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Das raízes do comércio aos problemas históricos
Reportagem

Das raízes do comércio aos problemas históricos

Um dos principais pontos comerciais de Fortaleza se divide entre os atrativos que trazem clientes e comerciantes de outras regiões do país e os frequentes conflitos na região
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Comércio ativo e frequentes confrontos marcam a história da região (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Comércio ativo e frequentes confrontos marcam a história da região

"O nosso lugar é aqui, a nossa feira é aqui", essas foram as palavras utilizadas por Maria Santos, 50, ao ser questionada sobre os confrontos ocorridos durante as últimas semanas nos arredores que envolvem a feira da José Avelino.

O sentimento da feirante não nasce de um mero acaso, já que a história da região é pautada pelo comércio desde o surgimento da capital cearense. Inerentes à existência das negociações comerciais, surgiram os conflitos na região. As primeiras intercorrências são datadas do século XVIII, quando o local ainda era ocupado por indígenas.

"Aquele território da José Avelino, toda aquela região, era a Vila do Forte de Nossa Senhora de Assunção, o embrião da cidade. Principalmente, onde era o antigo Mercado Central, ali ficava a feira velha, isso no período colonial", explica Gleudson Passos, professor do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

O historiador destaca que o desenvolvimento daquela região da cidade é marcado por conflitos que até hoje se repetem. "O comércio de Fortaleza começou ali, e aquele espaço já era um espaço de disputa. Os portugueses, para se instalarem, precisaram entrar em conflito".

Passos afirma que as palavras da comerciante sobre o sentimento de pertencimento da feira ao local são justas ao avaliar o contexto histórico.

"O nosso comércio é histórico, a nossa vocação é o comércio. Quando um feirante fala 'o nosso lugar é aqui', ele tem razão, a referência histórica do comércio de Fortaleza é naquela área", explica o professor.

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Já no século XIX, o comércio existente nos arredores de onde encontra-se a rua José Avelino hoje passou a enfrentar um novo empecilho: a disciplina urbana. Com o surgimento do primeiro Mercado Central de Fortaleza, os ambulantes foram encaminhados para o prédio, mas a medida também falhou.

"Com a modernização das cidades e a formalização que se deu de forma lenta e gradual das atividades comerciais, a função do ambulante passa a ser rechaçada", explica o professor Eustógio Dantas, doutor em Geografia Humana e especialista em geografia urbana e comércio ambulante.

À época, de acordo com Dantas, os adeptos às atividades formais se tornaram grandes críticos dos modelos de negócio alternativo, já que, por não pagarem impostos, poderiam oferecer valores melhores aos clientes.

Aos poucos, o grande fluxo de feirantes da região foi se restabelecendo. Passos explica que esse tipo de processo foi uma constante durante a construção da história da Capital.

"Fortaleza sempre recebeu muitos retirantes vindos da seca, além de muitos estrangeiros, esses aí tinham dinheiro para construírem o seu comércio. Os outros não tinham e foram fazendo de informalmente mesmo", explica.

O historiador relata que o problema seguiu sem solução, passando do período colonial para o período imperial, seguindo para a república até os dias de hoje. As dificuldades impostas pela seca no sertão também acompanham a história da José Avelino, já que migrar para a Capital sempre representou esperança.

"O problema da José Avelino é um problema estrutural que passa por toda a sociedade brasileira. Desemprego, poucas oportunidades, principalmente em termos de educação", destaca.

Para Dantas, especialista em geografia urbana, o problema ainda possui entraves para ser solucionado, já que não há perspectiva de grandes mudanças no cenário social e econômico do país.

"A tentativa de resolução desse problema está concentrada na estratégia inicial de fixação do comércio ambulante, que, com o tempo, acaba não sendo suficiente para conter o segmento dos ambulantes, que tomam as ruas para garantirem a sobrevivência", explica o professor, ao justificar a constância de conflitos históricos na região.

Já para Passos, que diz ter convivido com "frequentes confrontos" na região, ainda nos anos 90, a melhor solução só apareceria com um grande investimento a médio/longo prazo.

"É preciso criar oportunidade para essa parcela da população se qualificar, falo das gerações futuras. Para que essa não seja a única opção, a população segue crescendo, as oportunidades não estão aparecendo e as pessoas precisam sobreviver", finaliza.

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Atual gestão é mais uma a buscar soluções

Desde o dia 18 agosto, data em que um dos feirantes da José Avelino morreu durante um confronto com a Guarda Municipal, a situação da tradicional feira da região passou a ser uma das principais pautas da Prefeitura de Fortaleza. A prova disso é a criação do comitê que visa dialogar com os feirantes e trazer soluções para o local.

Os primeiros dias de diálogo entre feirantes e Prefeitura até aparentavam alguns avanços, como explicou Valderina Silva, diretora da Associação dos Feirantes e Ambulantes do Estado do Ceará.

"A informação que temos é de que seremos liberados das 22h até as 5h da manhã, mas a gente vai lutar para ficar até 7h. Temos um acordo para ficarmos até as 7h durante as próximas duas semanas", relata.

Entretanto, em entrevista ao O POVO, o secretário de Governo, Renato Lima, interlocutor da Prefeitura de Fortaleza no comitê, explicou que o comitê ainda não estabeleceu horários de funcionamento e que o comércio de rua segue sendo ilegal.

"O Poder Executivo não decidiu absolutamente nada em relação ao dia e horário de funcionamento. Não estou aqui para fazer nenhum juízo de valor, nem para aprofundar ainda mais o conflito. Apenas registrando que não houve tomada de decisão quanto a dias e horários de funcionamento", esclarece.

Desde a última quinta-feira, 26, até o dia 3 de setembro, a Prefeitura de Fortaleza realiza um levantamento de dados dos feirantes da rua José Avelino e entorno. A ação é uma estratégia do comitê e busca fazer um diagnóstico da comercialização.

Lima explicou que uma das principais dificuldades enfrentadas tem sido dialogar com o grande grupo de feirantes, que possuem diversas lideranças.

"Nós não conseguimos identificar uma liderança legitimada que fale em nome de todos. Não conseguimos saber se são mil, dois mil ou três mil pessoas", o levantamento que está sendo realizado pela Prefeitura busca, justamente, entender quem são os feirantes da José Avelino, onde vivem e o que vendem no local.

Apesar de reconhecer o andamento do diálogo entre feirantes e representantes do poder público, para Valderina, ainda restam alguns pontos para serem acertados entre feirantes e a Prefeitura.

"Espero que liberem a feira até as 7h da manhã, até 5h da manhã não tem como o feirante vender. Eu não aceito que a feira vá até 5h, assim como não aceito que ela vá para outro local", destaca.

Por fim, a diretora lamentou, ainda, que foi preciso um colega perder a vida para a situação ganhar a atenção necessária. "Hoje vemos que a gestão parou para escutar a categoria, porque nenhuma outra gestão nos deu essa oportunidade que estamos tendo agora. Precisou uma pessoa morrer pra isso acontecer", lamenta.

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Linha de frente relata dificuldades para realizar fiscalização

A Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) diariamente vai às ruas por meio de seus agentes, em busca de trazer um melhor ordenamento urbano para a cidade de Fortaleza. Em entrevista ao O POVO, Laura Jucá, superintendente do órgão, relata quais são os principais problemas encontrados na José Avelino.

"Trabalhamos para preservar o ordenamento público. O que existe lá é um comércio ambulante totalmente irregular, ele abrange várias vias do Centro. Nos dias de feira, temos um maior contingente de fiscais para que possamos garantir o trânsito livre de pedestres e de veículos, além de garantir a proteção de bens públicos que estão lá", explica Jucá.

Ainda em 2017, havia uma previsão da Prefeitura de Fortaleza, que a Feira da José Avelino encerraria suas atividades em maio daquele ano. Entretanto, além de não chegar ao fim, a situação se agravou.

"Existe hoje um contingente muito maior de pessoas e esse ordenamento tem se tornado cada vez mais difícil. Por causa do desemprego e da situação econômica do país, a percepção dos fiscais é que aumentou muito o número de pessoas", exalta a superintendente da Agefis.

Além dos problemas históricos de ordenamento urbano, outra preocupação do órgão é com a propagação da Covid-19, em Fortaleza. De acordo com a Agefis, na última semana, em um dos dias de feira, chegaram pelo menos 53 ônibus fretados vindos de outros estados, o que pode acabar por acelerar o aumento de casos na Capital, com novas variantes.

"Estamos analisando tudo isso por meio do comitê, o problema de modo geral. Todo esse histórico e as possibilidades de solução que temos para a José Avelino. Não consigo adiantar nada, mas vamos ter resultados do trabalho desse comitê em breve", destaca.

Ao ser questionada se confiava em uma breve solução para o histórico conflito no local, Jucá afirma ter esperança e acredita que o comitê possui um dever social com a cidade de Fortaleza.

"É um anseio muito grande de toda a população e dos comerciantes do Centro. É uma resposta que o comitê tem que dar para a cidade. Estamos trabalhando para isso, ainda esse ano a gente dá essa resposta de solução para a cidade", complementa.

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Relembre

Vendedor ambulante desde a adolescência, casado e pai de uma criança, Naison Abdenego de Sousa Barros, de 31 anos, foi morto em confronto dos feirantes com a Guarda Municipal de Fortaleza.

 

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