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A cor da dor: a invisibilidade de dados raciais na violência de gênero no Ceará
Reportagem

A cor da dor: a invisibilidade de dados raciais na violência de gênero no Ceará

Ceará ignora raça de 73% das vítimas de violência doméstica. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) revelam 118.107 registros dessa natureza entre 2012 e novembro de 2021
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CAPA 01 - violência contra a mulher (Foto: OP )
Foto: OP CAPA 01 - violência contra a mulher

 

 

Durante os nove meses em que viveu junto ao namorado, a servidora pública aposentada Alba Lopes passou por diversas situações de violência psicológica e moral. “Ele queria estar sempre junto, dizia que quando eu precisava viajar a trabalho era porque estava na farra, sempre discutia. Mas, em público, não demonstrava nada disso”, relata. “Fui vendo um projeto de amor se transformar em desamor”.

Parte do trabalho dela é divulgar informações sobre os direitos das mulheres e, meses antes, havia participado de formações sobre violência doméstica. “O que eu conhecia teoricamente, se materializou. É difícil. Mas fui me preparando para pedir a separação”, conta. No dia da eliminação do Brasil na Copa de 2018, ela viu o ex-companheiro sair de casa. Dias antes, depois de violência sofrida durante festa familiar, ela havia recorrido à Casa da Mulher Brasileira, em Fortaleza, e, com todo o processo em mãos, parentes e amigos a ajudaram a retirar os pertences dele de casa.

 

Alba Lopes(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Alba Lopes

Era fim de semana quando Alba chegou ao equipamento local de referência no apoio às mulheres em situação de violência e “foram horas de atendimento”. “Isso porque chegavam casos mais graves e porque lá o acolhimento é muito completo e a gente preenche vários formulários, não só o boletim de ocorrência.” A história da sobrevivente ressoa a de diversas outras mulheres, mas tem um diferencial: durante a denúncia, sua raça foi perguntada e levada em consideração nos registros.

São 162.548 casos de da violência doméstica denunciados no Ceará entre 2012 e novembro de 2021. Deste triste montante, o Estado desconhece a raça ou a cor da pele da maioria das vítimas. A invisibilidade chega a 118.107 mil registros (73%). Anualmente, o dado sobre a cor das vítimas é deixado de lado em 67% a 76% dos registros.

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O levantamento feito com exclusividade pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC, revela também que, das 44.441 vítimas que possuem a identificação da cor da pele, 75% são mulheres pardas — segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — com até o ensino médio completo. Os registros são da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), e compreendem o período de janeiro de 2012 a novembro de 2021.

 


Esforços insuficientes


Apesar dos esforços de comunidades científicas, grupos raciais e entidades de direitos humanos, o campo de registro dessa informação se mantém invisibilizado. Os dados são insuficientes para traçar o perfil das vítimas e o impacto sobre este estrato populacional e a situação compromete o direcionamento de políticas públicas.

Para a socióloga Ana Paula Portella, especialista em violência, o levantamento evidencia esforço ainda insuficiente do sistema de segurança e justiça a fim de de melhorar os registros e a investigação policial. O racismo estrutural é outro fator que entra na conta.

“Existem algumas informações que são extremante básicas para qualquer pessoa: a idade, o sexo, a raça e a cor da pele. E deveriam estar presentes em todos os casos de agressão. Na violência, toda e qualquer informação é importante para caracterizar as situações que levaram aquelas pessoas a morrerem daquela forma”, explica a pesquisadora.

A socióloga destaca ainda que, muitas vezes, a ausência da informação sobre raça se dá por desinteresse da investigação policial. “A negligência está muito associada à cor da pele da vítima. É uma evidência muito clara de racismo no sentido de que são vítimas menos valorizadas, que, na percepção dos agentes da justiça, não valeriam a pena o esforço de uma investigação correta e detalhada.”

Por fim, Portella acrescenta que existe uma dificuldade muito grande em caracterizar a raça e a cor da pele das pessoas. “Persiste na sociedade brasileira uma desvalorização e desumanização da população negra. A identificação da raça e da cor das vítimas de violência é um problema antigo e se insere em um campo mais amplo da identificação racial no Brasil.”

 


Sem dados, sem diagnóstico e política pública frágil

 

Teresa Esmeraldo, que é coordenadora do Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência da Universidade Estadual do Ceará (NAH/Uece), concorda sobre a necessidade de “uma capacitação para as equipes que trabalham na rede de atendimento para que possa ter padrões” nas estatísticas. "Não é possível fazer boa política pública, se você não tem uma padronização desses dados com o nível de complexidade que o problema exige”, expõe. “E a gente sabe que, historicamente, não só aqui no Ceará, mas no Brasil, há uma dificuldade relativa aos dados, né? Cada pesquisa diz um número; se você prestar atenção, não tem um banco de dados seguro.”

Levantamento realizado pela central DATADOC nos sites da Secretarias de Segurança Pública e sites oficiais dos Governos dos 27 estados brasileiros e do Distrito Federal identificou que 22 unidades federativas disponibilizam estatísticas sobre violências contra mulheres e 12 especificamente sobre violência doméstica. Apenas Minas Gerais e Rio de Janeiro mostram proativamente dados sobre violência doméstica e que incluem informações sobre cor da pele das vítimas.

“Transparência e divulgação dessas informações são tão importantes porque se você não tem evidências, você não diagnostica e se não tem o diagnóstico, não pode exigir políticas para superar essas barreiras institucionais”, aponta Fernanda Marques, assistente social e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre a Mulher da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. “As políticas supostamente atenderiam a todas as mulheres, mas, na verdade, seguem reproduzindo a vulnerabilidade das mulheres negras.”

“Pesquisas apontam que somente 15% a 20% dos casos das violências domésticas são denunciados. Então já há subnotificações. Quando não se tem o quesito raça nos dados que vão subsidiar os formulários, a invisibilidade é ainda maior”, completa Fernanda.

 
 
 

Campo raça é inexistente também em B.O eletrônico

 

Para Érica Canuto, que é promotora de justiça do Rio Grande do Norte e coordena o Núcleo de Apoio à Mulher Vítima da Violência Doméstica e Familiar (Namvid) do Ministério Público potiguar, “a primeira decisão é uma decisão administrativa e governamental”. “Fazer inserir essa pergunta sobre raça no boletim de ocorrência é uma decisão para tornar visível e a partir daí as políticas públicas são informadas”, afirma.

“A gente não pode dizer mulher de maneira universal. Toda mulher tem outros marcadores sociais que podem torná-la mais ou menos vulnerável”, expõe, ao enumerar raça, faixa etária, condição social, localização e escolaridade como fatores necessários às análises. Ela explica ainda que as decisões sobre preenchimento e organização dos registros sobre violência e criminalidade cabem a cada estado.

No Ceará, os boletins de ocorrência não têm um campo destinado a informar sobre raça/cor das vítimas de um crime. Na delegacia eletrônica da Polícia Civil do Estado é possível denunciar injúria e ameaça, mas não há opção específica para violência doméstica. Ao abrir o formulário, são solicitadas informações pessoais, havendo inclusive campos para nome social, identidade de gênero e orientação sexual (avanços notados especialmente para a população LGBTQIA+). Entretanto, não há espaço para informar, ainda que de forma opcional, a raça/cor.

 

 

 “Falta aos nossos gestores mais preparo, mais cuidado em relação a esse quesito. É uma realidade de vários estados do Brasil”, observa Giane Silvestre, pesquisadora no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP). “Infelizmente isso não é uma novidade nem uma exclusividade do tema da violência doméstica. Em geral, quando são crimes fatais, a gente costuma ter esses dados das vítimas pelos laudos e outros documentos juntados ao processo.” De acordo com a pesquisadora, uma forma “relativamente fácil” de resolver a questão seria criar um campo nos Boletins de Ocorrência e torná-lo de preenchimento obrigatório.

 


Estado afirma que atua com protocolos específicos

 


De acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), a Superintendência de Pesquisa (Supesp) “realiza contínuos estudos para o aprimoramento dos dados obtidos por meio do Sistema de Informação Policial (SIP3W)” — utilizado nas delegacias para o registro de procedimentos, e obtenção dos levantamentos. “Atualmente, está em fase de conclusão um estudo que tem o objetivo de aperfeiçoar os critérios para a coleta de dados de raça na plataforma”, afirma a Pasta.

Além disso, a SSPDS assegura que os profissionais de segurança pública possuem disciplinas de formação na Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp) as quais estabelecem “uma formação humanizada e de intervenções técnicas, propiciando a formação de profissionais preocupados com as questões sociais e a resolução de conflitos”.

A Pasta afirma ainda que para o atendimento de vítimas de violência, a Polícia Militar do Ceará (PMCE) atua com protocolo específico do Batalhão de Policiamento de Prevenção Especializada, “que consiste em ações de repressão, acompanhamento e escuta das vítimas, realizadas por agentes de segurança com uma formação diferenciada para o serviço”. “Em Fortaleza, uma parceria com a Rede Aquarela, possibilita o recebimento de denúncias que são atendidas por policiais militares do Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (Gavv)”, completa.

No Ceará existem dez Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), nas cidades de Fortaleza, Pacatuba, Caucaia, Maracanaú, Crato, Iguatu, Juazeiro do Norte, Icó, Sobral e Quixadá. Nos locais onde não há uma unidade especializada, a população pode comparecer às delegacias municipais, metropolitanas e regionais para registrar os crimes, que devem ser apurados pela Polícia Civil. 

 

 

Metodologia e dados utilizados

 

A Central DATADOC utilizou dados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), uma série histórica, de 2012 a novembro de 2021, obtida via Lei de Acesso à Informação (LAI). Foram analisados diversos aspectos deste tipo de violência, como faixa etária, idade, zonas e horários de ocorrência deste tipo de violência, além da ausência de informação sobre a questão racial, extremamente importante para o direcionamento de políticas públicas de enfrentamento. Como forma garantir a integridade e confiabilidade da nossa análise, disponibilizamos aqui as bases e documentos utilizados na produção deste material.

Expediente

Edição DataDoc:Thays Lavor
Edição O POVO+:Fátima Sudário e Regina Ribeiro
Edição de arte: Cristiane Frota
Texto:Marcela Tosi e Thays Lavor
Análise e visualização de dados:Alexandre Cajazeira e Thays Lavor

Edição do impresso: André Bloc

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