Trinta e quatro. Este é o número de locais, em todo o Brasil, que fazem, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), atendimentos de saúde relacionados a transição de gênero. Destes, apenas cinco realizam procedimentos cirúrgicos. Os dados são da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Um estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de novembro de 2021, estima que 2% da população brasileira seja transgênera. A pesquisa, sobreposta com a população nacional de 214,8 milhões de pessoas — segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) —, resulta o montante equivale a cerca de 4 milhões de pessoas trans no País.
Essa população tem demandas comuns aos cisgêneros, mas também próprias. Em 2019, foram realizados 224 cirurgias de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2020, com a pandemia de Covid-19 sobrecarregando o sistema de saúde, foram cerca de 30. Na rede pública, a fila de espera por procedimentos do tipo passa de uma década.
A dificuldade nos atendimentos especializados, apesar de importante, está longe de ser o único problema deste grupo ao buscar o direito constitucional à saúde. Arthur Dantas tem uma lista dessas dificuldades. De problemas em atendimentos diretamente relacionados à vivência como homem trans, como endocrinologia e psicologia, até serviços mais específicos, como ginecologia, passando por questões básicas, como o tratamento correto de nomes e pronomes.
Hoje, Arthur faz o acompanhamento de saúde quase totalmente na rede privada. A exceção fica para o de psicologia, no Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, da Prefeitura de Fortaleza. Tanto no plano de saúde quanto no SUS, porém, ele afirma ter passado por problemas.
No começo da transição, ele recorria apenas ao SUS, e presenciou ou foi vítima de diversas situações. Muitas delas eram relacionadas ao respeito ao nome — antes usado como nome social, mas desde 2018 com documentos retificados. Arthur pontua que, tanto com si próprio quanto acompanhando amigos, teve dificuldades desde o cadastro em postos de saúde.
No sistema de saúde privado, a estratégia de Arthur é tentativa e erro. Ao receber atendimento de profissionais sem conhecimento sobre pacientes trans, e que não busquem se atualizar sobre o tema, ele simplesmente não volta a se consultar.
Arthur também procura receber indicações de médicos que tenham bom histórico sobre o assunto e recomendar a outras pessoas trans especialistas que lidem bem com este público. Ele pontua que, muitas vezes, os profissionais podem não ter conhecimento sobre o tema, mas se dispõem a compreender as especificidades deste grupo.
Há casos, porém, em que nem essa estratégia pode ser usada. O plano de saúde de Arthur exigiu uma avaliação psicológica para autorizar a mastectomia — cirurgia de retirada dos seios. O profissional apontado pelo plano para realizar a avaliação, porém, sequer tinha experiência com pessoas trans.
Outro problema apontado por Arthur é a falta de equipes multidisciplinares no plano de saúde. Ele compara com o exemplo das cirurgias bariátricas (redução de estômago). O procedimento requer diversos laudos e avaliações, incluindo de nutricionistas, endocrinologistas e psiquiatras. A empresa tem uma série de profissionais nestas especializações, que lidam especificamente com pessoas que passarão por esta cirurgia.
Para ele, o fato de haver exigências similares para processos de pessoas trans, como cirurgias e hormonioterapia, deveria levar a empresa a fornecer profissionais especializados no assunto. Não é o caso, argumenta.
Para ele, estas situações afastam pessoas trans do cuidado com a própria saúde. No caso de pessoas transmasculinas, ele aponta que muitos chegam a ter medo de frequentar ginecologistas, sendo forçados a negligenciar esta parte do corpo.
O relato do enfermeiro Caio José é parecido. "Eu sou usuário da rede privada e SUS. Em ambas tive problema com meu nome (quando ainda não tinha retificado), mas na rede pública foi bem pior, pois o Ceará não tem atendimento para pessoas trans no SUS em relação a nossa transição", critica.
"Como um profissional da saúde e em condição de pessoa trans é uma luta dobrada pra se afirmar, pois automaticamente você é posto em uma posição de preconceito e exclusão. É como se eu tivesse que ser o melhor sempre, pois não posso errar. Já ouvi muitos insultos vindo pessoas que deveriam me respeitar", lamenta, citando ter ouvido de uma professora que "pessoas como ele são estupradoras". "Eu sou o primeiro enfermeiro homem trans a ter o Coren (Conselho Regional de Enfermagem) com nome social. Na minhas salas de estudo desde a faculdade até o mestrado eu sempre fui o único trans. Ainda estamos longe da inclusão", pontua.
Para a sexóloga Débora Britto, que atende na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), da Universidade Federal do Ceará (UFC), uma das principais barreiras para pessoas trans, no acesso à saúde, é a falta de profissionais acolhedores.
A profissional indica que é necessário visibilizar as demandas específicas deste grupo nos próprios cursos de Medicina. Por isso, muitas vezes, pessoas trans ouvem dos médicos que eles "não têm especialização em transexualidade". "Não existe essa especialidade em transgeneridade ou transexualidade", diz Débora. "O que existe na verdade é a necessidade de cada vez mais atualizarmos a nossa atuação profissional às novas demandas e novos saberes científicos", completa.
Centros de Referência LGBT estadual e municipal atendem demandas da população trans
A transfobia é presente em virtualmente todos os relatos de pessoas trans. Isso se reflete, também, no acesso aos serviços de saúde. A redução dos danos, porém, é um processo que avança.
Tanto o Governo do Estado quanto a Prefeitura de Fortaleza contam hoje com equipamentos voltados às pessoas LGBTQIA+, que recebem demandas e denúncias da população trans em relação à saúde e diversos outros temas.
No âmbito municipal, o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, criado em 2011, foi pioneiro neste tipo de atendimento. O Governo do Estado inaugurou seu equivalente, o Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues, dez anos depois.
Outro equipamento que demorou a sair do papel foi o Serviço de Referência Transdisciplinar para Transgêneros (SerTrans), vinculado à Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). Demanda histórica da população trans, o ambulatório foi prometido para 2017, mas inaugurado apenas em 2019.
No caso do ambulatório há dois problemas fundamentais. Em primeiro lugar há a limitação na capacidade: com cerca de dez profissionais, a fila de espera do SerTrans chega a ultrapassar um ano, e o atendimento é realizado apenas na Capital.
O segundo é a localização: o Sertrans foi criado em 2016 como uma divisão do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade Humana (Atash), no Hospital Mental Professor Frota Pinto, em Messejana. "Fica no mesmo lugar do Atash, em um hospital mental. E nunca tem vaga pra nós. Sempre estão lotados. Nunca tem atendimento. Somos violados pelo Estado toda vez que somos jogados em um hospital mental, como doentes mentais, o que não somos", critica Caio José.
Em 2019, o SerTrans passou a receber pacientes de toda a rede pública de saúde. Ainda assim, ele segue vinculado à instituição psiquiátrica, funcionando no mesmo local do Atash.
Representantes dos Centros de Referência estadual e municipal foram procurados pelo O POVO. Até o fechamento do texto, porém, ainda não haviam dado resposta às demandas.
A partir dessa segunda-feira, 27, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) realiza um ciclo de atividades em Fortaleza, Sobral e Juazeiro do Norte para celebrar o mês do orgulho LGBTQIA+, no Ceará. Titulada de Semana da Diversidade Luis Palhano Loiola, o evento conta com serviços de cidadania para o público, como a retificação de documentos e informações sobre crimes de LGBTfobia. As atividades seguem até o próximo sábado, 2 de julho.
Em Fortaleza, a programação em alusão ao Dia internacional do Orgulho LGBT+, celebrado nesta terça-feira, 28, traz a ação “Orgulho e Cidadania”, na Praça do Ferreira, no Centro da Capital, das 9 às 17 horas.
No local, serviços como emissão da 2ª via do RG com o nome social; atendimento psicossocial e jurídico; serviços de enfermagem e redução de danos serão ofertados no Caminhão do Cidadão; na Unidade Móvel de Enfrentamento a Violência contra a Mulher e na Unidade Móvel do Centro de Referência sobre Drogas.
Nos municípios de Sobral, na região Norte do Estado, e de Juazeiro do Norte, na região do Cariri cearense, as ações para celebrar o Mês de Orgulho serão realizadas nos Vapt-Vupts. Nos locais, está programado um ciclo de palestras sobre diversidade.
Na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), haverá a exibição do documentário Transversais, do jornalista Émerson Maranhão, na Unidade Prisional Irmã Imelda, em Aquiraz, às 9h30min. O filme traz a história de cinco pessoas trans, seus medos, desafios e conquistas, além da importância da família no processo de afirmação de suas identidades.
A titular da SPS, Onélia Santana, ressalta que a Semana da Diversidade Sexual do Ceará faz parte do calendário oficial de eventos do Estado, por meio da Lei 14.820/2010. “Precisamos celebrar as conquistas e o orgulho da população LGBT+, para assim fortalecer a luta deste segmento e reafirmar que o Ceará é de todes”, destaca a secretária.
Durante a semana do orgulho, haverá ainda um casamento coletivo LGBT+. A iniciativa vai acontecer no sábado, 2 de julho, às 16 horas, no Teatro São José, em Fortaleza. A ação é realizada pela Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), através do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra; pela SPS, através do Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues; e pelos Cartórios Mondubim e do Mucuripe, com o apoio de outros parceiros, como a Defensoria Pública Geral do Ceará.
A Semana da Diversidade Sexual do Ceará leva o nome do professor Luis Palhano Loiola, que foi assassinado por crime de homofobia, em 2008, no município de Crateús, a 359 quilômetros de Fortaleza. (Mirla Nobre / Especial para O POVO)
Ciclo de Palestras: Respeite meu Orgulho
Quando: Segunda-feira (27/6)
Horário: 9 horas
Onde: UAPS Anastácia Magalhães/ Rua Delmiro de Farias, 1670, bairro Rodolfo Teófilo, Fortaleza
Ação “Orgulho e Cidadania”
Quando: Terça-feira (28/6)
Horário: 9h às 17h
Onde: Praça do Ferreira, Centro de Fortaleza
Webnar Respeite Meu Orgulho
Quando: Terça-feira (28/6)
Horário: 15h às 17h
Onde: Transmissão realizada através do canal SPS Ceará, no Youtube
Ciclo de Palestras: Respeite meu Orgulho
Quando: Terça-feira (28/6)
Horário: 9h30min
Onde: Unidade Vapt Vupt de Juazeiro do Norte/ Rua Interventor Francisco Erivano Cruz, 120 - bairro Centro
Ciclo de Palestras: Respeite meu Orgulho
Quando: Quarta-feira (29/6)
Horário: 9h30min
Onde: Unidade Vapt Vupt de Messejana/ Rua Av. Jornalista Tomaz Coelho, 408 - bairro Messejana, Fortaleza
Ciclo de Palestras: Respeite meu Orgulho
Quando: Quinta-feira (30/6)
Horário: 9h30min
Onde: Unidade Vapt Vupt de Sobral / R. Cel. José Silvestre, 201 – bairro Centro
Cine Debate LGBT+: Exibição do documentário Transversais
Quando: Quinta-feira (30/6)
Horário: 9h30min
Onde: Unidade Prisional Irmã Imelda/ Rua Camará, Aquiraz
Ações em Sobral de Enfrentamento a Violência contra as Mulheres LBT Vitimas de Violência Domestica no Ônibus Lilás
Quando: Quinta-feira (30/6)
Horário: 9h30min
Local: Centro de Sobral
Ciclo de Palestras: Respeite meu Orgulho
Quando: Sexta-feira (1/7)
Horário: 9h30min
Onde: Unidade Vapt Vupt do Antônio Bezerra/ Rua Demétrio Menezes, 3751
Casamento Coletivo LGBT
Quando: Sábado (2/7)
Horário: 16 horas
Onde: Teatro São José/ Rua Rufino de Alencar, 299-327 - Centro, Fortaleza
O POVO listou abaixo alguns dos termos mais comuns ao se falar da saúde de pessoas trans. Acompanhe:
Agênero: pessoas cuja compreensão é de não terem gênero algum, seja binário ou não.
Bloqueadores de hormônios: medicamentos usados por pessoas trans, em especial transfemininas, para bloqueio da produção de hormônios sexuais. Em adolescentes trans, são usados para evitar o surgimento de características sexuais secundárias, como barba ou seios, até que a pessoa atinga a maioridade e escolha se deseja realizar cirurgias ou hormonioterapia
Cirurgia de redesignação sexual (ou transgenitalização): procedimento médico realizado por pessoas trans para modificar os genitais. Pode ser neovaginoplastia (remoção do pênis e criação de um canal vaginal) ou neofaloplastia (fechamento do canal vaginal e criação de um pênis)
Cisgênero: pessoa que se identifica com o sexo atribuído no nascimento; quem não é transgênero
Hormonização/hormonioterapia: uso de medicações para controlar a produção de hormônios pelo corpo, e compensar os que não são produzidos. Pode haver o bloqueio de testosterona, com uso de estrogênio e prolactina, ou a suplementação de testosterona
Identidade de gênero: como a pessoa se entende dentro do espectro de gênero. Pode ser feminina, masculina, neutra/nula ou não-binária
Intersexo: pessoa que nasce com genitália ambígua. Não necessariamente pessoas intersexo são trans. A mutilação genital de pessoas intersexo, ainda quando bebês, é um problema frequente, e a demanda da comunidade é que os procedimentos não sejam realizados, exceto em casos de estrita necessidade de saúde
Mastectomia: procedimento cirúrgico de retirada do tecido mamário, "remoção dos seios"
Não-binárie: pessoas cujo gênero não pode ser definido nas categorias "homem" ou "mulher". É diferente de gênero nulo/agênero
Transexual: termo em desuso, prefere-se a denominação "transgênero" (ver abaixo)
Transgênero: pessoa que não se enquadra no gênero atribuído ao nascer. Podem ser homens trans, mulheres trans, pessoas não-binárias ou agênero
Travesti: identidade de gênero no espectro das feminilidades. Deve ser sempre tratada no feminino: "a travesti"