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Mais de 260 localidades sofrem com falta de água em Canindé
Reportagem

Mais de 260 localidades sofrem com falta de água em Canindé

Município localizado a cerca de 120 km da capital cearense enfrenta problemas hídricos agravados pela falta de carros-pipa que garantam o abastecimento
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Paisagem de Canindé, com estátua de São Francisco em destaque (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Paisagem de Canindé, com estátua de São Francisco em destaque

Na BR-020, a poucos quilômetros da entrada do município de Canindé, uma placa anuncia uma ponte sobre um rio que leva o mesmo nome da cidade. Entretanto, no local onde a água deveria fluir, não resta nenhum vestígio da existência do rio. Esse é apenas um dos indícios da grave situação hídrica que assola Canindé.

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Sob um céu azul, sem qualquer sinal que indique a possibilidade de chuvas, o sol escaldante, facilmente, faz a temperatura ultrapassar a marca dos 35 graus. No caminho até a localidade de Longá, que está a 20 km do centro de Canindé, a dura realidade do sertão cearense se escancara.

Seguindo pela CE-257, antes de chegar à pequena estrada de terra batida, milhares de árvores secas compõem o cenário que desafia a existência de qualquer tipo de vida na região. É diante desse panorama que surge a casa de Dona Tilda, 70, que vive na localidade há 50 anos.

"O poço já não tem mais vazão de água, hoje não teve. É muito difícil a questão da água para nós e, principalmente, para os bichos. Fui abrir a torneira do poço e não saiu água para os bichos beberem", relata a moradora que, mesmo diante das adversidades, luta para manter uma criação de animais para autosustento.

Apesar da escassez, Tilda relata que ainda possui um pouco de água para beber e utilizar em alguns afazeres domésticos, mas ressalta a necessidade do racionamento para não correr o risco de ficar sem nada.

"Tem sido muito difícil, a felicidade é que temos essa cisterna e tava dando para pegar água a semana inteira, todo dia botando só um pouquinho para ver se aguenta", explica Dona Tilda que, pela fé, acredita que um dia a água possa compor, novamente, o cenário daquela região.

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"Agora é pedir a Deus que esse poço volte a ter água. A gente tenta economizar, mas os bichos bebem, não tem como dizer para eles que eles bebam pouco, porque a água tá pouca, tem que matar a sede deles", desabafa.

Além da falta do recurso vindo da própria natureza, o socorro que chega por meio de carros-pipa também apresenta problemas. É o que explica o coordenador da Defesa Civil de Canindé, Júnior Mourão.

"Somos 266 localidades afetadas pela estiagem e já está passando de estiagem para seca. São cerca de 13 mil pessoas afetadas, na prática, só estamos com seis caminhões, que não abastecem 10% dessas famílias", explica Mourão.

De acordo com o coordenador da Defesa Civil de Canindé, atualmente, os seis carros-pipa atendem apenas 26 das mais de 260 localidades necessitadas. Questionado se há risco de total desabastecimento para parte dessa população, Mourão afirma que algumas famílias já estão passando por esse problema.

"A população já está afetada. Essas seis pipas não dão condições de atender a demanda. Hoje, já temos famílias passando necessidade de água", afirma.

Carmen Castro, 44, é uma das moradoras da localidade de Longá, que vem sendo vítima da seca no sertão cearense. Com um carrinho de mão e dois baldes de plástico, ela caminha cerca de 30 minutos até uma das cisternas ainda abastecidas, quase todos os dias para ter um pouco de água em casa.

"Tem sido muito difícil, desde janeiro que a gente não tem água, não temos açude, não temos poço, só temos a cisterna, que depende do serviço do Exército, a gente não tá tendo água", lamenta.

Sem as chuvas para reabastecerem as cisternas da região, o abastecimento por meio dos carros-pipa se torna a única opção. Porém, diante do atual contingente de pipeiros, nem sempre a água chega com a frequência que deveria, o que agrava o racionamento por parte dos moradores.

"Uso a água para lavar roupa, para uso do banheiro, para tomar banho, para dar água aos bichos. A gente tem que economizar o máximo que puder. Deixo de lavar roupa quando a água tá pouca, vou lavar na cidade, na casa da minha mãe", explica.

Sem perder as esperanças, Carmen é mais uma "movida pela fé", na crença de que o socorro necessário virá em breve. "Nós temos fé em Deus, quando se tem fé em Deus, podemos dizer que temos tudo nas mãos. Espero que o Exército mande água para nós, porque dependemos disso", finaliza.

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Paisagem desolada em Canindé(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Paisagem desolada em Canindé

Pipeiros alegam desgaste com Operação Carro-Pipa

A seca causada pela falta de chuvas não é uma novidade no sertão cearense. Porém, o problema tem se agravado durante os últimos anos diante da dificuldade de execução do programa Operação Carro-Pipa (OCP), administrado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), do Governo Federal, por meio do Exército Brasileiro.

Em entrevista ao O POVO, o presidente do Sindicato dos Pipeiros do Estado (Sinpece) Everardo Bezerra, afirma que a demora no repasse do pagamento aos pipeiros e a burocracia para participar do programa têm afastado a categoria do serviço essencial no Estado.

"No edital diz que o pipeiro presta conta e eles (o Exército Brasileiro) têm 30 dias para fazer o pagamento, se passavam 70 a 90 dias e os pipeiros não recebiam. Isso sem dizer a burocracia com a qual o Exército trata os pipeiros", relata.

Além da demora no repasse do dinheiro, outra reclamação da categoria é, de acordo com Everardo, a não atualização dos valores pagos aos pipeiros, que receberiam valores referentes ao ano de 2019.

"Você pega os pipeiros, que têm uma demanda de custo muito alta, precisam pagar o óleo, dar manutenção ao caminhão, os preços sobem, mas não se sobe o valor da quilometragem que o pipeiro ganha com isso", alega.

De acordo com o presidente do Sinpece, muitos colegas de categoria estão vendendo o tanque de água dos caminhões, e buscando trabalho em transporte de madeireiras do Pará. Outros, mesmo com o tanque pipa ainda disponível, se negam a trabalhar com o valor oferecido.

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Wilson Júnior, 49, é um ex-pipeiro da OCP. Ele mostra ser um exemplo real do que foi retratado pelo presidente da categoria. De acordo com Wilson, estava insustentável trabalhar na operação de abastecimento.

"Está inviável rodar, porque o combustível sobe todo dia e o que recebemos não é reajustado, também existe a questão da demora para receber o dinheiro. Muitos pipeiros estão desistindo, eu mesmo rodei mais de 10 anos para o Exército, mas já está com mais de dois anos que não rodo mais", explica.

O ex-pipeiro da OCP conta que já teve cinco caminhões cadastrados no programa, mas que já não possui mais nenhum vínculo. Mesmo longe das operações, Wilson reconhece a grave situação hídrica das localidades de Canindé.

"A demanda é grande. Em Canindé, a necessidade (de água) é nos quatro cantos, eu rodo em Canindé e sei que a questão da água está crítica. Aqui já tivemos muitas rotas, e quando um desistia tinham uns 20 ou 30 pipeiros brigando pela vaga", relata.

No dia 19 de outubro, o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, afirmou durante uma audiência da Comissão de Seguridade Social e Família, que a OCP estava garantida até novembro deste ano, mas que dependeria da liberação de recursos para ter continuidade.

De acordo com o MDR, atualmente, 40 municípios cearenses estão com reconhecimento federal vigente por seca ou estiagem. O MDR declara que busca alternativas junto ao Ministério da Economia para possibilitar a execução da Operação Carro-Pipa.

A Pasta explica que também está em tratativas com o Ministério da Defesa (MD) para que este utilize os recursos já disponibilizados - que somam R$ 52 milhões, dos quais R$ 20 milhões já estão sendo utilizados.

O Ministério do Desenvolvimento Regional diz, também, que está realizando um levantamento do aporte necessário para viabilizar outras suplementações de crédito necessárias para que a operação não seja prejudicada futuramente.

O MDR confirma que o município de Canindé conta com seis carros-pipa e afirma que "não foi identificada, no sistema da Defesa Civil, nenhuma solicitação de ampliação da operação para o município".

De acordo com a Pasta, "mais de R$ 21 milhões serão descentralizados pelo MDR ao Exército para assegurar a execução da OCP". A Portaria, que prevê a abertura do crédito suplementar, foi publicada no último dia 14, no Diário Oficial da União (DOU), afirma o MDR.

O POVO procurou o Centro de Comunicação Social do Exército para debater as críticas realizadas pelos pipeiros nesta reportagem. O Centro informou que a demanda seria respondida pela Seção de Comunicação Social do Comando Militar do Nordeste (CMNE-Recife/PE), que não atendeu às ligações, assim como não respondeu ao e-mail enviado pela reportagem.

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Trabalhadores em Canindé(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Trabalhadores em Canindé

Governos Municipal e Estadual também buscam soluções para o problema hídrico

A crítica situação de algumas localidades do município de Canindé é reconhecida pela Prefeitura Municipal e pelo Governo do Estado. A prefeita de Canindé, Maria do Rosário, explica que tem contratado carros-pipa por meio da Prefeitura para tentar amenizar o problema.

"Só conseguimos para Canindé seis carros-pipa (da OPC), mas, com essa preocupação que nós temos, eu tenho contratado com a verba da Educação, três carros-pipa para poder ajudar, e, na Secretaria de Agricultura, mais outra pipa", relata.

De acordo com a gestora municipal, a questão hídrica tem se agravado durante os últimos anos. Em algumas localidades, a escavação de poços não tem surtido efeito.

"O problema é muito sério. A gente vê o bicho bruto morrendo de sede, muitas vezes você manda a máquina cavar cacimba no leito dos rios e não dá água. Muitas vezes, tiramos do bolso para perfurar o poço em uma comunidade e o solo já não tem mais nem água", comenta a chefe do Executivo municipal.

Maria do Rosário explica que a região central de Canindé não está desabastecida graças ao socorro vindo do Governo do Estado, por meio da ligação do açude General Sampaio a Canindé, realizado por meio de uma adutora.

"Se não fosse isso, Canindé estaria bem pior. Se não tiver a Operação Carro-Pipa até chegar o inverno e encher os nossos reservatórios, eu confesso que o município não tem condições de dar conta de uma demanda tão forte", ressalta.

Para Francisco Teixeira, secretário dos Recursos Hídricos do Ceará, o Governo do Estado consegue garantir o abastecimento na sede municipal, nas áreas urbanas, mas reconhece as dificuldades de levar essa água até a zona rural.

Rocivalda Martins, moradora da comunidade de Mangá, atingida pela falta de água(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Rocivalda Martins, moradora da comunidade de Mangá, atingida pela falta de água

"Canindé, a sede, é totalmente abastecida pela adutora construída pelo Estado através da Cogerh. Agora, na zona rural, no Ceará, já fizemos mais de 9 mil poços, de 2015 pra cá, e instalamos chafarizes e dessalinizadores".

Teixeira explica que é preciso uma cooperação geral para solucionar o problema da escassez em algumas localidades, mas destaca que, em determinadas situações, o problema é quase impossível de ser resolvido, o que gera uma dependência da Operação Carro-Pipa para algumas comunidades.

"Às vezes, com todo mundo fazendo sua parte, ainda é difícil resolver, porque ali não passa um riacho, o poço é seco, se o carro-pipa não vai, fica difícil daquela comunidade sobreviver. Às vezes, é difícil entender como algumas famílias sobrevivem naquele local".

O secretário explica que o problema é agravado em localidades mais descentralizadas de suas sedes municipais, já que há um esforço do Governo Estadual, de acordo com Teixeira, de manter as sedes municipais abastecidas.

"Canindé tem essa característica de ser muito ruim para construção de poços, muitas vezes você constrói o poço e está seco. Fica difícil você garantir água para três ou quatro mil famílias que moram de forma bem isolada. Para puxar água da adutora, são necessárias dezenas de quilômetros de canos para localidades com três ou quatro casas", completa.

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