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A serpente invisível do Ceará
Reportagem

A serpente invisível do Ceará

Surucucu pico-de-jaca ou malha-de-fogo é capturada no maciço de Baturité. Pesquisadora da UFC está investigando se a maior serpente peçonhenta da América Latina está em extinção no Ceará
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SERPENTE surucucu-pico-de-jaca. Maior cobra peçonhenta da América Latina foi capturada no Maciço de Baturité (Foto: Thieres Pinto / Divulgação)
Foto: Thieres Pinto / Divulgação SERPENTE surucucu-pico-de-jaca. Maior cobra peçonhenta da América Latina foi capturada no Maciço de Baturité


Cientistas cearenses estão eufóricos com a captura de uma das serpentes mais raras e peçonhentas do Brasil, a surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta rhombeata). A malha-de-fogo, como também é conhecida no Ceará, foi encontrada por moradores de um sítio no Maciço de Baturité e recolhida, em novembro último, por uma equipe de biólogos encabeçada pela mestranda Thabata Cavalcante dos Santos, 27. A serpente, com alta capacidade para se camuflar, pode se tornar quase invisível numa floresta mesmo com seus 4 metros de comprimento.

A malha-de-fogo colhida na floresta úmida de Baturité ainda é macho jovem e mede um metro e cinquenta de tamanho. As últimas capturas da serpente, de acordo com dados do Núcleo Regional de Ofiologia da Universidade Federal do Ceará (Nurof/UFC), ocorreram em 1999 e 2017 a partir de chamados da comunidade para retirada do animal de propriedades particulares.

“Até o momento, não tínhamos nenhuma pesquisa voltada para entender sobre a surucucu que só ocorre no Ceará na Serra de Baturité. Tínhamos somente a descrição de ocorrência do animal, em 1999, feita pela professora Diva Borges-Nojosa e pelo professor Lima-Verde”, conta Thabata Cavalcante, mestranda do Programa de Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade da UFC.

 

Existem duas subespécies de surucucus no Brasil, a Lachesis muta muta com distribuição para a Amazônia e a Lachesis muta rhombeata com ocorrência endêmica na Mata Atlântica


Além da raridade por sua coloração muito modificada em habitat natural, a cobra tem baixa densidade populacional. E, segundo explica Thabata Cavalcante, o sucesso da reprodução do animal “é totalmente dependente da preservação dos habitats”. 

A postura dos ovos e os nascimentos da ninhada estão diretamente relacionados ao “uso (sustentável) do solo, das modificações feitas no ambiente e até do clima e da ocorrência das chuvas”, pontua a bióloga.

Thabata Cavalcante está investigando o estado de conservação da surucucu-pico-jaca no Ceará para saber se a espécie entrará ou não na lista da fauna ameaçada de extinção no território cearense. Em outubro de 2018, a Secretaria estadual do Meio Ambiente (Sema) e outras instituições iniciaram pesquisas para elaboração da Lista Vermelha da Fauna local.

A cientista explica que existem duas subespécies de surucucus no Brasil, a Lachesis muta muta com distribuição para a Amazônia e a Lachesis muta rhombeata com ocorrência endêmica na Mata Atlântica. A mesma encontrada na floresta de Baturité.

Recentemente, estudos científicos juntaram as duas subespécies em um mesmo grupo, a da Lachesis muta. E convencionaram a distribuição da Amazônia à Mata Atlântica. No entanto, a União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN) ainda considera a Lachesis muta rhombeata (subespécie do Ceará) e a coloca com o “status de vulnerabilidade”.

 

A pesquisa sobre o estado de conservação da surucucu pico-de-jaca, desenvolvida na UFC, está vinculada também ao Museu de História Natural do Ceará Professor Dias da Rocha da Uece



Porém, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Lachesis muta não estaria ameaçada de desaparecer. A polêmica ganhou mais relevância científica quando o estado do Espírito Santo a colocou na Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção e, também, com o grau de vulnerável no meio ambiente de lá.

“Há esse debate dentro da biologia e meu trabalho é levantar dados para avaliar a conservação da surucucu-pico-de-jaca dentro do Ceará. Para podermos colocá-la (ou descartá-la) na lista da fauna cearense ameaçada” de sumir dos biomas, afirma Thabata Cavalcante. A pesquisa sobre o estado de conservação da surucucu pico-de-jaca, desenvolvida na UFC, está vinculada também ao Museu de História Natural do Ceará Professor Dias da Rocha da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

A Lista Vermelha da Fauna do Ceará está sendo elaborada por pesquisadores da Sema, da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fucap), da UFC, da Uece, da Universidade Rural de Pernambuco e pela Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis).

A SURUCUCU DE BATURITÉ

Nome científico: Surucucu pico-de-jaca, malha-de-fogo, surucutinga

Nome popular: Lachesis muta rhombeata

Habitat no Ceará: Maciço de Baturité (Ceará), distante 172,6 km de Fortaleza

Tamanho: Pode chegar a 4 metros. É maior serpente peçonhenta da América Latina

Estado de conservação: Vulnerável para o União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN). Não ameaçada para o Ibama

Alimentação: Mamíferos, anfíbios, lesmas, pássaros e outros animais

Encontrada do Ceará: 1999, 2017 e 2021

Captura: 10/11/2021, em um sítio no maciço de Baturité. Equipe espalhou cartazes de “procura-se” a surucucu-pico-de-jaca, nas redes sociais. A cobra foi levada para o Nurof/UFC

Pesquisa: projeto Malha-de-fogo. UFC e Museu de História Natural do Ceará Prof. Dias da Rocha/Uece. Financiado pela da Doppel Store.

Pesquisadora: Thabata Cavalcante dos Santos – bióloga e mestranda do Programa de Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade na UFC. Não tem bolsa de pesquisa. Orientada pelo professor Hugo Fernandes e coorientada por Rodrigo Gonzalez

Equipe: John Andrade, Robério Freire-Filho e Lídia Silva

Soltura: Depois da coleta de dados, libertada em uma área de proteção ambiental, sem habitações por perto

Índice de acidentes com a surucucu é baixo

Além da investigação sobre o estado de conservação da surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta rhombeata) no Ceará, a pesquisa da bióloga e mestranda Thabata Cavalcante dos Santos, 27, deverá contribuir com o sistema público de saúde em Baturité.

Segundo a cientista, nos hospitais do município e das cidades do entorno, “não tem soro antiofídico, só em Fortaleza. É uma das grandes demandas de lá, pois no Ceará o animal tem ocorrência somente na Serra de Baturité e não tem nem o antídoto perto”, constata a pesquisadora do Programa de Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade na Universidade Federal do Ceará (UFC).

Mesmo sendo venenosa, a maior serpente da América Latina é responsável por apenas 1,4% dos acidentes ofídicos ocorridos no Brasil. Dificilmente, alguém será atacado por uma malha-de-fogo. Porém, a desinformação e a falta de educação ambiental levam a matança indiscriminada das cobras.

Segundo Polianna Lemos, 43, coordenadora do Núcleo de Assistência Toxicológica do Instituto Dr. José Frota, em 30 anos, foram registradas apenas seis casos de picadas da surucu-pico-de-jaca no hospital. "É muito raro o registro", afirma. Em caso de acidente na região de Baturité, caso não haja o antídoto, a pessoa deve ser levada para Canindé ou Fortaleza. "As superintendências das Macrorregiões de Saúde do Ceará recebem o soro para tratar pacientes picados por serpentes peçonhentas", informa a médica do IJF.      

Thabata Cavalcante explica que, como é uma cobra peçonhenta e gigante, existe o medo por falta de informação e uma forte pressão de caça contra o animal na serra. “É um ponto que estou estudando e trabalhando com eles, uma construção de confiança até entender as demandas deles com o animal para poder abordar na pesquisa e tentar ajudar”, projeta a bióloga.

Contra as cobras e em especial contra as serpentes venenosas, a exemplo da surucucu, há também mitos que impedem a coexistência entre as pessoas e o animal. “Tenho relato de um grupo que matou cerca de 13 serpentes somente esse ano”, revela a pesquisadora.

No Ceará, a serpente é chamada de malha-de-fogo por acreditarem na lenda que o réptil tem atração por “fogueiras, fogo e até lanternas”. Segundo a lenda, quando atraída pelo fogo, a surucucu entra nas chamas e permanece viva por ter escamas grossas que a protegeriam de morrer queimada.



PREVENÇÃO DE ACIDENTES

1. Polianna Lemos, coordenadora do Núcleo de Assistência Toxicológica do Instituto Dr. José Frota, informa que a surucucu-pico-de-jaca não é um animal agressivo e tem hábitos noturnos

2. A médica afirma que o acidente ocorre, geralmente, quando a pessoa - desavisadamente, em caçadas ou em desmatamentos - se aproxima do habitat da serpente. Principalmente na zona rural

3. O lixo nas proximidades da casa também contribui para acidentes com cobras. Por quê? Porque as serpentes são atraídas para caçar roedores e outras presas que frequentam os entulhos    

4. A surucucu é um animal raramente visto. A pessoa tem de ter cuidado onde coloca a mão numa mata e precisa se vestir adequadamente para fazer trilha em florestas

5. De acordo com dados do Núcleo do IJF, no ano passado, 81 pessoas procuram o hospital por causa de picadas de cobras. Dessas, 79 referentes a serpentes viperídeas (peçonhentas)

6. A jararaca (Bothrops) aparece em 68 ocorrências registradas no IJF, em 2021, seguida por cascavéis

7. Em 2020, foram 139 vítimas foram hospitalizadas no IJF em decorrência de acidentes com cobras. Em 2019, foram 214 atendimentos 

8. Não existem receitas populares para a cura do veneno de cobra. Não é recomendável utilizar ervas, chás e bebidas alcoólicas

9. Também não se usa torniquete nem é aconselhável tentar sugar o veneno da ferida com a boca. Em caso de acidente, lavar o local com água, sabão, manter a vítima deitada, hidratada e procurar a unidade de saúde

10. O IJF fica na Rua Barão do Rio Branco, 1816, Centro de Fortaleza. Fones: 3255.5000/ 0800.250 0880. Site: https://saude.fortaleza.ce.gov.br/images/CEATOX_IJF-compactado.pdf


Fonte: IJF e Banco de Dados do O POVO


Há desinformação sobre as serpentes

Para melhorar os conflitos, as ameaças à surucucu-pico-de-jaca e prevenir acidentes ofídicos, a bióloga Thabata Cavalcante propõe um programa de educação ambiental forte e de longo prazo com os moradores, trabalhadores rurais, trilheiros, bombeiros, polícia ambiental e todos que estão em contato com possíveis ambientes de ocorrência da espécie.

A pesquisadora lembra que ter uma capacitação e saber o que fazer no momento de encontro com a serpente é essencial. Para isso, o poder público em Baturité e nas secretarias de Meio Ambiente do Estado e dos municípios do Maciço de Baturité precisam trabalhar com a multiplicação de informações e distribuição de material de proteção.

Quando for roçar, por exemplo, deve-se utilizar equipamentos protetores. Sempre estar atento onde colocar a mão, onde pisar, onde se sentar e, também, o que fazer quando ocorre um acidente com uma serpente peçonhenta.

“Acredito nas capacitações e disseminação de informações importantes. E, também, em ter o soro antiofídico mais perto das comunidades da serra. Assim, poderemos melhorar essa relação e a perseguição a esse animal tão lindo, importante e representativo de nossa fauna cearense”, afirma Thabata Cavalcante.

Entrevista

Uma cobra não precisa ser atacada

No Ceará, existem 69 espécies de serpentes. Dessas, sete são venenosas. A informação é de Castiele Holanda, 32, bióloga do Núcleo Regional de Ofiologia da Universidade Federal do Ceará (Nurof/UFC).

O POVO – Quantas espécies de cobras já foram descritas no Ceará?
Castiele Holanda – Segunda a lista mais recente da Sociedade Brasileira de Herpetologia, temos 69 espécies de serpentes listadas para o Ceará. Sete são peçonhentas, sendo duas espécies de corais verdadeiras, três jararacas, uma cascavel e uma surucucu.

OP – Como deve ser a relação de coexistência entre as pessoas e as cobras?
Castiele Holanda – As cobras, assim como todos os animais silvestres, devem ser respeitadas por nós. Tanto pelo direito que eles têm em existir (lembrando que é crime maltratar ou matar animais silvestres) quanto pelos benefícios que elas trazem para o equilíbrio dos ecossistemas e nas pesquisas de novos fármacos para nós humanos. Muitas substâncias presentes nos venenos das serpentes têm potencialidades médicas.

OP – O que fazer quando avistar uma cobra?
Castiele Holanda – Serpentes ou quaisquer animais silvestres não devem ser manipulados sem necessidade. Por isso, ao avistar em trilhas e em passeios deve-se apenas desviar dos mesmos. Se encontrar dentro de casa, o mais apropriado é chamar os Bombeiros ou Polícia Ambiental para a retirada segura e posterior soltura do animal.

OP – O que o Nurof/UFC tem feito para a difusão de informações?
Castiele Holanda – O Nurof-UFC atua há quase duas décadas na educação ambiental e treinamento adequado de pessoas no Ceará, tanto para reduzir o número de acidentes quanto conscientizando a população para preservação desse grupo de animais tão mal vistos pela sociedade. Fazemos isso através de palestras, exposições e cursos de treinamento para escolas, faculdades, repartições públicas militares e da área da saúde. Também atuamos nas redes sociais e blog para expandir o conhecimento acerca das serpentes. As pessoas podem entrar em contato pelo @nurofufc e nurofextensao@gmail.com e pelo telefone: 3366.9801.

 

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