Durante o ano de 2020, a empresária Juliana, nome fictício usado para preservar a identidade da entrevistada, estava se divorciando em meio a "crises de agressividade" que aumentavam, como ela conta. "Eu temia sim que ele me agredisse ou fizesse algo pior. Tiveram alguns episódios de agressividade. Até que um dia ele se exaltou dentro da escola do meu filho. Correu atrás de mim no estacionamento, entrou à força no banco de trás do meu carro, tomou a chave e puxou o freio de mão, gritando que eu tinha que escutar o que ele tinha a dizer", lembra.
Nesse dia, ela buscou a Casa da Mulher Brasileira, equipamento que atua com rede de proteção e atendimento humanizado às mulheres que foram vítimas de violência. "Depois que fui, percebi como estamos vulneráveis. Eu não sofri nada diante do que vi na delegacia; porém, nem eu, nem nenhuma das mulheres que vi lá puderam sair em paz", diz, apontando a lentidão que percebe nos trâmites legais em acompanhar a urgência das situações.
"Apesar das críticas, é um verdadeiro centro de acolhimento. Chegar até lá é muito difícil para qualquer mulher, mas também deve ser razão de orgulho e vitória. Fizemos nossa parte", afirma. "Conheço várias mulheres que sofrem agressões de todos os tipos. Das menos graves até coisas bem piores. O que eu tenho para dizer é: nunca se calem, nunca aceitem e procurem ajuda!"
Juliana está dentro da minoria das mulheres vítimas de violência doméstica no Ceará. Enquanto aquelas com curso superior representam 4,8% das ocorrências registradas, as vítimas apenas alfabetizadas ou com Ensino Fundamental completo formam 60,6% dos registros. Já as com Ensino Médio completo são 25,8% das ocorrências e as analfabetas, 3,8%. Em 5% dos casos a escolaridade da vítima não foi registrada.
O levantamento, feito com exclusividade pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC, utilizou dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), referentes aos casos de violência doméstica dos últimos dez anos no Ceará.
Daniele Ribeiro Alves, pesquisadora do Observatório de Violência contra a Mulher (Observem) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), aponta ser necessário entender como se negociam as relações de poder nos contextos interseccionados por diversos acessos ou pela falta destes. “Sabemos que a violência doméstica perpassa todas as classes sociais e níveis educacionais. Todavia, mulheres com o maior grau de escolaridade conseguem identificar mais cedo a violência sofrida, pois o acesso ao conhecimento permite a compreensão dos seus direitos”, analisa.
“Mulheres com menor escolaridade, geralmente, estão em situação de pobreza, lutando pelas necessidades mais básicas de sobrevivência. São violadas, portanto, nos mais diversos direitos: materiais, sociais e culturais. Tais violações tornam-se um ambiente propício à violência”, expõe a socióloga, que também faz parte do Núcleo de Estudos Sexualidade, Gênero e Subjetividade da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Alves soma outros fatores, como acesso a serviços privados e vergonha, para a prevalência social de casos. ”É possível ainda, em outra lente, pensar que mulheres com um maior poder aquisitivo têm outros meios, como serviços privados, para a ‘resolução’ da violência sofrida”, diz. “A vergonha da exposição pelo status social faz com que não procurem os serviços públicos de atendimento”, diz, pontuando possível subnotificação.
Entre janeiro e maio de 2022, a polícia do Ceará registrou 7.568 ocorrências de violência doméstica em todo o Estado. O número é próximo ao do mesmo período no ano passado, quando foram 7.536 ocorrências. Assim, a cada hora duas cearenses são agredidas nas próprias casas.
A socióloga Daniele Alves, pesquisadora do Observem da Uece, compreende que esses números são reveladores de uma Região que é estruturada pelo que chama de “alta intensidade patriarcal”. Para ela, o machismo no Ceará é exacerbado pelo ideal de provedor masculino como cumprimento do que são consideradas obrigações sobre a proteção e a honra da família.
Na última década, é evidente um aumento no total de ocorrências a partir de 2016. Entre 2012 e 2015, as denúncias anuais foram de 5 mil para 13 mil. Já cada um dos três anos seguintes contabilizaram mais de 21 mil casos de violência doméstica. Em 2020 e 2021, foram 18.903 e 18.889, respectivamente.
Para Ana Paula Araújo de Holanda, professora de Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor), esse movimento pode estar relacionado a dois movimentos distintos. A alta de ocorrências se liga à criação da Lei Maria da Penha, em 2006, e às campanhas de conscientização sobre violência doméstica. Já a redução passa por efeitos da pandemia de Covid-19. Houve maior tempo de permanência do agressor no mesmo ambiente que a vítima, porém a redução no acesso a serviços de atendimento pode explicar a diminuição nos registros, ainda que estime-se que as violências tenham aumentado.
"Agora, penso que a 'estabilidade' dos dados oficiais nos anos recentes não retrata o real contexto de violação dos direitos das mulheres e em especial a violência doméstica", alerta, ressaltando a subnotificação dos casos.
Dados da Casa da Mulher Brasileira, que atende majoritariamente vítimas de Fortaleza, ajudam a entender quem são as mulheres que denunciam violência doméstica na Capital
Os dados da SSPDS permitem ainda identificar os dias da semana e os horários em que a violência doméstica é mais atendida pelas equipes da Polícia. Os domingos, entre as 19h e as 21 horas, concentram o maior número de ocorrências.
Daniele Alves observa que há um alto índice de violência contra mulher geralmente pela manhã, quando os filhos estão na escola, e nos finais de semana, quando os agressores fazem uso de bebidas alcoólicas. “O uso do álcool ou outras substâncias psicoativas potencializa o desejo do agressor de cometer ações violentas”, explica.
"Com o incremento de leis relacionadas à prevenção e coerção da violência doméstica, temos uma sociedade mais informada, porém muito longe de se ter total efetividade da lei Maria da Penha, em especial no quesito de incluir conteúdos de direitos humanos nos currículos escolares", afirma Holanda.
Conforme percebe a advogada, que coordena o projeto Cidadania Ativa, da Universidade de Fortaleza (Unifor), essa ausência está refletida no “desconhecimento da sociedade dos tipos de violência doméstica e sobre os Direitos Humanos consagrados na Constituição”. “Isso desencadeia uma ausência do Estado na prevenção e punição dos agressores e uma falta de espaços de atendimento humanizado a mulheres vítimas de violência."
Atualmente, o Ceará tem 10 delegacias de defesa da mulher distribuídas entre 10 municípios, conforme descrito no site da Polícia Civil do Ceará. Além delas, as cearenses contam com uma Casa da Mulher Brasileira, instalada em Fortaleza desde 2018, e duas Casas da Mulher Cearense, em Juazeiro do Norte o local funciona desde março e em Sobral, desde o último dia 30 de junho. Os equipamentos reúnem diversos serviços, como atendimento psicossocial, Delegacia da Mulher, Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública.
Outra nova Casa da Mulher Cearense, em Quixadá, está em construção. Conforme a Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos do Estado (SPS), a obra está 78% concluída e deve ser entregue este ano. Ainda segundo a pasta, outras três casas estão em fase de licitação ou planejamento para serem instaladas em Crateús, Iguatu e Tauá.
Por lei, a violência doméstica é aquela que está relacionada ao ambiente da casa e da família em que o agressor e a vítima tenham convivido. Ela pode acontecer em qualquer relação de afeto, não só entre casais ou ex-casais, e independentemente de morarem juntos.
Caso conheça uma mulher em situação de violência, a primeira coisa que você pode fazer para apoiá-la é ouvir e se colocar à disposição para ajudar no que ela precisar. Algumas outras formas de ajudar são:
Para a análise referente a essa reportagem, a Central DATADOC utilizou dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), obtidos via Lei de Acesso à Informação, referente aos casos de violência doméstica dos últimos dez anos no Ceará. Como forma garantir a integridade e confiabilidade dos nossos conteúdos, disponibilizamos as metodologias detalhadas, as fontes de dados, as análises e o conjunto de códigos desenvolvidos no nosso Github.