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Clubes-empresa: o que é e como funciona a SAF no Brasil; Ceará e Fortaleza adotam cautela
Reportagem

Clubes-empresa: o que é e como funciona a SAF no Brasil; Ceará e Fortaleza adotam cautela

Lei aprovada em 2021 cria modelo empresarial nos clubes com tributação diferenciada e tem movimentado o futebol brasileiro nos últimos meses. Vovô e Leão observam movimento no mercado e não pretendem fazer mudanças a curto prazo
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clubes empresa (Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo clubes empresa

 

 

Aprovada pelo Congresso Nacional em agosto de 2021, a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) ganhou destaque nos noticiários esportivos e tem movimentado os bastidores dos times brasileiros nos últimos meses. Criado por meio da Lei 14.193/2021, o novo modelo nacional de gestão empresarial de agremiações esportivas possui tributação diferenciada e permite a transformação de clubes em empresas.

Vista como uma forma de profissionalizar a gestão dos clubes, reduzir as dívidas e alavancar as receitas por meio de investidores, a SAF atraiu times tradicionais do futebol brasileiro, como Botafogo-RJ, Cruzeiro-MG, Vasco da Gama-RJ e América-MG, equipes que já concluíram ou estão em processo de transição para o novo modelo.

Norte-americano John Textor investiu R$ 400 milhões na aquisição de 90% do Botafogo(Foto: Vítor Silva/Botafogo)
Foto: Vítor Silva/Botafogo Norte-americano John Textor investiu R$ 400 milhões na aquisição de 90% do Botafogo

Mas, afinal, o que é uma SAF? "É uma empresa cuja atividade principal consiste na prática do futebol em competições profissionais, diferentemente do modelo tradicional de clubes no Brasil, que, por sua maioria, não tem fins lucrativos", resume o advogado especialista em direito desportivo, João Paulo di Carlo. O modelo atual mais vigente é o associativo.

O advogado Breno Gondim, especialista em direito desportivo, destaca que, além da melhoria da gestão dos clubes, com aumento da transparência, a principal vantagem da SAF é a possibilidades de as agremiações esportivas reestruturarem suas dívidas. 

"A SAF nasceu com regramentos específicos para o futebol. A vantagem é que, teoricamente, o clube vai passar por um processo de profissionalização da sua gestão, com possibilidade de atrair investidores. Além disso, o modelo veio com essa possibilidade de reestruturar a dívida de clubes que estão praticamente falidos. Essa reestruturação faz parte de um regime de centralidade de execução, que permite a unificação das dívidas cíveis e trabalhistas", explica. Não por coincidência, três dos clubes em tradicionais com tratativias mais avançadas têm dívidas que chegam perto ou superam R$ 1 bilhão.

Colunista na plataforma Lei em Campo, João Paulo di Carlo explica que para se tornar SAF, em primeiro lugar, devem ser observados os procedimentos internos de cada agremiação. É necessário aprovação do Conselho ou Assembleia quanto à mudança do modelo. Feito isso, o clube e os acionistas precisam ir à Junta Comercial para oficializar a criação da nova empresa.

Sobre o endividamento, Breno Gondim complementa. "É organizada uma fila desses processos, com prioridade para os passivos trabalhistas. A Lei prevê que 20% da arrecadação da SAF seja destinada ao pagamento de credores. Dentro desta organização, é previsto um prazo para a quitação dessa dívida. Caso os pagamentos sejam cumpridos sem atrasos, a Lei também prevê a prorrogação desse passivo por mais quatro anos para que a agremiação possa se reestruturar e dar continuidade às suas atividades no futebol".

Revelado pelo clube, ex-atacante Ronaldo deve comandar SAF do Cruzeiro(Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro)
Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro Revelado pelo clube, ex-atacante Ronaldo deve comandar SAF do Cruzeiro

Apesar dos benefícios que o novo mecanismo pode trazer, Gondim ressalta que a mudança para o novo modelo precisa ser bastante discutida pelos clubes, já que não há garantias de que a adoção da SAF alcance o resultado esperado, uma vez que o formato escolhido varia de acordo com as negociações entre clubes e investidores.

"Não pode ser algo feito de última hora, já que, uma vez que o clube é transformado em Sociedade Anônima do Futebol, ele não pode retornar ao modelo associativo. Sendo assim, o clube corre o risco de entrar em recuperação judicial e acabar sofrendo as mesmas consequências de qualquer outra empresa", ressalta.

 

 

Entenda o cenário atual das SAFs do Brasil

Clique no escudo para ver a situação do time

 

 

 Modelos jurídicos associativos em clubes de futebol

Os clubes de futebol podem adotar três modelos jurídicos distintos principais: associação civil sem fins lucrativos, sociedade empresária e sociedade anônima com associação como acionista. A classificação proposta foi elaborada pelo Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme), da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.

As associações esportivas sem fins lucrativos funcionam com quadros de sócios que pagam mensalidades e elegem os dirigentes para determinado período de mandato. Esse modelo adotado é adotado pela maior parte dos times brasileiros. Dos 20 participantes da Série A da edição do ano passado, 18 funcionavam desta forma, com somente Cuiabá-MT e RB Bragantino-SP em regime empresarial.

A maior parte dos times que disputam a primeira divisão das cinco principais ligas nacionais da Europa funcionam como sociedade empresária, o que se costuma chamar de clube-empresa. O termo é utilizado para designar um clube constituído sob a forma de empresa (normalmente uma sociedade limitada).

O Paris Saint-Germain, por exemplo, pertence a um fundo de investimentos ligados ao governo do Catar, em modelo acionista. O Manchester City, por sua vez, tem como proprietário um integrante da família que administra a cidade de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Franceses e ingleses, inclusive, são criticados pela ligação com governos autoritários do Oriente Médio. Já o Bayern de Munique possui acionistas, como Adidas, Allianz e Audi.

João Paulo di Carlo descreve que o conceito de clube-empresa assemelha-se à SAF, porém com diferenças técnicas principalmente na tributação. “Ambas têm a ideia de profissionalização do futebol, afastando-se do modelo associativo e se aproximando de um empresarial, com ideias bem claras de governança e de boa gestão. O clube-empresa já existia no país antes mesmo do advento da SAF, nos regimes previstos pelo nosso ordenamento. A principal diferença entre a SAF e os formatos de clube-empresa já existentes é a tributação, muito mais vantajosa para as SAF”, afirma.

 

 

Clubes brasileiros que se tornaram SAF

Botafogo, Cruzeiro e Vasco já negociaram os valores de suas SAFs. O time carioca anunciou acordo com John Textor, um dos sócios do Crystal Palace. O empresário deve investir cerca de R$ 400 milhões por 90% das ações, além de se tornar devedor solidário de dívida próxima a R$ 1 bilhão.

O clube mineiro também negociou sua SAF em R$ 400 milhões por 90% com o ex-jogador Ronaldo Fenômeno, em processo que sofreu revezes e avanços até a assinatura definitiva nessa quinta-feiram 14. Já o Cruz-Maltino fechou um acordo de venda de 70% de sua futura Sociedade Anônima do Futebol com o fundo norte-americano 777 Partners por R$ 700 milhões. Cada processo tem detalhes de negociações diferentes e o valor pago não necessariamente reflete valor de mercado do clube ou investimento assegurado pelo investidor.

Outras agremiações esportivas do país estão em processo de transição para o novo modelo, como é o caso do América-MG. O clube já analisava virar clube-empresa antes da lei da SAF. O time mineiro estava em negociação adiantada com Kapital Football Group, mas não houve concretização. Os moldes feitos pelos concorrentes, Botafogo e Cruzeiro, foi um dos fatores que interferiu na parte final do processo. Os clubes citados negociaram 90% aos investidores, o que, neste momento, não interessa à gestão do Coelho.

O Cuiabá-MT, que já era administrado como clube-empresa, também adotou o modelo. Os sócios do Coritiba-PR já aprovaram a criação da SAF. Resta, agora, detalhar o novo estatuto e buscar investidores, o que deve acontecer em 2022. Goiás e Athletico-PR são outros clubes que pretendem virar SAF.

 

 

Vantagens e riscos da SAF

Os especialistas apontam benefícios para os clubes ao se transformarem em SAF, sendo a possibilidade das agremiações esportivas reestruturarem seus dividendos a principal. “Algumas (dívidas), como a cível e trabalhista, poderão ser parceladas por meio do Regime de Centralização, com o comprometimento de 20% das receitas, previstas pela Lei. Da mesma forma, ainda há a possibilidade de serem negociadas com deságio (a compra de um título por um valor abaixo do preço nominal), o que diminuirá consideravelmente o passivo do clube”, indica João Paulo di Carlo.

No entanto, o advogado destaca que também há riscos e a falência é a principal deles. “Em caso de resultados negativos, a entidade passará a ser regida pelas mesmas regras em vigor para outras atividades econômicas, portanto, estará sujeita aos efeitos da falência. Ademais, uma possível perda de identidade e falta de vínculo do investidor com o clube, sua torcida e sua história, podem representar um ponto negativo. Portanto, há de se alinhar perfeitamente as expectativas do torcedor e dos atuais dirigentes com o desejo e projeto do investidor”, frisa.

Para o especialista em gestão e finanças do esporte, Cesar Grafietti, o modelo se tornou atrativo devido à possibilidade de captação de investimento, porém são necessárias mudanças estruturais nas políticas do clube. “Muitos clubes brasileiros precisam virar SAF para receber aportes de recursos e buscar uma competitividade que ficou perdida no tempo, fruto de más gestões e dívidas elevadas. Os clubes encontraram na SAF a oportunidade de mudar de patamar competitivo. Mas é preciso cuidado, porque não basta virar SAF, é preciso mudança radical na gestão, seja através de novos profissionais, seja através de métodos eficientes”, ressalta.

 

 

Ceará e Fortaleza adotam cautela em relação ao novo modelo

Com gestões eficientes, finanças equilibradas e cientes das eventuais vantagens e dos riscos do novo modelo, Ceará e Fortaleza apostam na cautela em relação à adoção da SAF. As diretorias dos dois maiores clubes do Estado não descartam a transição para o modelo no futuro, mas entendem que estão em posições que lhes permite aguardar a consolidação do mecanismo no futebol brasileiro. 

De acordo com Arthur Lídio, diretor administrativo do Fortaleza, a SAF não é vista como uma forma de sanar dívidas, como ocorre com alguns clubes, mas como uma opção de crescimento para o Tricolor do Pici.

"Estamos abertos para discutir com investidores o que seja melhor para o Fortaleza. Entendemos que, no futuro, a SAF pode captar investimentos e trazer melhorias estruturais, tecnologias e auxiliar na contratação de atletas, gerando retorno para os investidores. Temos a possibilidade de pensar com calma sobre esse assunto por termos um clube que está sanado e com endividamento baixo. Sabemos que tudo muda muito rápido no cenário do mercado futebolístico, mas a posição do Fortaleza hoje é que estamos aberto a discussões, mas com investidores que tenham o interesse de serem minoritários e que a gestão continue sendo tocada pelo clube", disse o dirigente tricolor.

Diretoria do Fortaleza trata possibilidade de SAF com cautela(Foto: Karim Georges/Fortaleza EC)
Foto: Karim Georges/Fortaleza EC Diretoria do Fortaleza trata possibilidade de SAF com cautela

João Paulo Silva, diretor financeiro do Ceará, destaca que a SAF já é uma realidade do futebol brasileiro, mas ressalta que o novo modelo ainda é recente e precisa ser analisado. No entendimento do dirigente alvinegro, neste momento aderir à modalidade não é positivo para o clube.

"A SAF é uma realidade, mas o que podemos observar é que, neste momento, os clubes que estão com uma situação financeira mais desequilibrada estão aderindo. Precisamos analisar como a SAF vai se comportar com os clubes. É necessária certa cautela. O Ceará é um clube que tem as suas finanças equilibradas, temos o menor passivo entre os clubes de Série A do país. Então, neste momento, não vejo a SAF como uma opção ou algo tão positivo para o Ceará. Vamos aguardar e ver como que esse modelo vai evoluir, principalmente no futebol brasileiro", alerta.

Diretoria do Ceará vê estabilidade financeira como trunfo no mercado(Foto: Felipe Santos/CearaSC.com)
Foto: Felipe Santos/CearaSC.com Diretoria do Ceará vê estabilidade financeira como trunfo no mercado

Apesar da prudência em relação à Sociedade Anônima do Futebol, Arthur Lídio entende que, no médio a longo prazo, a adoção da SAF pelos clubes brasileiros será inevitável.

"Entendo que quando surgir uma liga brasileira, a adoção da SAF será inevitável. Todos os times caminharão para sair de um modelo associativo e terem investidores, assim como ocorre na Premier League (equivalente inglês ao Brasileirão) atualmente. Isso porque a liga vai profissionalizar o futebol brasileiro e isso vai atrair mais investidores. Na medida em que esses investimentos ocorrem, em um cenário em que tudo já esteja estruturado, os times vão ficando mais competitivos, vão subindo de patamar e é inevitável que os outros também entrem. Então, olhando numa perspectiva mais a longo prazo, com a estruturação da Liga Brasileira, vai ser um caminho natural todos os clubes receberem algum tipo de investimento", disse.

Breno Gondim entende que a adoção da SAF por Fortaleza e Ceará não seria vantajosa para os clubes neste momento e defende que as duas equipes devem permanecer no modelo atual.

"Atualmente, são clubes que estão com gestões profissionais, organizados financeiramente e são autossustentáveis. Não precisam de investidor. Os dois times possuem receitas muito boas, principalmente com as torcidas, jogos e patrocínios. Esse não é um momento apropriado para as duas equipes pensarem em se transformarem em SAF. São clubes de massa, a torcida quer participar, saber o que está acontecendo. Desde que tenha a gestão que estamos vendo em Fortaleza e Ceará, o modelo associativo é mais interessante", ressalta.

De acordo com as diretorias de Fortaleza e Ceará, não há negociações em andamento com investidores interessados na SAF.

 

 

 

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