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Tremembés temem perder acesso e rejeitam eólicas no mar
Reportagem

Tremembés temem perder acesso e rejeitam eólicas no mar

No aldeamento indígena em Itarema, os tremembés temem que as eólicas offshore causem danos semelhantes, ou piores, de restrição de acesso ao mar como aconteceu com as áreas ocupadas pelas torres no solo. Empresas admitem retirada de mata nativa e impacto em atividades tradicionais
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eólicas (Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo eólicas

 

 

No pátio da Escola Indígena Maria Venância, em Itarema, as crianças fazem fila para as pinturas corporais. Tinta à base de jenipapo marcando o rosto, braços e pernas. A formação em círculo, mãos dadas, e seguem o ritmo da marcação percussiva de dois aguains (maracás) e do atabaque. Os cantos são em português, mas na língua nativa poromongûetá, versos que falam de apindaiti ou pirassaba (pescaria), rá (colheita), momeuçabas (lenda), Nhêmuapy (lutar).

A tradição de cantar e dançar o torém tem pedagogia, brincadeira, o sagrado, mas o significado principal é o da resistência. Na experiência de quase duas décadas atrás, quando houve a intenção dos projetos eólicos onshore (no continente) de se instalarem dentro do aldeamento, o povo tremembé de Almofala rechaçou a proposta. Foram discussões acaloradas, não queriam o território atravessado, e as empresas refizeram os planos. A crítica e repulsa dos tremembés é ainda maior quanto à perspectiva das eólicas offshore serem instaladas no oceano diante deles.

Crianças durante a dança do torém, um dos símbolos culturais de resistência do aldeamento Tremembé de Almofala, em Itarema. Região é um das indicações em projetos de licenciamento para instalação de eólicas offshore na costa cearense(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Crianças durante a dança do torém, um dos símbolos culturais de resistência do aldeamento Tremembé de Almofala, em Itarema. Região é um das indicações em projetos de licenciamento para instalação de eólicas offshore na costa cearense

“Temos consciência que é uma energia mais limpa comparada com outras fontes de energia, mas quero que alguém prove que não tem impactos ambientais. É só observar onde foram colocadas as torres que estão aí hoje. Tem que abrir estrada, que só faz se entupir lagoa, córrego. E quando é implantada não existe mais o livre acesso na região. No mar é mais delicado ainda. É mais devastador que na terra”, define Getúlio Santos, 38, diretor da unidade de ensino.

No Ceará, o Ibama recebeu pedidos de licenciamento ambiental para 11 grandes parques eólicos serem erguidos dentro do mar territorial. Previsão de um primeiro deles surgir a partir de 2027. Os tremembés estariam na iminência de terem quatro desses projetos nas águas mais próximas - entre Itarema e a vizinha Amontada, mas se estendendo por Acaraú, Camocim, por onde navegam em pescaria. Além do conceito de energia renovável, um dos argumentos é de que, no ambiente marinho, a capacidade produtiva seria maior do que a dos complexos onshore.

“O mar é vida, é parte de nós, é uma segunda casa. O mar dá alimento. Grande parte da população indígena daqui ou a maioria ainda sobrevive só da pesca e da roça. Como vai ser? Estão engolindo a gente com essa eólicas por todos os lados”, reclama Janiel Marques, 28, educador, nascido na aldeia. Moram 800 famílias nas terras tremembés próximas. Ele recorre a um trocadilho para imaginar o cenário novamente alterado. “Dizem que essa é uma energia limpa. Mas é porque ela vem e limpa tudo mesmo. Limpa todo o ecossistema local, fauna e flora. Desmata para implantar (as torres). Eram ambientes só de matas nativas, tirávamos nossas plantas medicinais. A gente acha que no mar vai ser igual ou pior”, prevê.

Getúlio Santos, 38, diretor da Escola Indígena Tremembé Maria Venância, em Itarema. Ele participou das discussões com as empresas, quando tentaram implantar as eólicas onshore na área do aldeamento, no final da década de 2000(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Getúlio Santos, 38, diretor da Escola Indígena Tremembé Maria Venância, em Itarema. Ele participou das discussões com as empresas, quando tentaram implantar as eólicas onshore na área do aldeamento, no final da década de 2000

Na região, os aerogeradores estão por cima ou no entorno de dunas, lagoas, riachos, em áreas de mata e mangue que são/eram do uso diário para a etnia. “Nem sei quantas torres têm”, admite Janiel. Getúlio Tremembé, formado em magistério indígena superior, com licenciatura intercultural, fez parte desde as primeiras reuniões de meados dos anos 2000, prévias à chegada dos primeiros aerogeradores. “Foram momentos tensos, queriam colocar bem mais próximo do nosso território. As torres fincadas ainda estariam na área tremembé, mas dentro do que ficou fora do estudo antropológico, do que não foi delimitado”, recorda o diretor. A área é de 4.900 hectares. O processo de demarcação segue em análise judicial e administrativa.

Dos danos percebidos na região, um envolve um dos maiores peixes do mar local. “Algumas eólicas são muito perto do mangue e a gente já tá sentindo falta de alguns peixes. O camurupim entra na barra do rio para desovar e ele não tá fazendo mais isso. É por conta do barulho das torres”, acredita Janiel. Os caranguejos também estariam se afastando. Os pescadores falam que, de dentro do mar, se ouve o barulho e a vibração das eólicas do continente. Nos currais marinhos, técnica usada pelos povos tradicionais para capturas em maior quantidade, o peixe estaria se afastando.

As dúvidas dos projetos offshore se estendem de volta para o continente. Ninguém da aldeia sabe ainda como serão fixadas as linhas de transmissão, se os cabos submarinos cruzarão as terras do aldeamento. “Até agora nenhuma empresa veio para conversar”, afirma o educador. 

Placa de parque eólico na praia da Tijuca, em Itarema, alerta para "risco de morte" devido a rede elétrica subterrânea na região (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Placa de parque eólico na praia da Tijuca, em Itarema, alerta para "risco de morte" devido a rede elétrica subterrânea na região

Na área próxima à praia da Tijuca, onde já existem eólicas onshore no entorno do aldeamento, uma placa próxima à cerca faz o alerta: "PERIGO. Rrede elétrica subterrânea. Proibido escavar nas proximidades. RISCO DE MORTE".

Getúlio diz que ainda não há informação suficiente para começar a repassar para os alunos. “Vamos falar com a comunidade quando as empresas nos falarem algo. Precisamos entender mais, mas falo por mim: não vejo ponto positivo. Sei que vai impactar diretamente no bem-estar do nosso povo”. 

Uma das disciplinas da escola chama Saberes Tremembés de Mar, Céu e Terra. São aulas do ensino médio e a maioria não é dentro de sala. O professor é o próprio avô de Janiel, o cacique João Venâncio, que foi pescador por muitos anos. É ele que repassa as práticas de várias gerações da etnia, ensinamento ancestral: tipos de pescaria, a costura das redes, preparar manzuás (tipo de armadilha), construir currais no mar, fazer embarcações, navegar orientado por estrelas, pela maré. O ensinamento ancestral preserva a atividade. As torres offshore, que poderão surgir onde hoje ainda é o mar aberto, projetam um novo momento da resistência tremembé.

 

 

Crianças tremembés em imagens


 

Conheça a língua Poromongûetá, dos tremembés

Veja algumas expressões da língua nativa dos índios tremembés. É um tronco bem antigo da língua tupi. Grupos de pesquisadores, incluindo representantes da própria comunidade indígena, trabalham no resgate do vocabulário. Hoje, os tremembés utilizam o português, mas vários termos seguem presentes no dia a dia da comunidade do aldeamento.

 

 

Eólicas hoje cercam dunas; novo projeto terá base na foz de rio

A foz do rio Aracatiaçu deverá sediar a base de apoio e manutenção de um dos parques eólicos offshore previstos para o mar em frente às praias do município de Amontada. Assim está informado na Ficha de Caracterização de Atividade (FCA) do projeto Asa Branca I repassada ao Ibama. A empresa responsável já teria um imóvel previsto para locar ou adquirir e usá-lo como um dos pontos do projeto. Deverão usar lanchas para acessar o futuro parque diariamente.

Foz do rio Aracatiaçu, em Amontada, que deverá sediar uma base de apoio para manutenção de um dos quatro complexos eólicos offshore previstos para esse trecho do litoral oeste cearense(Foto: FCO FONTENELE/O POVO)
Foto: FCO FONTENELE/O POVO Foz do rio Aracatiaçu, em Amontada, que deverá sediar uma base de apoio para manutenção de um dos quatro complexos eólicos offshore previstos para esse trecho do litoral oeste cearense

O passeio de barco pelo Aracatiaçu é um dos principais atrativos para quem vai à praia de Moitas, em Amontada. A região é encontro de rio e mar, cercado de vegetação de mangue e com dunas no entorno. Em poromongûetá, a língua nativa dos índios tremembés que habitam a região, aracatiaçu que dizer brisa cheirosa que vem do mar. É num trecho do passeio que o visitante constata como a inserção das eólicas no cenário é impactante.

De repente, o visual natural é interrompido por uma fileira de aerogeradores de um complexo onshore. Os equipamentos aparecem por cima de uma duna que desce para dentro da água. Pela altura, toma a atenção sobre o restante da paisagem.

Parque eólico que funciona ao lado do mangue e das dunas no entorno do rio Aracatiaçú, na localidade Barra de Moitas, em Amontada (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Parque eólico que funciona ao lado do mangue e das dunas no entorno do rio Aracatiaçú, na localidade Barra de Moitas, em Amontada

Pedro de Sousa Neto, 50, pescador e liderança no Assentamento Rural Barra de Moitas, fala dos receios sobre o novo projeto que já perturbam a comunidade. Sem informações das empresas, o principal temor é de que não possam mais pescar. “Nós nascemos aqui, somos pescadores. Chegar e dizer ‘tu não vai mais poder pescar ali’. Isso é de correr água nos olhos. É como se dissessem ‘a partir de hoje o vento é meu e o mar é meu também’”, compara.

Ainda não há informações específicas sobre o percurso das linhas de transmissão e dos cabos submarinos e subterrâneos ligados às torres no mar. Eles aguardam esse detalhamento em algum contato futuro da empresa com a comunidade. A região de Amontada já tem subestação para o parque onshore. Deverá receber mais estruturas dos complexos offshore para transferir a energia produzida até o Pecém, em São Gonçalo do Amarante.

“Aqui vai correr muito cabo de aço no mar. A gente fica até com medo de uma âncora encostar num desses. A profissão da gente é a pesca, no rio, no mar. Se tirar a gente do mar, matou a gente”, imagina Edivaldo Gonçalves, 33, um dos 60 barqueiros no Aracatiaçu, há três anos na atividade. Com o que arrecada nos passeios, reforça a renda. Em casa, serve almoço, hospeda turistas, planta. E o mar e o rio garantem o peixe.

Neto lembra quando a ideia inicial do parque onshore já instalado era que os aerogeradores fossem fixados mais em cima das dunas e mais dentro do mangue. Segundo ele, a comunidade enfrentou e conseguiu superar a proposta original. “Essa foi a primeira eólica aqui da região de Barra de Moitas, quando a gente nem sabia o que era isso. Era para ter sido colocada nas dunas, no mangue mesmo. Do nosso assentamento, a distância é três a quatro quilômetros”, descreve.

Vista aérea do assentamento Barra de Moitas, em Amontada, que fica próximo ao encontro do rio Aracatiaçu com o mar. Ao fundo, os parques eólicos instalados na região(Foto: FCO FONTENELE/O POVO)
Foto: FCO FONTENELE/O POVO Vista aérea do assentamento Barra de Moitas, em Amontada, que fica próximo ao encontro do rio Aracatiaçu com o mar. Ao fundo, os parques eólicos instalados na região

O povoado de Barra de Moitas começou a se formar por volta da década de 1940. A família da tia-avó de Neto, tia de seu pai, foi a primeira a ocupar a região. Na longa permanência, mais moradores se agregaram ao local vivendo basicamente de agricultura e pesca. Em 2015, o governo estadual concedeu o título de terra para cerca de 100 famílias.

 

 

Investidores admitem retirada de mata nativa e impacto em atividades tradicionais

As Fichas de Caracterização de Atividades (FCA) dos complexos eólicos offshore descrevem como será a inserção das novas estruturas quando precisarem chegar ao continente. Elas trazem os dados detalhados das futuras operações de transferência da energia produzida. O POVO teve acesso a duas dessas FCAs, dos projetos Jangada e Asa Branca I.

A FCA traz um questionário, feito pelo Ibama, em que o grupo investidor marca "Sim" ou Não" se haverá previsão de impactos ambientais, socioeconômicos ou físicos, em situações diversas. O Complexo Eólico Marítimo Asa Branca I marcou "Sim" em quatro possibilidades de impactos: "previsão de "supressão de vegetação nativa"; "impacto ambiental (direto ou indireto) em bens culturais acautelados em âmbito Federal, nos termos da legislação vigente"; "impacto socioambiental (direto ou indireto) nas atividades tradicionais, culturais, sociais, econômicas ou de lazer"; e "impacto (direto ou indireto) em meio aquático".

Subestação elétrica em Amontada, que recebe energia de parque eólico onshore instalado na região. Litoral oeste tem previsão de receber pelo menos sete parques eólicos dentro do mar (offshore) nos próximos anos(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Subestação elétrica em Amontada, que recebe energia de parque eólico onshore instalado na região. Litoral oeste tem previsão de receber pelo menos sete parques eólicos dentro do mar (offshore) nos próximos anos

O Jangada admitiu possíveis impactos diretos ou indiretos em somente duas situações: "previsão de impacto socioambiental nas atividades tradicionais, culturais, sociais, econômicas ou de lazer"; "previsão de impacto em meio aquático".

No Asa Branca I, a energia começa seu caminho na costa a partir de equipamentos instalados na praia de Moitas, em Amontada, seguindo por "uma linha de transmissão de 230 kV (kilovolt) com 116,68 km de extensão e 241 torres de transmissão". A energia será transferida até a Subestação Pecém II 230/500 kV (nível de tensão), localizada na beira da CE-085 (rodovia Estruturante). Segundo o documento, esse linhão do Asa Branca I cruzará os municípios de Itapipoca, Trairi, Paraipaba, Paracuru até o Pecém.

No projeto Jangada, a energia produzida será transferida por 91 km de linhas de transmissão, também até a subestação Pecém II, com nível de tensão em 500 kv. Não é especificado o trajeto do linhão. Os cabos submarinos saem do mar e entram na costa, subterrâneos, a partir do litoral de Itapipoca. De lá serão conectados aos linhões de transmissão.

Quando estiver em funcionamento, o Asa Branca I prevê uma base local de operações e de manutenção programada na Barra do Rio Aracatiaçú, ainda no Distrito de Moitas, com acesso ao mar de lancha de transporte de pessoal pelo leito do rio. O projeto deverá ter radares para monitoramento meteorológico, oceanográfico e ornitológico - presença de aves na região.

A FCA de cada projeto está protocolada pelas empresas no processo para licenciamento e não pode ser editada após a confirmação de conclusão do envio ao Ibama.

 

 

 

"Nossa opinião está sendo deixada de lado"

A bióloga Alanna Carneiro, presidente da ONG Eco Icaraí, de Amontada, diz que os povos tradicionais do litoral (pescadores artesanais, assentados, indígenas, camponeses) precisam ser ouvidos e consultados previamente sobre a proposta das eólicas ocuparem o mar cearense. Ela cobra a aplicação de acordo internacional, do qual o Brasil é signatário. "A gente aqui não foi informado, não teve nenhuma audiência pública, não tivemos nenhum órgão licenciador vindo até as comunidades informar como esses projetos vão acontecer e querendo saber nossa opinião sobre isso". Ela prevê impactos ambientais irreversíveis que devem acentuar os conflitos das comunidades em relação aos projetos de energias renováveis.

Alanna Carneiro, presidente da ONG Eco Icaraí, de Amontada, que está atuando na mobilização das comunidades costeiras a serem afetadas pelos projetos das eólicas offshore no litoral oeste do Ceará(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Alanna Carneiro, presidente da ONG Eco Icaraí, de Amontada, que está atuando na mobilização das comunidades costeiras a serem afetadas pelos projetos das eólicas offshore no litoral oeste do Ceará

O POVO - Qual a mobilização que existe hoje das comunidades do litoral oeste do Ceará em relação aos projetos de eólicas offshore?
Alanna Carneiro - A gente vem se preocupando há algum tempo com todos esses projetos de energia eólica dentro do mar. A gente sabe que são projetos que vão acabar com a soberania alimentar dos povos e comunidades tradicionais, principalmente dos pescadores artesanais, camponeses, assentados e indígenas que habitam essas áreas do litoral oeste. Nossa mobilização é coletiva, popular, onde as comunidades estão se empoderando do assunto para justamente cobrar que pelo menos haja o processo de consulta livre prévia informada. E que a comunidade decida sobre a autonomia dos seus territórios, frente a esses empreendimentos, que de nada vão beneficiar as comunidades.

O POVO - Você usa o termo maretório, diz que esse impacto não é só para o pescador, mas para a região, para a vida da comunidade.
Alanna - A gente costuma falar que os povos não têm uma relação só com o território, ou maretório, de apenas extração, uso ou coleta de alguma coisa. A gente convive e vive com os territórios de uma forma muito intrínseca. Estamos o tempo todo nessa relação direta, tanto com o mar como com a parte em terra do litoral. Quando a gente fala de espaços lúdicos, de crianças brincarem, para ter essa garantia que vão continuar crescendo com a nossa cultura, com acesso ao mar, acesso ao lazer, que nossos antepassados tiveram e passaram pra gente. Tudo isso a gente considera de muita importância. Porque o mar também é um território sagrado, onde acontecem nossas manifestações populares, nossos cultos, onde a gente faz nossas preces, admira, usa pra relaxar. Tem todos os serviços ecossistêmicos atrelados a essa utilização do oceano, ar mais limpo, saúde mental. Também a relação com um pescado de qualidade, da mariscagem, da cultura que influencia diretamente na alimentação desses povos. De como esses povos se comportam e estabelecem suas sociedades dentro dos territórios. Não dá para diferenciar o território em terra do território de mar, por isso que a gente chama de maretório. Porque adentra na área marinha a nossa relação com o território.

O POVO - Através da ONG, você fez um percurso por gabinetes de Brasília para levar essa causa da chegada das eólicas offshore. O que há de perspectiva de esses projetos acontecerem de vez?
Alanna - O nosso intuito de ir a Brasília, nesse plano de advocacy (agenda de reuniões para defesa antecipada e lançar argumentos em torno de uma causa), foi justamente criar uma agenda de incidência na política brasileira, para que os povos e comunidades que estão nesses territórios possam influenciar na tomada de decisão. Fomos abordando os impactos socioambientais, o potencial de conflitos que esses empreendimentos acabam causando nas comunidades e cobrar melhorias. A gente quer ser consultado. Existe um acordo internacional que o Brasil é signatário, a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), onde diz que os povos e comunidades tradicionais têm direito garantido a uma consulta livre e prévia informada. E em nenhum momento isso aconteceu. A gente aqui não foi informado, não teve nenhuma audiência pública, não tivemos nenhum órgão licenciador vindo até as comunidades informar como esses projetos vão acontecer e querendo saber nossa opinião sobre isso. Muito pelo contrário, a gente enxerga que esses projetos de industrialização do mar vêm de uma forma muito bem planejada para que abafe a nossa voz. A gente não é informado nem consultado sobre esses processos e fica à parte de tudo. Não estamos pertencendo a todo esse processo. Nossa opinião está sendo deixada de lado e nosso território acaba sendo vendido para empreendedores espalhados pelo mundo. A gente observa que as eólicas em terra já não beneficiam as comunidades, porque a gente aqui sofre queda de energia diariamente, sofre com comunidades que não têm energia elétrica. Isso são pontos muito graves de injustiça socioambiental.

OP - Hoje em Icaraí de Amontada há um cinturão de eólicas dos dois lados.
Alanna - Essa área que estamos conversando é dentro de um parque eólico e ela é totalmente privatizada. A gente está aqui e por acaso não tem ninguém ainda mandando a gente sair (Logo após a entrevista, durante a sessão de fotos da entrevistada, um segurança chegou de moto, fez foto do veículo da reportagem e exigiu que a equipe deixasse o local. Uma outra pessoa, que seria o encarregado da segurança, também apareceu e chegou a seguir o carro do jornal na saída do parque e no deslocamento pela localidade). Aqui normalmente é uma área que os moradores e pescadores artesanais que querem ter o acesso por aqui para o mar acabam impedidos. A gente observa que com isso nossas crianças deixam de ter espaço para brincar nas dunas, se relacionar e aprender com o território. Entendo que hoje em dia é muito importante preservar uma duna, uma lagoa, porque vivi nesse território e hoje em dia estão todos cercados por parques eólicos. A gente acaba perdendo tanto a questão afetiva como a qualidade ambiental.

Alanna Carneiro, presidente da ONG Eco Icaraí, de Amontada, que está atuando na mobilização das comunidades costeiras a serem afetadas pelos projetos das eólicas offshore no litoral oeste do Ceará(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Alanna Carneiro, presidente da ONG Eco Icaraí, de Amontada, que está atuando na mobilização das comunidades costeiras a serem afetadas pelos projetos das eólicas offshore no litoral oeste do Ceará

O POVO - Qual a perspectiva de tempo para que esses projetos sejam instalados dentro do mar?
Alanna - A nossa expectativa é que ele nunca venha, mas aqui é uma especulação sempre de quando esses empreendimentos vão chegar. Tem gente que diz que no próximo mês já vão começar as obras. A gente sabe que são várias etapas que esses projetos precisam enfrentar, desde uma licença prévia, licença de instalação, até conseguirem a licença de operação para que estejam efetivamente em nossos territórios. Mas nossa perspectiva é conseguir cada vez mais o engajamento popular, audiências públicas, para requerer nossos direitos e estar também relatando as injustiças socioambientais. A gente espera que efetivamente essas obras não aconteçam, mas há uma previsão estimada de dois a três anos para que comecem as licenças de instalação (obras). Eles ainda têm que passar por todos os processos de licenciamento. O órgão que está cuidando disso é o Ibama. A gente fica muito em alerta acompanhando essas etapas de licenciamento porque nunca sabe ao certo quando essas obras vão começar.

O POVO - Quantos parques estão propostos aqui para a região em frente a Amontada?
Alanna - Até o momento, pela informação do último mapeamento do Ibama, estão propostos sete parques eólicos para o litoral oeste, sendo quatro nessa região próxima de Trairi a Itarema. Isso preocupa muito porque a gente tem aqui uma pescaria muito forte e a gente sabe que a implementação desses parques vai trazer uma privatização do mar. E alterações ambientais que vão ser irreversíveis, como alterações de pontos de pesca, rotas de navegações mais longas, sedimento na coluna d’água que acaba afastando o pescado, introdução de espécies exóticas, derramamento de óleo, poluição química, aumento da temperatura. São incansáveis impactos socioambientais que vão gerar conflitos. E esses conflitos a gente observa com um olhar muito mais delicado. Porque para solucionar um conflito se demora muitos anos, e às vezes ele nem tem solução. A gente vem observando que esses conflitos relacionando energias renováveis com questões socioambientais estão cada vez mais presentes nos povos e comunidades tradicionais.

 

 

Leia no episódio 3 (final): 

Eólica offshore em Caucaia ficará a 6 km da foz do rio Ceará e é o processo etapas mais avançadas junto ao Ibama para obter licenciamento ambiental. Projeto deverá ter investimento de 1,2 bilhão de euros.

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