objeto. Oyama Brígido Bastos escreveu um artigo no jornal O Nordeste e trocou cartas com Gustavo Barroso, fundador e diretor do Museu Histórico Nacional. Após buscas, este último constatou o desaparecimento da peça, mas a atuação do diretor produziu documentos e registros que nos permitem pensar nesse objeto e na sua história. O incêndio recente do Museu Nacional, em 2018, liquidou os poucos registros da passagem da embarcação pela instituição.
Ao longo do século XX, familiares do Dragão do Mar colaboraram decisivamente para manter viva a sua memória e dos movimentos dos jangadeiros do Ceará, participando de solenidades e celebrações, doando objetos a museus, contribuindo com a escrita de publicações - caso da colaboração de Luiz Gonzaga Brígido Bastos, irmão de Oyama, com Edmar Morél - eles foram partícipes dos trabalhos de memória que, na atualidade, permitem novos olhares para a nossa história. Além disso, a família até hoje é responsável por cuidar do jazigo do famoso líder que, longe do que divulgaram recentemente, nunca esteve desaparecido, pois sempre contou com o zelo de Dona Maria das Dores, filha de Luiz Gonzaga.
Quando voltamos os olhares ao passado, é imprescindível, portanto, compreendermos as múltiplas estratégias de escrita da história e, principalmente, os caminhos pelos quais a memória é tecida e elaborada. Do mar ao museu, passando pelo seio familiar e pelas estratégias políticas dos jangadeiros e de movimentos sociais ao longo do tempo, a jangada segue nos lembrando de protagonismo olvidados, esquecidos e muitas vezes silenciados, mas que foram imprescindíveis para o desmonte da escravidão em nosso país. Hoje, ela continua a nos recordar das urgências de nosso país e dos muitos levantes ainda necessários para a construção de uma sociedade menos desigual e com garantias cidadãs para todas e todos.