.
Fortaleza tem mais de um gentílico. Fortalezenses são 2,7 milhões, mas quantos são mondubinenses, jardinense — bons ou americanos -, bonifáceis, jangurussunos, citadinos — dumilenares, funcionalistas —, ou cocoenses?
Numa cidade que cresce há 296 anos, surgem muros invisíveis separando as 121 fortalezas de cada bairro. Porque, no fim, só nós conhecemos nosso quintal.
Para celebrar o aniversário de uma cidade tão imensa quanto desigual, O POVO traçou recorte descentralizado mirando dez bairros nos pontos cardeais da capital cearense.
Sil traz um litoral de criatividade à Praia de Iracema. Zena enche o Centro de cheiros e gostos. Wilson prova, ao falar da Cidade 2000, que existe um quê de Interior em toda Capital. Ana espelha Fortaleza na Varjota da eterna capacidade de se desenvolver.
Sillândia não perde a chance de se encantar por cada esquina do José Walter, enquanto Ícaro se maravilha com o folclórico Montese do "cão da Itaoca". Edmar é guardião da memória da Messejana, enquanto Rusty é guardião dos verdes da Sabiaguaba. Ronald desafia o resto da cidade a ver o que nasce no Pirambu, enquanto Ruth mantém a aura familiar do Meireles.
E Demitri, que perfaz um balé cultural por uma Fortaleza de aldeotas ricas e pobres.
Todos eles fortalezenses. Cada um com seu gentílico. (Por André Bloc)
Silvania de Deus (Praia de Iracema)
Silvania de Deus, moradora da Praia de Iracema
Quando Silvania de Deus tinha 12 anos, Dona Mundica — costureira mais requisitada do Carlito Pamplona, de fardamentos a fantasias de Carnaval — avisou à filha: "Não tenho dinheiro para comprar o que você quer. Ou você faz suas próprias roupas, ou veste o que eu fizer". A menina, então, desenhou sua primeira peça. "É nítida na memória essa calça do tanto que eu fiquei encantada... Era de um amarelo clarinho, meio alfaiataria, já trazia um corte. Sempre tive um gosto muito particular, muito próprio. Meu corpo é uma extensão do que eu era, mesmo quando eu nem sabia o que era isso… Mas sempre fui muito criativa. Não parei mais de fazer roupa", relembra Sil. Criadora da marca Ateliê da Sil ao número 660 da Rua dos Tabajaras, na Praia de Iracema, a renomada estilista é pioneira na moda autoral cearense. "O sonho da menina preta que veio do subúrbio era fazer moda". Do desejo, renasceu um bairro.
"Uso o tecido para me expressar. Eu sempre andei com uma mochila com muitas roupas dentro e vendia para as amigas, era como eu conseguia me sustentar ou mesmo complementar minha renda. Tenho uma relação muito forte com a beleza, vejo beleza até mesmo onde muita gente não vê. O Ateliê sou eu, vive dentro de mim", compartilha Sil. Nas costuras da vida com a linha do tempo, mudou-se para a Praia de Iracema quando o bairro ainda era esquecido. "A Praia de Iracema sempre foi um bairro muito democrático — todos sempre foram bem-vindos, da puta ao boêmio; do poeta ao playboy… Todos podiam conviver tranquilamente nesse bairro. Sempre foi um bairro que acolheu a todos sem preconceito, sem distinção. O povo dizia: 'Você vai abrir uma loja ali, naquele lugar? Quem é que vai lá?'. Mas era a minha casa. Comecei a fazer movimentos para sensibilizar a sociedade, mostrar o quanto esse bairro era interessante e que a gente não devia deixá-lo morrer".
Nos quase 30 anos de Sil na Praia de Iracema, a virtude da beleza ocupou as calçadas. O movimento Fuá da Sil nasceu do desejo de chamar amigos para conhecer a Praia, tomar banho no mar de Iracema, beber uma cerveja ao ar livre e sentir a brisa. "Sempre chamei os corajosos para ocupar com música, arte, comida. Abri as portas da minha casa para não temer, para não ceder ao imaginário que não podemos andar a pé. Eu quero ir pra rua! Rua bonita e não violenta é rua ocupada. Eu quero o povo na calçada, quero tomar vento, quero um fuá. Meu desejo é acertar os corações para gerar encontro". (Por Bruna Forte)
Zena (Centro)
Zena, defensora do Centro
O Centro de Fortaleza possui diversas cores, histórias e também diversos gostos. Dentre os muitos conhecidos estão os sabores do Restaurante da Zena. Localizado na rua Meton de Alencar, o local chama a atenção de quem passa pelo cheiro inconfundível de feijoada e também pelo sorriso e simpatia de Zenilda Lopes Bezerra, proprietária do local há quase 53 anos.
Natural de Quixadá, ela herdou da mãe o dom de comandar a cozinha e, quando vieram para Fortaleza, o negócio nasceu. Hoje, o ponto é conhecido como um dos mais tradicionais para se comer feijoada e bolinha de carne. O segredo, conta Zena, é oferecer tudo de bom que tem aos clientes.
"Nossa comida é caseira, sem frescura, mas só compro coisa boa. Feijoada é prato caro, mas nos dedicamos com os ingredientes. Não adianta vender coisa barata e não prestar", diz ela.
Presente todos os dias no restaurante, Zena faz questão de atender aqueles que se prontificam a conhecer o espaço e, com sua simpatia, já recebeu visita de políticos e artistas no local, o que solidificou o endereço como uma tradição de Fortaleza.
Questionada sobre o quanto o restaurante faz parte da história do Centro, Zena foi humilde em citar que já escutou a afirmativa algumas vezes e se limitou a se orgulhar por seguir resistindo em meio às mudanças que ocorreram no local nos últimos anos.
"Já me falaram tanto que eu estou começando a acreditar. Muitas pessoas já passaram por aqui, governadores, outras pessoas (importantes). As coisas antigas do Centro, infelizmente, estão acabando, mas, apesar da pandemia, eu resisto", orgulhou-se. (Por Iara Costa)
Wilson Neto (Cidade 2000)
Wilson Neto, da Cidade 2000
Uma cidade do interior incrustada no Centro de Fortaleza. Mais que isso, as ruas que trazem um sabor de infância, com uma lembrança saudosa em cada esquina ao comentar das visitas a casa dos tios ainda criança. É assim que o artista plástico Wilson Neto rememora e carrega na mente a imagem do bairro Cidade 2000, região na qual trabalha há quase uma década, e que tem suas peculiaridades.
E as vias despertam mesmo a imaginação poética pela distribuição, todas com nomes de mulheres ou flores, e por causa do fluxo próprio que se estabeleceu com o desenvolvimento do bairro.
“A região tem mudado muito, está se transformando rápido, mas ainda preserva coisas que só se encontram aqui. É um local sustentado pelas relações entre vizinhos, entre os negócios informais que surgem e são mantidos por uma demanda dos próprios moradores. É quase algo autossuficiente”, comenta.
Das "manias" que apresenta, Wilson detalha as convenções sociais próprias, como o estacionamento dos carros ser, sempre, alternando os lados das vias e nunca enfileirados.
“Não é algo escrito, mas todo mundo que mora na região assume esse comportamento, fora que todo mundo aqui ainda se conhece, principalmente por causa dos pequenos negócios. Quase todo mundo aqui tem um pequeno negócio no bairro, seja de serviços de costura, carrinhos de lanche, venda de dindin, etc.”
O bairro, quando foi criado na década de 1970 era, à época, sinônimo de futuro, e é influência para o artista. Wilson nem pensa em mudar seu ateliê para outro bairro... "Nunca".
“Vir para cá é uma experiência quase surreal. Eu posso passar o dia todo em silêncio, longe da confusão do centro da Cidade, ou então ficar ouvindo as pessoas conversando, deslocando-se para as praças do bairro, ouvindo barulho de cavalos e até bois que algumas pessoas criam na região. Dá uma sensação bucólica que só se encontra aqui”, afirma.
E ainda que representasse antes o futuro, a região apresenta “vida própria” e reúne, em si, características do passado, “de um ritmo de vida menos acelerado” e também de elementos do mundo globalizado.
“Uma coisa muito forte no bairro é a gastronomia, tem restaurantes de todos os tipos aqui, de churrasquinho, pratinho, hamburguerias, restaurantes argentinos, de comida japonesa, tudo. É uma experiência única, o bairro é uma região de encontro de muitas coisas, de um acolhimento familiar”, completa.
E é o amor pelo bairro que o faz também enxergar suas problemáticas, como a questão da falta de infraestrutura urbana para sustentar o desenvolvimento acelerado e o pouco policiamento, mas se apresenta como um centro comercial de pequenos empreendedores e como um local convidativo para visitantes.
“Quem conhece a região fica muito interessado em comprar uma casa por aqui, em vir morar no bairro e aproveitar tudo que ele oferece, principalmente essa calmaria que permite que as pessoas se sintam à vontade para reunir amigos e parentes. Muita gente sai de bairros mais nobres e compram casarões por aqui e agem quase como se fossem casas de veraneio.” (Por Alan Magno)
Ana Negona (Varjota)
Ana Negona, desbravadora da Varjota
A empresária Ana Campos, mais conhecida como Ana Negona, foi do ramo de confecção à gastronomia por acaso. Ela decidiu instalar um restaurante familiar na Varjota, entre as ruas Professor Dias da Rocha e Ana Bilhar, inspirada pelo talento da mãe, Dona Vilmar, na cozinha. O espaço foi nomeado como Colher de Pau, em alusão à culinária regional: panelada, feijão verde, rabada, carne de sol e arroz de carneiro eram os mais pedidos do cardápio.
As mesas logo tomaram as calçadas e a unidade migrou para o cruzamento com a Frederico Borges, onde permaneceu por mais de duas décadas. Durante o tempo de funcionamento, o restaurante conquistou prêmios, abriu novas sedes, foi referência para a criação de dois livros e peça fundamental para o atual Polo Gastronômico do bairro. "Eu fui uma das primeiras a abrir ali. Hoje está fantástico, tudo maravilhoso", comenta. O empreendimento foi transformado no Colher Restô em 2017, formato em que seguiu até o fim de 2018.
"O Colher de Pau foi muito bom na nossa vida porque nós fizemos história, a gente preservava o sabor. Eu fiz muita gente feliz, hoje quero ter uma qualidade melhor de vida". Ana segue na cozinha como um hobby, compartilhando com amigos o legítimo tempero que a tornou conhecida na Capital. O público saudoso pode saborear suas criações com os produtos "Farofa da Negona" e "Pimenta da Negona", disponíveis para venda por encomenda. Agora, aos 64 anos, o que mais importa para a empresária é manter os elos com o riso aberto. (Por Lara Montezuma)
Sillândia Garcêz (Conjunto José Walter)
Sillândia Garcez, moradora do Conjunto José Walter
Apontando vez em quando para fora das janelas do carro, Sillândia Garcêz nos guia da primeira à quarta etapa do José Walter. O bairro é como o seu lar e ela fala sobre cada igreja, escola, praça como se fossem os cômodos da própria casa. A vida inteira passada no local reforçou o amor ao bairro que a recebeu ainda bebê, há 40 anos.
"Vim quando nasci e não penso em sair nunca", decreta. Ela recua no tempo para recuperar a história do local e as mudanças observadas ao longo dos anos. Tertúlias, grêmio, desfiles de rainha do bairro, festivais de quadrilha. Alguns movimentos ela só escutou falar. Outros, vivenciou mas foram arrefecidos — o que faz falta para os moradores, lamenta Sillândia.
Ela conta que a maioria dos habitantes é de famílias que vivem na região há várias gerações e, como a dela, vão criando raízes. No quintal da casa na qual vive, que já foi a residência dos pais, um pé de acerola permanece há 32 anos, como que para firmar o laço que une a família ao território. "Meu irmão plantou quando meu sobrinho nasceu, ele brinca que é a árvore dele", compartilha.
O bairro é como uma cidade. Pelo tamanho, quantidade de habitantes e tudo que oferece aos moradores e visitantes. Ela enumera: bancos, mercados, quartel, delegacia, o Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cuca). "Você só precisa ir ao Centro resolver alguma coisa quando procura muito e não acha mesmo aqui", diz.
Há 15 anos, ela atua como Agente Comunitária de Saúde (ACS), profissão que permitiu à Sillândia relacionar-se ainda mais cada cantinho do José Walter, com as tantas histórias vividas na região. Na partilha dos dias, a relação com outros residentes se estreitou.
"Eu conhecia o bairro, mas não tão profundamente. Quando me tornei agente de saúde eu conheci muito mais. Ruas que eu nem sabia que existiam. Conhecia muitas pessoas só de vista. A partir do momento que eu passei a adentrar na casa das famílias, passei a ter esse vínculo", orgulha-se.
Onde para, ela cumprimenta amigos e conhecidos, enquanto nos fala do amor pelo bairro, que defende veementemente. A agente sente a mudança nos últimos anos, quando moradores tiveram de deixar as conversas nas calçadas até tarde da noite com medo da insegurança. "Mas não é só aqui que tem isso. Mesmo assim, é um bairro muito bom de se morar".
Na relação de Sillândia com o bairro ao qual pertence, o lugar de passado também é o futuro. Por ela, o José Walter continuará abrigando saudades do que foi e, muito mais, perspectivas e esperança para o novo que quer viver. (Por Ana Rute Ramires)
Edmar Freitas (Messejana)
Edmar Freitas, guardião da Messejana
Nos muros do bairro, além do concreto e dos tijolos, se faz recorrente a escrita afetiva de Edmar Freitas. O escritor e poeta cearense, de 68 anos, nascido em Limoeiro do Norte, e morador da Messejana há mais de meio século, confessa o ato com um meio sorriso: “Assumi a missão de eternizar as maravilhas que a Messejana carrega e que as pessoas parecem não perceber ou não lembrar.”
Aos 68 anos, Edmar relata a luta pela construção de uma biblioteca pública no bairro, bem como o apelo por equipamentos culturais. “É a terra de um dos maiores romancistas do mundo e não temos uma livraria”, pontua com tristeza. O escritor ainda relata com pesar a falta de políticas públicas e de manifestação popular para a preservação da memória do bairro.
“Messejana tem mais de 200 anos e não tem quase nada que indique isso, tudo foi derrubado, coberto com placas de neon, com anúncios e fachadas de lojas. Mesmo há pouco tempo, coisa de 15 anos atrás, ainda era banhada em verde, com um clima sem igual, mas hoje, tudo foi derrubado. A lagoa, uma das coisas mais bonitas do Ceará está abandonada, sendo aterrada e ninguém parece se importar com isso”, afirma angustiado.
Edmar celebra a expansão do centro comercial do bairro e destaca a centralidade, a relação da região com outros bairros e a autossuficiência de Messejana, mas pondera que as pessoas estão confundindo progresso com desenvolvimento. "É preciso muito mais do que só muitos e grandes negócios na região para gerar qualidade de vida aos moradores”, argumenta.
Entre suspiros, o poeta menciona Messejana como “uma terra milagrosa” mas de tristeza diante do que chama de “abandono do poder público”. Ele cobra ações mais efetivas de conservação, urbanização e infraestrutura no bairro e define a região como uma das pontes que liga Fortaleza ao restante do Ceará.
"Messejana é minha vida e eu busco todos os dias estreitar essa fenda entre o passado e o presente da Messejana porque não se preserva o passado ou a memória no futuro, tem que ser no hoje, no agora, mas a maioria das pessoa parece ter uma apatia com relação a isso, inclusive o poder público. Sem a Grande Messejana e tudo que ela representa, o que seria de Fortaleza?", argumenta Edmar.
O que muitos procuram na região, na visão do poeta, é uma esperança de melhora na qualidade de vida. “É uma região com empregos, com belezas naturais, de gente acolhedora, alegre, batalhadora. É um bairro que abriga muita história, memória e muitas e muitas identidades e que precisa ser valorizado.” (Por Alan Magno)
Rusty de Castro Sá Barreto (Sabiaguaba)
Rusty Barreto, defensor da Sabiaguaba
Cansado da vida de dono de bar, Rusty matutava uma alternativa. Morador da Sabiaguaba havia já alguns anos, o pernambucano andava incomodado com o impacto ambiental na região e a conduta dos clientes, a quem advertia: “Rapaz, não jogue lixo no chão, olhe a tampa”.
Um dia, uma família o interpela e pede que lhe apresente aquela mata. Era por volta do ano 2000. Foi então que a ficha caiu. O mangue era mata, floresta, e nela vivia toda sorte de bicho, de cuja caça e pesca – não por acaso, nome de praia na região – dependia toda uma comunidade ribeirinha de que ele era parte agora.
“A decisão de fechar o bar foi uma atitude de ativismo”, conta hoje Rusty de Castro Sá Barreto, sob a palhoça onde antes atendia a clientela e ajudava a servir cerveja e petiscos. Educador ambiental e diretor do Ecomuseu Natural do Mangue, o ex-comerciante transformou a barraca numa extensão do projeto que se tornou sua bandeira: a conservação do meio ambiente.
Mas, contando assim, parece que o processo se deu ligeiro. Não foi. Rusty foi aprendendo com os bichos e as plantas. “Quando cheguei aqui, tinha conhecimento empírico. Eu vivi no mangue quando era pequeno”, recorda.
Logo desconfiou de que todo o resíduo despejado na área era prejudicial para o equilíbrio local, ecossistema que opera como berçário para inúmeras espécies animais. Aos poucos, considerou a carreira no bar como encerrada. Ali mesmo, passou a se dedicar à proteção da Sabiaguaba em tempo integral.
“Foi aí que conhecemos a museologia social e a ecomuseologia e criei o Ecomuseu Natural do Mangue”, explica o educador, apresentando a instituição que tem uma dupla missão: fazer divulgação científica, a partir de um acervo de fósseis, e chamar a atenção para a Sabiaguaba, “bairro que sempre foi retirado do mapa de Fortaleza”.
“A vivência que tenho é que essas áreas sofrem muita especulação e muitas delas ainda estão esquecidas porque não geram votos, mas são grande potencial turístico e ecológico sustentável”, argumenta Rusty, enquanto caminha numa trilha de mangue vermelho.
Nesse tempo todo, qual foi o aprendizado da mata? Ele tem resposta certeira: “O mangue ensina que a casa da gente não é só o bairro, é onde a gente mora e o nosso espaço de proteção”. (Por Henrique Araújo)
Dona Ruth Moreira (Meireles)
Dona Ruth desenlaça memória no Meireles
"Representa vida e felicidade", foi como Ruth Moreira, de 87 anos, definiu o bairro Meireles, onde vive há mais de quatro décadas. A casa, localizada na rua Frei Mansueto, foi comprada por ela e o marido, Francisco Ramos, em 1974, época da qual Dona Ruth, como é chamada por familiares e amigos, relembrou com carinho.
"Quando eu cheguei só tinha calçamento na rua, os postes ainda eram os antigos. Uma região muito residencial, todo mundo se conhecia, eram amigos, não tinha insegurança", disse.
Ao todo, Ruth e Francisco tiveram sete filhos, todos criados na residência. A casa e o bairro, naturalmente, tornaram-se uma referência para a família, que conta com mais de 50 pessoas atualmente. "Com a chegada dos netos, o meu marido construiu uma piscina e um deck para que eles pudessem brincar e a família se reunir. Até hoje nos reunimos todo domingo e nas datas comemorativas", comentou.
Entre as principais mudanças do Meireles nos últimos anos, Dona Ruth destacou que o bairro se tornou mais comercial, com polos gastronômicos e shoppings, por exemplo.
Hoje, Dona Ruth vive na casa com o neto João, que recentemente teve um filho com a noiva Amanda, o pequeno Heitor, de dois meses de vida — quinto bisneto da família — e com Daniel, um dos sete filhos. Francisco, infelizmente, faleceu em 2004.
Sobre a possibilidade de mudar de bairro, a resposta foi enfática: não existe. “Todos os filhos foram criados aqui, hoje são todos casados e encaminhados. É um bairro familiar, onde fiz muitos amigos. Tem tudo o que preciso próximo a minha casa e não pretendo sair daqui”, concluiu. (Mateus Moura)
Ronald Kauê (Pirambu)
Ronald Kauê, influencer morador do bairro Pirambu
"As pessoas acham que conhecem o Pirambu, mas não sabem um terço do que tem aqui". Mostrar as belezas do bairro e a potência que são seus moradores. É a isso que se propõe o trabalho de Ronald Kauê, 27, que trabalha como influenciador digital. Ele apresenta o comércio local e, em paralelo, expõe a alegria de viver ali. Facetas latentes da região, que muitas vezes são ofuscadas pelo estigma que se sobrepõe.
"A cada dia surgem profissionais incríveis, empreendedores com uma criatividade fora do normal. As pessoas vêem o Pirambu só como violência, mas mal sabem que daqui saem os melhores profissionais, surfistas, pintores. Existem projetos que fabricam artistas de diversas áreas, como culinária", defende.
As praias não deixam a desejar a nenhuma outra da Capital, orgulha-se Ronald, citando a a da Leste (Oeste), a de Pocinhos e a do Vila do Mar.
No Pirambu, além de talentoso, o povo gosta de novidade, conta ele. "Tudo o que você procurar, vai encontrar. E de qualidade. Não importa o que você coloque, vai sair". Ele usa o Instagram para divulgar os atrativos do bairro desde 2017. Mas foi apenas em 2020, com as complicações da pandemia, que o influencer começou a focar na atividade.
"Me agarrei nisso. Era hora de apoiar os pequenos empreendedores. 'Aqui você pode encontrar isso, aquilo'. Eu sou muito seletivo nas minhas divulgações", afirma. Atualmente, ele reúne 31,4 mil seguidores na rede social. É por meio das divulgações que ele tira o sustento da casa.
Enquanto fala da família, é possível entender de onde herdou o carisma e a espontaneidade. "Aquela casa precisava ter uma câmera 24 horas porque é fuxico 24 horas. Só assistindo pra ver as comédias do dia", brinca. A festa, ele leva para a rua. Ronald promove o festival de brega funk Bregambu, que reúne milhares de pessoas na Areninha do Pirambu.
"Eles se dedicam mesmo para as apresentações", orgulha-se, sobre os jovens da região que participam do evento. Ele brinca que quer conquistar o bairro, crescer. De lá, não vai sair. "É um bairro coletivo, que abraça, acolhedor. Se você precisar de algo, na sua esquerda e na sua direita tem quem lhe ajude". Esse é o bairro aos olhos de um filho do Pirambu, que quer mostrar que ali também é lar bom de se viver. (Por Ana Rute Ramires)
Ícaro Eloi (Montese)
Ícaro Eloi, do Montese
O Montese está no miolo do mapa, uma cidade dentro da cidade. Um dos mais antigos de Fortaleza, o bairro tem até folclore próprio, que atende pelo nome de “cão da Itaoca”, conta o ator e roteirista Ícaro Eloi, 28, morador e jovem pesquisador cuja vida conhece esquinas e becos da “Pirocaia”, nomenclatura antiga depois substituída pela atual.
“O Montese é uma conexão entre Fortalezas, da praia ao Zé Walter, da Messejana ao Presidente Kennedy”, desfia Ícaro, sentado num banco de praça em frente à igreja de Nossa Senhora de Nazaré, ponto de encontro da noite “montesiana” e local onde o sagrado (templos religiosos) convive harmoniosamente com o profano (barraquinhas de bebida e churrasco).
É quinta-feira, início de abril, e o fluxo de gente naquele pedaço da metrópole começa a ganhar fervura. Nascido e criado no coração do bairro, Ícaro conhece cada placa de rua e aonde leva. “É um pouco confuso de saber onde você está aqui, se Itaoca, Damas, Jardim América, Parreão. No final das contas, é tudo Montese”, calcula.
Ele tem razão. Misto de cidade interiorana com centro comercial, atravessado pela nervosa avenida Gomes de Matos e espalhado para muito além dela, o Montese confunde o forasteiro. Perto do Benfica e da Parangaba, a meio caminho do Porangabuçu e do Bairro de Fátima, é lugar de passagem pra quem vai e vem todo santo dia.
É também autossuficiente quando o assunto é comércio (“você não tem que ir a algum lugar pra fazer alguma coisa”). Do “atacarejo” ao informal, da feira à farmácia, do galeto ao corredor das noivas, da capa de celular à concessionária, é uma vitrine onde há de tudo.
Mesmo assim, preserva características que o aproximam de uma Fortaleza de outro tempo, tão antiga quanto a memória que não deixa a sua mitologia cair no esquecimento. E nisso Ícaro tem papel fundamental.
Como artista, fez da história do cão da Itaoca, a lenda do capeta visto dançando numa casa do bairro, uma fotonovela. Em seguida soltou-a nas redes. Batizada de “A Pirocaia”, foi sucesso.
“Quando a gente lançou a novela”, lembra, “muita gente entrou em contato porque queria saber que história era essa. A casa existe, fica na rua Romeu Martins, que é o beco da Itaoca. Tudo era beco nessa época, nada tinha nome de rua”.
Hoje o Montese é outro, mas o mesmo. De novo, há construções mais espichadas e supermercados em galpões imensos. Mas, segundo Ícaro, uma coisa não muda: “Aqui é um bairro onde o pessoal ainda senta na calçada, tem esse costume, não morre”. (Por Henrique Araújo)
Por Demitri Túlio (Aldeota)
A Aldeota já foi Jacarecanga, já foi o Centro de Fortaleza. Hoje, velha mansão, se estende além dela pelo Cocó, pelo Meireles, pelas Dunas, pelo Guararapes e para onde se espraia quem se incomoda com a mistura de gente de toda laia depois de mais de 500 anos da invasão dos bárbaros europeus.
Dizem que Fortaleza, ainda uma pequena aldeia, completa 296 anos depois de ser domesticada na peia de indígenas e de escravizados pretos e pretas que não comeram nem o pão que os diabos bodejantes escarraram.
A Aldeota nem existia ainda. Mas começa a surgir entre os burgueses bregas, já naquele tempo, no calor daqui e aqueles banheiros em penicos, sabugos e porcos. Está entre os registros da importadora dos Boris Frères - lá pelos 1600 e tanto - aquecedores de água para banho quente na capital do Siará. Também perucas.
Imagine naquele tempo, imagine hoje também. Viramos a capital dos cães trazidos de fora e um magote de vira-latas abandonados. Feitos gatos dos pés-duros e a récua de crianças em semáforos.
Temos, agora, farmácias em todas as esquinas, supermercados fazendo lama e shoppings pets 24 horas para os donos de Lulus da Pomerânia tratarem da solidão nos apartamentos com elevadores para carros.
A Aldeota é um lab para o resto da Fortaleza, moura e torta. Lembro, nos anos 70 e 80, o que ela trazia dos Estados Unidos num contrabando de bugigangas e uísques. E os camelôs no outro dia inventavam, na ligeireza dos memes de hoje, imitações ordinárias para esquina da Liberato Barroso com Barão do Rio Branco.
Na Aldeota é onde está o melhor asfalto, onde moram prefeitos, ex-prefeitos, a primeira governadora do Ceará e a presidenta da Justiça. De onde a Câmara dos Vereadores nunca saiu de fato e onde deputados traficam influência e compram Hilux no primeiro ano de mandato e vão para Paris.
O palácio da Abolição está aqui, onde há mais brancos. Não está no Bom Jardim. A Catedral, Sé dos ricos, também mora aqui e os pombos urbanos. A Fiec aussi e a pobreza também que, assiduamente, vem para cá pedir esmolas e cumprir seu injusto expediente nas esquinas da Barão de Studart.
Pronto, feito São Paulo e o caetanear, qual avenida representaria o espírito fortalezense de querer se amostrar? A Dom Luiz quando cruza a avenida Estados Unidos (olha o nome), hoje senador Virgílio Távora?
A Santos Dumont todinha? Do Colégio Militar à Praia do Futuro e suas dunas invadidas até pelos mórmons? Ou elegeremos o Leste Oeste e o odor do IML, seus surfistas no esgoto e o lixo até a Barra do Ceará?
As velas do Mucuripe, que ficam na Aldeota, vão sair para pescar, vou levar as minhas mágoas para as águas fundas do mar, hoje à noite namorar sem ter medo da saudade, sem vontade de casar,
Calça nova de riscado, paletó de linho branco que até o mês passado lá no campo inda era flor, sob o meu chapéu quebrado, um sorriso ingênuo e franco de um rapaz novo e encantado com 20 anos de amor,
Aldeota é também a comunidade do Campo do América, do povo das Quadras do Santa Cecília, da favela do Japão faccionada, da Graviola vizinha a Monsenhor Tabosa e do Hotel Praia Center que já foi a fábrica Fortaleza de macarrão e creme craque.
Se eu fosse o mar de Fortaleza, ia embora da Aldeota. Deixava o lixo deles pra eles, deixava a falta de sombra dos troncos cortados das calçadas e levava até as dunas cercadas e cheia de donos.
Mentira, ainda há bem querência por Fortaleza, suas aldeotas, o Porangabuçu, a Bela Vista, o Jardim América... Não levava o mar embora, não. Com todas as estrias, meu coração solar nunca se cobrirá de neve por ela.
Esta saudade, um cigarro, a luz acesa. E essa noite posta sob a mesa, em cada canto da casa, asa partida e dor, gemido morto amor, tão longe vá, tão longe vou e choro quando sinto ausência dela, de Fortaleza, por aí...