Há algumas décadas a mulher vem buscando a equidade no ambiente de trabalho, tanto na maior presença em cargos de liderança, como na compatibilidade salarial com os homens. O processo tem sido lento e mostra-se ainda mais difícil quando a maternidade é somada nesta equação. Isso porque é cultural haver ainda mais desigualdade entre os gêneros somente por haver a possibilidade de a mulher ser mãe.
De acordo com o segundo estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, realizado pelo IBGE, a presença de crianças com até três anos de idade nos domicílios tem relação direta com a menor presença feminina no mercado de trabalho. E o nível de ocupação, entre as mulheres de 25 a 49 anos, que vivem em lares com crianças nessa faixa etária, é ainda menor, 54,6%, enquanto a das que vivem em casas onde não há essa presença é de 67,2%.
Para André Geraldo Simões, analista do IBGE, é muito provável que esse resultado se dá ao fato de as mulheres se dedicarem mais tempo aos cuidados domésticos. "(Há) necessidade tanto de maior divisão dos afazeres no domicílio, quanto na implementação de políticas públicas voltadas à criação de creches."
No Nordeste a tendência é a mesma da nacional, mas o nível de ocupação das mulheres com o igual perfil é ainda menor (44,4%). Esse é apenas um dos recortes e um dos poucos dados que existem sobre mães no universo laboral, o que as torna invisíveis para a criação de políticas públicas e privadas.
Os desafios são maiores quando o assunto é mãe solo, única responsável financeira e emocional pelo desenvolvimento do filho, por ter menos tempo para se qualificar. O que ocasiona renda inferior e gera outros efeitos no médio e longo prazo.
Outro ponto que chama atenção é a demissão após o período da licença maternidade. A pesquisa Think Thank da Fundação Getúlio Vargas (FGV) realizada pelo doutor em Economia da entidade, Valdemar Pinho Neto, mostra que a queda no emprego se inicia imediatamente após o período de proteção ao emprego garantido pela licença, quatro meses. Após 24 meses, quase metade das mulheres que tiram licença-maternidade estão fora do mercado de trabalho, um padrão que se perpetua 47 meses após o direito.
A possibilidade dos trabalhos remotos trouxe uma maior flexibilidade para as mães administrarem seu tempo, porém também registrou acúmulo de tarefas. "Por uma questão cultural elas ficam com as atribuições da casa e dos filhos, assim, estão mais sobrecarregadas e com dupla jornada de trabalho", reflete Valdemar.
Dani Junco, fundadora da B2Mamy, hub de inovação focado em tornar mães e mulheres líderes, afirma que todas as mães passam por uma transição de carreira com a maternidade. "Elas podem colocam em prática ideias de negócios ou são demitidas, ou não compensa o salário por falta da rede de apoio e podem até mudar de cargo dentro da própria empresa."
Para a executiva, que abriu seu negócio quando estava grávida e cheia de incertezas e reuniu outras 80 mães, o diálogo com a família sobre divisão de tarefas e o desejo de seguir uma carreira devem ser claros. "Quanto menos culpa a gente carregar é melhor. É preciso convidar os homens para conversar", revela.
Com mais de 15 mil atendimentos psicológicos por mês, a CEO da Imnd Psicologia, Christiane Valle, consegue trazer um panorama bem claro desta situação. "A primeira questão que aparece nas consultas com às mães é a culpa! Difícil uma mãe no mercado de trabalho não transitar por aí, parece que está inerente à maternidade."
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Falta de oportunidades no pós-gestação
Airla Roberta Lacerda brinca que falta “perder o juízo” para conciliar a maternidade, o trabalho e a faculdade. Mãe da Moara, de dois anos, ela foca na logística para dar conta de tudo, até da faculdade em Redenção.
“Nós mães temos que nos desdobrar em mil para conciliar tudo. Sempre que nasce uma mãe, nasce três vezes mais trabalho, mas sou muito grata por ter ajuda, principalmente minha mãe, e dos meus irmãos que são meus suporte”, declara.
Ela sempre trabalhou com serviços estéticos e com a chegada da filha surgiu uma vontade maior de empreender. “O mais louco é que arrisquei todas as minhas fichas e montei meu espaço físico, nesse período de pandemia, antes atendia em domicílio”, diz.
Ainda se ajustando à nova rotina, que inclui organizar as coisas da filha, compartilhar com a mãe os cuidados, aproveitar entre uma cliente e outra para pegar a filha e fazer um lanche para depois retoma os atendimentos até à noite.
Aos sábados conta com a rede de apoio. Às vezes também tem “a ajuda” do pai, que fica responsável em alguns dias da semana. “Ela sempre vem passar um tempinho no meu espaço e entendi que é meu trabalho, que é daqui que tiramos o financeiro para podermos ter o nosso de lazer”, detalha.
"Na minha visão, grande parte das mães empreendedoras já tentou se realocar no mercado de trabalho pós-gestação e encontrou portas fechadas. Existe falta de oferta de vagas para mães, de vagas nas creches e de estrutura de suporte que as ajude, quando essa tem mais de um filho então, fica ainda mais complicado sua situação", relata.
Mesmo com toda a correria ela é feliz com sua vida. “Sou muito grata pelas horas que tenho com ela e poder acompanhar seu crescimento. Ela já está na fase de me cobrar mais atenção e pedir para eu não trabalhar, em alguns momentos, mas vamos nos ajustando e busco o seu entendimento, claro que de forma lúdica sobre a necessidade do trabalho e do estudo”, desabafa.
Quanto aos que a cercam vê muito carinho e disposição em ajudar, mas também observa a reprovação por se dedicar muito tempo ao meu negócio. Para ela, ser mãe e empreender é viver tentando lidar com um sistema de peso e contrapeso.
“É ter que fazer malabarismo todos os dias, é abdicar de muita coisa, é ter momentos de choros de exaustão. É carregar a culpa materna. Vejo que muita gente está romantizando o empreendedorismo materno, coisa que eu sou totalmente contra”, afirma.
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Exemplo de liderança feminina em meio à maternidade
Com uma trajetória de sucesso no mercado de revestimentos, Ana Lúcia Mota, presidente da Cerbras, divide o comando da organização com os três filhos – Ticiana, Felipe e Mariana Mota. Além dos desafios inerentes à profissão, a empresária destaca outro ponto crucial na sua história, a maternidade.
Após o falecimento do seu esposo, quatro anos após a fundação da empresa, Ana Lúcia se viu entre duas realidades, cuidar dos negócios da família e assumir o papel de mãe e provedora do lar. “Foram momentos muito difíceis naquela fase, mas assumi a responsabilidade de adotar os funcionários da empresa também como filhos, garantindo que não ficariam órfãos”, declara a executiva.
Ao lado do filho Felipe, então com 19 anos, foram muitos os desafios vivenciados. As filhas tomavam conhecimento dos problemas enfrentados pelos dois e, quando possível, ajudavam. Isso os aproximou muito. “Chegando a nos fortalecer, criando uma cumplicidade que resultou numa sociedade entre todos da família”, relata.
Além da presidência, Ana Lúcia destaca que a missão de ser mãe é desafiadora, mas também um dos maiores presentes que a vida deu a ela. “Felizmente, meus filhos sempre foram muito compreensivos e presentes, me ajudando nos momentos mais difíceis. Tanto que somos um time, cada um tem seu papel na Cerbras”, conta.
Hoje, os ensinamentos vão se perpetuando e as filhas Mariana e Ticiana Mota também se tornaram mães e, a exemplo de Ana Lúcia, dividem a rotina entre a maternidade e a direção da empresa.
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Rede de apoio gera confiança para a mãe administrar seus negócios
Castiel com quase dois anos é o principal ajudante da mamãe Patrícia Saraiva na confeitaria que ela administra quando ele não está na creche. A vida profissional da empreendedora sempre esteve ligada à maternidade. “Trabalhei até o dia de eu ir para a maternidade, fiz o último bolo e deixei para minha mãe entregar”, conta.
Patrícia considera que é muito corrido e cansativo conciliar a maternidade com o empreendimento, mas ao mesmo tempo muito gratificante, pois sabe que está aproveitando cada evolução dele, fazendo parte da criação e sabe que no futuro isso terá influência positivamente para ele.
“A vantagem de ser mãe empreendedora é que além de estarmos perto dos nossos filhos, não ficamos atrás no mercado de trabalho. Um dos meus maiores medos era esse, não conseguir mais trabalhar, tivesse que dar um tempo e não conseguir voltar mais, mas voltei com 2 meses que tive o Castiel”, confessa a confeiteira.
Hoje, sua rotina inclui atividades perto do filho, pois ela ainda amamenta. Ela tem a sorte de ter uma ampla rede de apoio formada pelo esposo, seus pais e seu irmão. Agora que o esposo está desempregado estão trabalhando também com pronta entrega e retomou a produção de salgados, com o filho indo parte do tempo para creche.
Ela adaptou na própria cozinha o ambiente ideal para a produção. Antes dele começar na creche, acompanhava a mãe nas compras dos produtos e, até hoje, quando ela precisa fazer entregas usa a bicicleta adaptada com a cadeirinha e ele segue juntinho da mãe.
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Empreendedorismo como alternativa na relação com os filhos
A empreendedora, artista e ativista Clara Dourado, sabe bem como é difícil, mas não impossível, conciliar a maternidade solo com sua carreira. “A cada dia vou encontrando uma forma melhor de lidar com essas adversidades e estabelecer uma rotina equilibrada entre a maternidade, o trabalho e o cuidado comigo, que também é essencial”.
Com quase dois anos, Martin Annabi chegou ao mundo na pandemia e sua mãe não teve licença maternidade e nunca parou de trabalhar, não por escolha, mas por necessidade. Clara conta que foram muitas reuniões online com ele no colo, amamentando ou dormindo em cima dela. Com a flexibilização da jornada de trabalho, foi muito difícil deixá-lo com sua mãe para ir àsreuniões.
“Me sentia muito culpada. Até hoje me sinto em alguns momentos. O que muitas pessoas não entendem é que cuidar de um bebê é muito desgastante mental, física, emocional e espiritualmente”, explica.
Mas avalia que tem sorte, pois na sua empresa tem horários flexíveis e a equipe entende seus malabarismos maternos em relação aos horários. Além da mãe, na rede de apoio, leva ele para o espaço Prupê por meio expediente. “Acredito que a chegada do Annabi reforçou ainda mais meu senso de propósito e meus objetivos, o que impacta diretamente no âmbito profissional. Já atuava com empreendedorismo de impacto positivo social e ambiental, mas hoje isso é ainda mais forte. Quero criar e educar um ser humano com valores sustentáveis e éticos, mas também deixar um mundo melhor e uma sociedade mais justa para meu filho”, revela.
Clara, conta que a maternidade trouxe algo muito bonito, um público ainda maior de mães empreendedoras. Para ela, é muito gratificante ver que o seu trabalho pode auxiliar outras mulheres empreendedoras, especialmente as mães, a alcançarem seus sonhos e melhorarem a forma como se relacionam com o trabalho e consigo mesmas.
Sua rotina compreende estar com Annabi no período da manhã, noite e madrugada. À tarde ele fica na Prupê por 3h e é quando ela consegue ter um expediente de trabalho com outras pessoas. É nesse período do dia que ela marca todas as reuniões e trabalhos presenciais.
“Eventualmente ele vai comigo para alguma reunião e todo mundo sempre ama porque ele é muito fofo, mas é difícil demais, não consigo me concentrar, pensar, criar, escrever… ele já está numa fase bem inquieta, é super curioso, quer brincar, conversar”, detalha a mãe.
Além de parte da tarde, usa as madrugadas como seu horário de expediente mais produtivo. Clara gosta de educar o filho com liberdade, autonomia, diálogo, acolhimento e apego. Ela acha lindo poder acompanhar esse desenvolvimento dia após dia. “Inclusive acho que a melhor parte da maternidade é justamente sentir essa dádiva da vida dentro de si e depois ter a oportunidade de acompanhar o crescimento de um ser humano bem de pertinho. É uma grande responsabilidade, traz muitas preocupações, mas também traz um aprendizado, sobre si e sobre o mundo, e uma evolução”, compartilha.
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