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Pacote do Veneno: liberação de agrotóxicos é "retrocesso histórico", alertam ambientalistas
Reportagem

Pacote do Veneno: liberação de agrotóxicos é "retrocesso histórico", alertam ambientalistas

O Projeto de Lei 6.299/2002 foi aprovado na Câmara dos Deputados e segue para o Senado Federal. Para órgãos de saúde e do direito ambiental, proposta representa retrocesso histórico e "desmantelamento da agenda ambiental brasileira"
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Produtos podem chegar à mesa com mais "veneno" (Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira Produtos podem chegar à mesa com mais "veneno"

O Brasil segue em tendência nociva a partir da utilização indiscriminada de agrotóxicos para a produção agropecuária. O risco vai além do que se põe à mesa. Desde a formulação, passando pela utilização, até o consumo, a exposição a esses produtos pode causar uma série de doenças, desde irritações na pele ao câncer. Atualmente, já são utilizados agrotóxicos proibidos em grande parte dos países desenvolvidos do mundo.

Apesar dos já 20 anos de tramitação, o PL 6.299/2002 foi aprovado em regime de urgência Câmara dos Deputados há cerca de um mês. O texto — hoje apensado junto a outros 40 projetos — revoga a Lei dos Agrotóxicos (lei 7.802/1989) e flexibiliza as regras de aprovação e comercialização de tais produtos químicos. 

Dos ingredientes ativos de agrotóxicos registrados no Brasil para uso agrícola, 41,5% são proibidos na Comunidade Europeia e 25,6% nos Estados Unidos, segundo pesquisa publicada em revista da Fiocruz.

Entre pontos considerados preocupantes está a proposta que retira do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o poder de decisão sobre o registro de agrotóxicos, que fica exclusivamente com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), pasta historicamente próxima ao agronegócio e distante do ambientalismo. 

Dentre os projetos, está ainda a alteração da nomenclatura de "agrotóxicos" para "pesticidas". Se o pacote de medidas for aprovado, as repercussões são radicais, afetando pesquisa, experimentação, produção, comercialização, importação, exportação, embalagens, destinação final e fiscalização desses produtos. 

Os principais afetados, no que se refere à saúde, são "agricultores, pecuaristas, agentes de controle de endemias, trabalhadores de empresas desinsetizadoras e trabalhadores das indústrias de agrotóxicos", aponta nota técnica do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Contudo, a entidade alerta que "toda a população está suscetível a exposições múltiplas a agrotóxicos, por meio de consumo de alimentos e água contaminada". 

Para ambientalistas e órgãos de saúde, o Brasil segue na via oposta ao fluxo mundial, em um cenário de retrocesso. Segundo Tarin Mont'Alverne, doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), é importante destacar que o País é responsável pela importação de 80% de todos os agrotóxicos produzidos por empresas sediadas na União Europeia. Bloco que, em 2019, adotou o Pacto Verde Europeu, que tem como um dos objetivos reduzir a utilização destes produtos tóxicos.

"Os estados membros estão adotando legislações bem especificas de proibição de produção, armazenamento e comercialização de agrotóxicos contendo substâncias proibidas na União Europeia. No entanto, empresas europeias têm exportado substâncias que são proibidas a comercialização nos países do bloco, mas são enviadas para o Brasil", relaciona. Nesse cenário, o Brasil se situa como um depósito de produtos tóxicos.

Segundo a professora, "o pacote do veneno vai prejudicar ainda mais a situação alimentar dos brasileiros".  "Estamos, de fato, acompanhando um desmantelamento da agenda ambiental brasileira", define.

O pacote segue ao Senado Federal e, se for aprovado, "será um dos maiores retrocessos ambientais" do Brasil, segundo a pesquisadora. "Neste momento, os senadores precisam refletir sobre alguns pontos importantes relacionados a agenda internacional: esse projeto não dialoga com a Agenda 2030 "Plano de ação que envolve 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 169 metas estabelecidos pela Organização das Nações Unidas a serem atingidos até 2030. 'São um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade'. "  e viola o o direito à saúde, à segurança alimentar e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado", conclui. 

  • Para saber mais

Artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública (CSP), revista mensal da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz): Situação regulatória internacional de agrotóxicos com uso autorizado no Brasil: potencial de danos sobre a saúde e impactos ambientais. 


 

Os efeitos dos produtos tóxicos à saúde

Profissionais que trabalham com a manipulação de agrotóxicos, como agricultores e pecuaristas, estão entre os mais afetados

FORTALEZA,CE, BRASIL, 29.01.2022: Feira de produtos orgânicos no estacionamento do shopping Rio Mar Kennedy.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO)
Foto: FABIO LIMA
FORTALEZA,CE, BRASIL, 29.01.2022: Feira de produtos orgânicos no estacionamento do shopping Rio Mar Kennedy. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

O principal impacto da aprovação do projeto é o aumento da exposição da população a agrotóxicos mais perigosos, com maior risco, inclusive, teratogênico (pode causar danos ao embrião ou fetos durante a gravidez) e carcinogênico (com potencial de causar câncer), avalia Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz Ceará, doutor em Epidemiologia e Saúde Coletiva, com estudos em saúde e ambiente e saúde no campo. 

Ele explica que as doenças mais associadas aos agrotóxicos podem se separar em dois grandes grupos, as doenças agudas, e as crônicas. "As agudas são como intoxicação, vômito. Já as crônicas são associadas principalmente ao câncer, alterações hormonais", detalha.

O pesquisador frisa ainda que, no Brasil, a moradores de áreas rurais exibem maiores taxas de câncer do que a da cidades. "A população rural é duplamente exposta. Não só ocupacionalmente, porque muitos trabalham nas lavouras, mas também por morar próximo a áreas de produção. Então, também sofrem com a contaminações dos aquíferos e pela ingestão pois, muitas vezes, também comem alimentos contaminados. Uma tripla exposição", analisa o pesquisador Fernando Carneiro.

Segundo ele, há vários casos de pulverização aérea de agrotóxicos que, muitas vezes, atingem aldeias indígenas ou quilombolas. Com relação ao tipo de exposição, os consumidores acessam "doses menores" que são acumuladas em anos de consumo de alimentos contaminados. Essa seria uma exposição de caráter crônico. "Já quem manipula tem uma exposição de caráter agudo. Assim como quem recebe pulverização, que normalmente tem problemas de pele, tem tonturas", acrescenta. 

Na perspectiva do pesquisador, no caso da aprovação final do PL 6.299, "o Brasil vai se tornar a lixeira do planeta, com danos irreversíveis". O Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida, produzido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, aponta que "a opção pelo agronegócio é determinante de riscos que levam ao adoecimento e morte das populações expostas aos agrotóxicos".

Como alternativa as entidades destacam propostas baseadas na produção agroecológica, "de caráter coletivo, democrático, de promoção da vida e produção de alimentos saudáveis". 

O Ceará no contexto do uso de agrotóxicos

Senado aprova uso de aviação agrícola para combate a incêndios
Foto: Xx
Senado aprova uso de aviação agrícola para combate a incêndios

O Ceará foi o primeiro estado brasileiro a proibir a pulverização aérea de agrotóxicos. A lei 16.820/2019, denominada Lei Zé Maria do Tomé, homenageia o líder rural morto no município de Limoeiro do Norte, na região do Jaguaribe, após denunciar o uso indiscriminado de agrotóxicos, além de grilagem em terras públicas.

"O PL 6.299 mantém a competência dos Estados para legislar supletivamente sobre o uso de agrotóxicos (que passa a denominar "pesticidas"), de modo que a Lei Zé Maria do Tomé permaneceria constitucional, como o é hoje", analisa o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), autor do projeto tornado lei, sobre possíveis impactos do "Pacote do Veneno" na determinação estadual.

Para Roseno, o projeto não afetaria a aplicação em si da lei estadual, mas "o impacto positivo da lei sobre a saúde da população cearense e sobre o meio ambiente seria bastante reduzido".

"Isso porque o Pacote do Veneno aumenta a permissividade na liberação e, portanto, na utilização de diferentes agrotóxicos de alta toxicidade. Significa falar em mais agrotóxicos mais tóxicos sendo despejados nos alimentos e na natureza, em larga escala, pelo agronegócio, com todas as implicações que isso traz para a saúde da população", explica.

Apesar da flexibilização — se o PL 6.299 for aprovado —, a lei Zé Maria do Tomé continua determinando que o método de pulverização aérea, cuja capacidade de espalhamento e contaminação é extremamente alta, não seja aplicado no território. Segundo Roseno, a lei inédita no Brasil tem sofrido ataques. Porém, já há projetos semelhantes tramitando em 18 estados.

Alternativas livres e limpas

Agricultores da Rede EcoCeará (Foto: Arquivo EcoCeará)
Foto: Arquivo EcoCeará Agricultores da Rede EcoCeará

Em contraponto ao Projeto de Lei que flexibiliza a utilização de produtos nocivos à saúde humana, a Política Nacional de Redução de Agrotóxico incentiva práticas sustentáveis de base orgânica ou agroecológica. Proposta é incentivada por instituições de saúde e pesquisa como caminho alternativo. 

"Esse (projeto) está parado e poderia ser uma grande alternativa porque ele estimula a redução do uso do agrotóxico e a (ampliação da) agroecologia, agricultura orgânica. Acho que é o grande desafio de políticas públicas que precisamos investir nesse país", pontua Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz Ceará, doutor em Epidemiologia e Saúde Coletiva. 

Rafael Tomyama, membro da equipe da Fundação Cepema e assessor da Rede EcoCeará de Agroecologia, destaca que a agroecologia "se constitui numa alternativa consistente, mas implica numa mudança de mentalidade e de práticas sociais que nem sempre encontram adesão no conjunto de agricultores(as) familiares". Segundo ele, as dificuldades têm diversas causas arraigadas, como a forma de produção, a falta de incentivo (ou do incentivo para produção convencional) até questões fundiárias. 

A Rede EcoCeará abrande 400 agricultores e agricultoras das regiões principalmente da Serra da Ibiapaba, Maciço do Baturité e Sertão Central. "A Rede EcoCeará trabalha mais com a ideia de uma organização de famílias agricultoras agroecológicas, intercâmbios de conhecimentos científicos e saberes populares sobre técnicas agrícolas tradicionais", explica.

Ele frisa que a Rede não é formada apenas por produtores(as), mas diversos agentes sociais como: consumidores(as) e interessados(as) em geral. "Isso também envolve o papel de acadêmicos(as), pesquisadores(as), gestores(as) públicos(as), empresários(as) e empreendedores(as), profissionais liberais, lideranças, sindicalistas e participantes do Terceiro Setor, etc", destaca Rafael Tomyama.

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