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Campo de concentração do Patu completa 90 anos em compasso de espera
Reportagem

Campo de concentração do Patu completa 90 anos em compasso de espera

Dos sete campos levantados no Ceará durante a Seca de 1932, Patu é o único cujas ruínas permanecem de pé, em edificações do século passado. O POVO foi até Senador Pompeu contar essa história
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Seu Joaquim nasceu em 20 de outubro de 1920 e morreu em 1º de março de 2022 (Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Seu Joaquim nasceu em 20 de outubro de 1920 e morreu em 1º de março de 2022

 

 

Era início de 1932. A seca se intensificava nos cerca de 10 meses sem inverno no Sertão Central cearense. As linhas ferroviárias da Rede de Viação Cearense faziam parte do desenvolvimento comercial e industrial da Fortaleza da Belle Époque "Período entre o final de século XIX e início do século XX, em que a elite fortalezense passou a se guiar por ideais de desenvolvimento cultural europeias, em especial francesas. Sob influência do modernismo, teve como um dos maiores símbolos o Passeio Público, no Centro"  e, ao mesmo tempo, testemunhavam a sede, a fome e a pobreza extremas. Próximo aos trilhos, as gestões do interventor federal no Ceará na época, Roberto Carlos Vasco Carneiro de Mendonça, e do presidente Getúlio Vargas instalaram sete campos de concentração. Entre eles, o Campo do Patu, no município de Senador Pompeu, a 268 quilômetros de Fortaleza.

O local é o único dos campos de concentração cearenses cujas ruínas permanecem de pé, no aguardo de tombamento estadual. A Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) prevê que o processo seja concluído “até o final do primeiro semestre deste ano”. Já professores do campus de Quixadá do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), que participam dos estudos na poligonal, e a Prefeitura de Senador Pompeu afirmam que o prazo acordado é 31 de março.

“Toda a área tem 16 edificações de diferentes portes e em diferentes estados de preservação. Não foram feitas para ser um campo de concentração e, sim, ponto de apoio aos trabalhadores que iriam construir a barragem do Açude do Patu”, aponta o arquiteto e urbanista Rérisson Máximo, professor do IFCE. “Como passaram uma década desocupadas, quando veio a seca, foi um local propício para alocar os retirantes. Inclusive pela proximidade com a linha férrea.” Ele explica que levantamento arquitetônico e topográfico está sendo feito por equipe técnica do IFCE, em cooperação com a Secult.

 

Valdecy Alves, advogado, pesquisador e ativista social, afirma que a demanda pelo reconhecimento do local como patrimônio da cultura e da história cearenses começou ainda em 1995. “Um grupo de universitários e artistas, que se denominou Equipe Cultural 19-22, fez o primeiro levantamento histórico do Campo do Patu e abriu um processo coletivo pedindo o tombamento”, lembra. “Não é um fim em si mesmo, mas um meio para que todos os campos sejam lembrados; para que a gente aprenda com nossa história. Os campos ainda estão vivos nas periferias, no racismo estrutural… E Fortaleza é filha dos campos, dos retirantes que vieram para cá e construíram a cidade.”

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No Patu, segundo matéria publicada pelo O POVO em 30 de junho de 1932, estiveram concentrados 16.221 retirantes. É como se, considerando a população atual do município, seis a cada dez senadorenses tivessem de viver nos prédios não terminados e nos abarracamentos. Ou então, conforme estatísticas da Prefeitura de Fortaleza, como se todos os moradores da Paupina não pudessem sair do bairro e dependessem de pequenas quantidades de alimento (muitas vezes de baixa qualidade ou estragado) distribuídas por uma inspetoria. A família de Joaquim Barbosa, de 101 anos, estava entre os flagelados da seca.

 

"Os campos de concentração ainda estão vivos nas periferias, no racismo estrutural… E Fortaleza é filha dos campos, dos retirantes que vieram para cá e construíram a cidade." Valdecy Alves, advogado, ativista e pesquisador

 

A professora Maria Jardenia Alves Lima é uma das netas de Seu Joaquim. Ela lembra que, ainda criança, sentava no alpendre ao final da tarde para ouvir as experiências de vida de nossos pais e avós. “Entre os assuntos, as dificuldades já enfrentadas na vida sempre eram passadas como uma lição. Meu avô nos relatava como ele e sua família tinham sobrevivido durante a seca de 1932”, conta. “Naqueles relatos era claro que a dor, o sofrimento e a triste lembrança daquela fase ainda o acompanhavam fortemente. Não pode ser de forma alguma deixado de lado; é sentir viva a história de minha família, minhas raízes; é a memória local de um povo, manter viva a memória desse povo.”

Para Agna Ruth Martins, diretora da Cultura de Senador Pompeu, o tombamento tem ainda outra importância: trará apoio financeiros e meios para garantir a preservação e o uso adequado da área. “Com o tombamento municipal de 2019 conseguimos algum avanço. Mas, precisamos de parcerias. Toda a área da Cultura do município tem cerca de R$ 30 mil (de recursos) por ano. Para ter uma ideia, só para restaurar parte do casarão da Inspetoria, tem a projeção de precisar de R$ 200 mil”, expõe.

Segundo a diretora, a Prefeitura de Senador Pompeu tem realizado ações de conscientização, educação patrimonial e registro de moradores que habitam a poligonal do Campo do Patu. Além disso, duas vezes ao ano os arredores dos casarões são limpos e um plano de intervenção e urbanização está sendo elaborado. Simultaneamente, a Secult afirma estar na fase de instrução processual do tombamento, consolidando os dados levantados e aguardando novas estatísticas dos colaboradores do projeto.

 


 

"Ter vida é a melhor coisa do mundo", diz seu Joaquim na última entrevista

Aos 101 anos, Joaquim Barbosa vivia tranquilo com filhos, netos e bisnetos na localidade de São Mateus, a 30 km de Senador Pompeu. A longevidade e o bom humor guardaram memórias de experiência vividas ainda criança, quando esteve com a família em dois campos de concentração durante a Seca de 1932.

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O POVO entrevistou Seu Joaquim no dia 18 de fevereiro de 2022. Onze dias depois, no último 1º de março, o agricultor faleceu vítima de um acidente vascular cerebral (AVC). Foi a última entrevista do provavelmente último sobrevivente de campos de concentração no Ceará. 

Assista à entrevista com seu Joaquim

O POVO - Em 1932, Senador Pompeu foi uma das cidades para onde os retirantes do Sertão Central buscavam apoio. Como a sua família chegou até lá?

Joaquim Barbosa - A situação da seca foi meio trabalhosa… Foi o sofrimento maior do mundo que existiu. Nessa época, a gente morava em Pedra Branca (município vizinho a Senador Pompeu); a pé e em costa de jumento, a gente foi para Senador Pompeu. Meu pai, minha mãe, eu e três irmãos — o mais velho tinha uns 14 anos. Quando chegou a Senador, onde tinha para escapar da seca era a barragem do Patu. O pessoal todo estava indo para lá.

O POVO - Por quê?

Joaquim - Porque lá era onde estava tendo alguma coisa. Tinha de tudo, mas não era favorável.

O POVO - O que o senhor lembra desse tempo no Patu?

Joaquim - Era tanta gente que eu nem sei como escapou alguém. A casa lá era um pé de pau desse assim e o cabra se botava debaixo, não tinha sombra, não tinha nada. O fornecimento era uma migalha pro pessoal comer… Para uma casa de seis pessoas, eles davam a banda de uma cabeça de boi para fazer a refeição do dia. Meu pai cortava bem picadinha e fazia um caldo grosso com farinha.

Um tempo depois, as pessoas começaram a adoecer e a morrer. Eu lembro que quando estavam fazendo enterro eu ia lá ver; eram umas valas grandes e só fechava quando estavam cheias de gente. Então eles pegaram e fizeram uma embarcação de gente para Fortaleza. Deram passagem para a gente e a gente foi. Foi aí que a gente chegou no Urubu.

 

"Eu lembro que quando estavam fazendo enterro eu ia lá ver; eram umas valas grandes e só fechava quando estavam cheias de gente" Joaquim Barbosa

 

O POVO - O campo de concentração do Urubu?

Joaquim - Isso. Tinha lá umas 20 tarefas de terra cercadas com arame e o pessoal entrava ali praquele curral. Lá o sofrimento foi maior, porque pelo menos em Senador a gente era liberto e no Urubu não. Batia a porteira e pronto; como quem prende um bocado de gado. Tinha liberação uma vez por mês para os mais velhos irem para o hospital de Fortaleza. Ficamos lá uns dois ou três meses.

Foi o tempo que passaram para tirar o pessoal para trabalhar numa estrada de rodagem. Trabalhamos uns dias lá, três a quatro meses; quando foi em janeiro de novo, tornou a voltar para o Urubu. De lá deram passagem para a gente voltar pro Interior. Por sorte, eu escapei desse sofrimento e Deus me deu essa memória boa para poder contar a história.

O POVO - Já se vai mais de um século de vida, né, Seu Joaquim? Como o senhor se sente com isso?

Joaquim - Eu vou dizendo para todo mundo que não sei pagar o milagre que Deus me fez. Ele vai me dando 102 anos de vida, seis filhos todos criados com o trabalho na terra e os netos, que alguns até já pegaram instrução maior que a nossa. Tive muitas alegrias, mas a maior foi quando disseram “completou os 100 anos”. Para mim, eu nasci de novo. Não há nada melhor que a vida da gente; ter vida é a melhor coisa do mundo.

O POVO - E com tanta vida, o que o senhor tem vontade fazer?

Joaquim - O que fiz muito e ainda gosto de fazer é andar. Por mim, a minha convivência era só andando no mundo, passeando, brincando, divertindo. Por mim, era assim até o dia que eu ainda tiver memória; quando não tiver mais, Deus pode levar.

 

 

As Santas Almas da Barragem do Patu

A cada segundo domingo de novembro, quando o dia começa a clarear, uma multidão se forma diante da Paróquia Nossa Senhora das Dores, no Centro de Senador Pompeu. Devotos dos que morreram de fome, de sede e de cólera, senadorenses e turistas percorrem cerca de 4 quilômetros entoando cânticos e orações até o cemitério ao lado do Açude Patu.

O momento aglutina os atos de fé e as promessas que são cumpridas há pelo menos 40 anos. “Hoje tem um muro e uma capela, mas o local é apontado desde o fim do campo pelos sobreviventes como onde os mortos eram enterrados em valas coletivas”, explica o historiador Aterlane Martins. O total de falecidos não é certo; uns cravam 1.637, outros estimam de 4 mil a 10 mil óbitos. “A data foi determinada pela proximidade com o Dia de Finados, mas todos os dias as pessoas vêm até aqui acender velas e deixar suas oferendas; geralmente, água e pão ou biscoito”, completa o professor do IFCE.

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Marta Sousa, coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro, conta que a romaria foi criada em 1982 pelo padre Albino Donatti. “Ao chegar aqui em 1980, já encontrou a devoção. Então, buscou resgatar essa história com alguns sobreviventes e convidou os paroquianos para realizar a caminhada todos os anos”, lembra. “Costumamos dizer que Juazeiro (do Norte) tem o Padre Cícero; Canindé tem São Francisco; e nós temos um santo coletivo: as Santas Almas da Barragem do Patu.”

Marta conta ainda que, a cada ano, a caminhada se adere a algum tema ligado ao momento político, como a luta por direitos e o acesso à terra e à água. Nas últimas edições, a ênfase é dada à convivência com o semiárido e às práticas agroecológicas. Para ela, trata-se de uma forma de lutar para que o semiárido seja visto como um lugar de vida e com potencialidades a partir dos recursos naturais. A preservação da história e da memória é outro papel assumido pela procissão. “São, sem dúvidas, as caminhadas que têm mantido viva a nossa história sobre o campo de concentração”, conclui a pedagoga, que nasceu e cresceu em Senador Pompeu.

Em 2021, após a aprovação de um projeto de lei apresentado pelo deputado Acrísio Sena (PT), a Caminhada da Seca entrou para o roteiro turístico, religioso e cultural do Ceará. A demanda agora é que se torne patrimônio imaterial da cultura cearense. A Coordenação de Patrimônio da Secretaria da Cultura do Estado (Secult) está elaborando o parecer de avaliação de pertinência do processo de registro. Conforme a Pasta, a conclusão está prevista para o segundo semestre deste ano.

 

 

A origem dos campos

Na seca de 1877, os abarracamentos estiveram por toda a Fortaleza, concentrando os retirantes. A existência deles deu origem à ideia dos campos de concentração no Ceará. O primeiro deles foi criado pelo coronel Benjamin Liberato Barroso, interventor federal no Estado, durante a seca de 1915: o Campo do Alagadiço, no atual bairro São Gerardo

O açude do Patu

O projeto do Açude do Patu foi concluído em 1919 e as escavações foram iniciadas dois anos depois, com os trabalhos da empresa Dwight P. Robinson & Co. Mais dois anos e as obras foram interrompidas. Só vieram a ser retomadas em 1984, com inauguração em 1989, pelo então presidente da República José Sarney e o governador do Ceará Tasso Jereissati

Dnocs

A área que contempla o campo do Patu pertence a União, estando sob a administração do Departamento Nacional de Obras Contra às Secas (Dnocs). Consultado pelo O POVO sobre suas responsabilidades e sobre seu posicionamento em relação ao tombamento da área e de suas edificações, o Dnocs não respondeu até o fechamento desta reportagem.

 

Episódio 2 - Na quarta-feira, 23/3, a série sobre os campos de concentração no Ceará vai contar a história pelas páginas do O POVO

 

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