Logo O POVO+
Seawind: uma década após naufrágio, impacto ambiental ainda é desconhecido
Reportagem

Seawind: uma década após naufrágio, impacto ambiental ainda é desconhecido

Desgaste, falta de comida, acusações de trabalho análogo à escravidão, leilão e naufrágio. Navio búlgaro afundou há 10 anos e até hoje não houve ressarcimento pelo impacto ambiental
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Navio naufragou totalmente dois dias após um alagamento ser notificado (Foto: J.JAIME / Especial para O POVO e 2/7/2012)
Foto: J.JAIME / Especial para O POVO e 2/7/2012 Navio naufragou totalmente dois dias após um alagamento ser notificado

Era 29 de junho de 2012. A praia da Beira Mar, em Fortaleza, vivia uma sexta-feira comum, com banhistas se arriscando nas águas e o sol tornando a maré convidativa. Mas, naquele dia, uma ausência manchava o horizonte, a aproximadamente 3 mil metros dali: o navio Seawind — ancorado há quase um ano, havia afundado quase que por completo. Mesmo uma década após o incidente, O POVO apurou que o dano ambiental ainda é desconhecido e que a empresa responsável segue sendo procurada. 

A história do navio passou a ser contada na época do naufrágio e nos anos seguintes, por jornais locais como O POVO e pelo site Mar do Ceará- que registrou o relato de um mergulhador que acompanhou a embarcação aqui no Estado. Segundo publicações dessas plataformas, o Seawind era um navio cargueiro que pertencia a uma companhia de navegação búlgara, ainda que navegasse sob bandeira do Panamá.

Um ano antes de naufragar, a embarcação havia saído do porto de Vitória (ES) com a missão de levar mármore para a Itália. Durante o percurso, os marinheiros precisaram fazer uma parada em Salvador (BA) para reabastecer e ficaram mais tempo do que o esperado na região. Em razão da demora, crustáceos cresceram nas grades das "caixas de mar" — responsáveis pela refrigeração dos motores. 

Não demorou muito para que o equipamento começasse a apresentar problemas e a viagem, que era pra ser de dois dias, se estendesse. Depois de passar cerca de duas semanas em mar aberto, sem comida ou sequer água potável, o navio precisou fundear (ancorar) em Fortaleza.

A ordem foi do comandante da embarcação, o búlgaro Nicolay Simeonov. Naquele época, ele e o restante da tripulação lidavam ainda com salários atrasados, sem saldo suficiente nem para os mantimentos — o que os deixava em situação precária. 

Foi em Fortaleza, contudo, que os problemas pioraram. Isso porque o armador, como é chamado o dono do navio, ofereceu a passagem para que os tripulantes retornassem ao país de origem, mas como estava falido não se propôs a acertar os salários pendentes, uma dívida acumulada em mais de US$ 500 mil.

Os seis marinheiros que restaram no navio que ancorou em Fortaleza em setembro de 2011
Foto: Mar do Ceará / Reprodução
Os seis marinheiros que restaram no navio que ancorou em Fortaleza em setembro de 2011

Dessa forma, apenas uma parte da tripulação aceitou retornar de imediato. Algum tempo depois, três deles precisaram ser mandados de volta por problemas médicos e ao menos seis se recusaram a voltar para o país de origem, entre eles o capitão.

Resistência dos tripulantes e o capitão apaixonado

Homens entre 40 e 60 anos de idade, com a pele queimada do sol e castigados por situações precárias de trabalho. Essa é a imagem que na época circulou em jornais locais, dos seis tripulantes que resistiram ao permanecer no navio.

Conforme Marcus Davis Andrade, mergulhador profissional que atuou como intérprete da tripulação, o sexteto resolveu ficar na embarcação porque o navio era a única segurança que tinham de que ainda receberiam o pagamento de suas dívidas trabalhistas. Era uma forma de resistir, que lhes custou caro.

Isso porque, nesse período, a escassez de comida e de outros mantimentos fez com que eles se encontrassem em uma situação difícil, se alimentando muitas vezes da pesca. Marcus lembra que chegou a levar uma repórter ao local e a mulher ficou tão comovida com a situação dos marinheiros que logo após a entrevista, conforme conta o mergulhador, foi ao supermercado e fez compras para eles.

"Eles ficaram muito, muito, muito felizes", relembra Davis. O período de reclusão durou ainda alguns meses e alguns marinheiros da região chegaram a ajudar na manutenção do equipamento.

Segundo reportagens publicadas por jornais como O POVO, os seis últimos tripulantes deram entrada no Ministério do Trabalho em 2011 e, naquele mesmo ano, foram considerados pela Justiça Brasileira como vítimas de um regime análogo à escravidão. Em meados de 2012, pelo menos dois deles ainda restavam no navio.

Marcus, mergulhador profissional, ao lado de Nicolay Simeonov, capitão do navio; Registro é de 2011
Foto: Arquivo/ Mar do Ceará
Marcus, mergulhador profissional, ao lado de Nicolay Simeonov, capitão do navio; Registro é de 2011

Mas há suspeita de que um tenha ficado por mais tempo em terras cearenses: o capitão, descrito por Marcus como "meio grisalho, suado e de olhos claros". O mergulhador viu Nicolay na praia quase dois anos após tê-lo conhecido, ao lado de uma mulher que parecia íntima a ele. “(O comandante) se arrumou com uma mulher daqui e ficou”, revela Davis, com a voz risonha.

O naufrágio e as primeiras impressões do impacto 

O motivo da saída dos últimos homens do navio, contudo, foi um incidente que ocorreu um ano antes do reencontro entre mergulhador e capitão. Na manhã de 27 de junho de 2012, foi decidido em audiência que a Justiça do Trabalho iria leiloar a embarcação e toda sua mercadoria, avaliados à época em um R$ 1 milhão e em R$ 6 milhões, respectivamente. 

A intenção era arcar, dentre outros, com o pagamento dos débitos trabalhistas. Contudo, na tarde daquela mesma quarta-feira, o comandante ligou para a Capitania dos Portos do Ceará (CPCE) avisando que o navio — a única garantia que tinham de serem ressarcidos —, estava sofrendo um alagamento. 

Conforme O POVO publicou à época, nada chegou a acontecer aos marinheiros que ainda estavam a bordo. Registros apontam que a CPCE chegou a enviar "reforços para evitar danos maiores ao navio e ao meio ambiente". Além disso, o Centro de Defesa Ambiental (CDA) realizou medidas como a instalação de barreiras, para evitar a poluição hídrica pelo óleo contido dentro dos motores.

Nos primeiros instantes após o alagamento, a situação parecia estar controlada. No entanto, conforme reportagem publicada pelo O POVO, em 30 de junho de 2012, a embarcação acabou afundando quase completamente e uma quantidade de óleo diesel começou a ser percebida ao entorno dela.

A Capitania abriu um Inquérito Administrativo de Fatos da Navegação (IAFN) para apurar as causas do incidente, mas não há registros de que foi concluído. Conforme Marcus, a falta de manutenção da máquina pode ter sido a responsável pelo naufrágio, mas "não há como garantir isso". 

Navio naufragou totalmente dois dias após um alagamento ser notificado
Foto: J.JAIME / Especial para O POVO e 2/7/2012
Navio naufragou totalmente dois dias após um alagamento ser notificado

Em menos de uma semana após o incidente, pescadores do Pirambu começaram a relatar a presença de óleo na praia da região, o que estaria matando e afastando os peixes. Contudo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) analisou a substância e afirmou que ela não era decorrente do navio.

Também há informações de que o óleo teria chegado a São Gonçalo do Amarante, e de que uma mancha teria sido percebido na praia do Cumbuco, em Caucaia, ambas na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Equipes da CPCE realizaram uma constante limpeza em volta do navio e uma inspeção nas áreas onde havia suspeita de vazamento, conforme reportagens do O POVO feitas na época. 

Três semanas depois do naufrágio, um balanço mostrou que 8 mil dos 70 mil litros de óleo que havia nos motores, vazaram, mas que foram contidos e que não "apresentavam danos hídricos". Ao longo dos meses seguintes, empresas foram contratadas para retirar a substância retida dentro dos tanques da máquina, evitando que vazasse.

Agentes atuando na limpeza do óleo que vazou do navio
Foto: KLÉBER A. GONÇALVES em 3/7/2012
Agentes atuando na limpeza do óleo que vazou do navio

Por ironia do destino, o mergulhador Marcus — que andou pelo convés e conheceu os marinheiros —, fez parte da equipe que assumiu essa tarefa em 2013. Segundo ele, que na época fazia uma das suas primeiras grandes atuações profissionais, foram retirados cerca de 3 mil litros de óleo dos motores e cujo resíduos ainda eram perceptíveis na água, mesmo após um ano do incidente.

Um relatório de apuração da Controladoria-Geral da União (CGU), divulgado em 2021, aponta que não houve mais "registros de eventos de vazamento" desde as ações de contenção realizadas. A estrutura metálica do navio estaria estável e não apresentaria mais "risco ambiental" à área. 

O mesmo documento informa que o equipamento seguia submerso a aproximadamente 10 metros de profundidade, com uma carga de 4.000 toneladas de granito e de mármore. Ainda haveria óleo sob sua carga, em razão da dificuldade do acesso para retirada, mas o liquido "não causa danos". 

Prejuízo ambiental nunca foi quantificado

No dia 13 de julho de 2012, a assessoria da CPCE informou que não havia mais vazamento. Era preciso, contudo, realizar um estudo para diagnosticar as consequências da substância derramada pelo navio, mas ele foi estimado em mais de R$ 364 mil, um valor que deveria ser arcado pelo dono do equipamento.

A prefeitura tentou notificar e multar a empresa responsável pela embarcação, mas nunca houve sucesso já que ela estava fora do território nacional. Marcelo Soares, professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar/UFC), frisa que não há até hoje um levantamento oficial que diagnostique os danos provocados pelo navio.

"É um caso estranho esse, porque não temos dados provando os impactos. Na época nada foi feito.  É difícil afirmar os impactos que ele (o naufrágio) causou porque nem a iniciativa privada ou o governo fizeram nada", considera o docente. 

Já Luis Ernesto, que também é professor na instituição e atua como Chefe de Meio Ambiente do Ceará (SEMA/FUNCAP), aponta que o óleo não deve ter se espalhado muito porque o naufrágio ocorreu próximo a praia. " O prejuízo poderia ser maior se o óleo tivesse atingido uma área de preservação ambiental, o que não chegou a ser identificado", relembra.

Óleo foi parar na praia do Pirambu
Foto: KLÉBER A. GONÇALVES EM 5/7/2012
Óleo foi parar na praia do Pirambu

O docente destaca ainda: "Óleo em ambiente de manguezal causa muito prejuízo, principalmente pela dificuldade em se fazer a limpeza. Um grande problema seria se entrasse no mangue do Rio Ceará. Mas até onde eu sei, não houve registro disso".

Como nunca foi realizado um levantamento para saber onde o líquido chegou, não há documento oficial que mensure esse prejuízo. Na época, foi montado um gabinete de crise para conter o vazamento, com a participação de órgãos como a Secretária da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), a Petrobras e o Ibama.

O POVO procurou pela assessoria das duas primeiras e ouviu de ambas que as instituições apenas atuaram para ajudar a evitar o impacto ambiental. Também foi encaminhado um e-mail para o Ibama, mas até o fechamento da reportagem o órgão não deu retorno.

O impacto do óleo na vida marinha 

Luís Ernesto pontua que o derrame de óleo no mar pode causar grandes impactos a vida marinha, pois atinge diversos organismos. Essa substância, segundo especialista, tem a capacidade de alterar processos físicos e fisiológicos e de provocar um mau funcionamento celular.

Em artigo publicado no O POVO, o especialista chegou a pontuar que o líquido pode causar hemorragias em mamíferos e em tartarugas e causar danos diversos aos órgãos desses animais. Além disso, ele destacou que há também consequências indiretas como a perda de abrigos e a eliminação de espécies ecologicamente importantes, o que afeta todo o equilíbrio das comunidades.

Consequentemente, recursos pesqueiros e o ecoturismo também acabam sendo prejudicados, conforme pesquisador. "A gravidade do impacto depende da quantidade e do tipo de óleo derramado, das condições ambientalistas e da sensibilidade dos organismos e do habitat", escreveu ainda o docente.

Como não foi diagnosticado até que ponto o óleo que vazou do Seawind chegou, não há um documento oficial que mostre o impacto que a substância pode ter provocado. Os únicos relatos que existiram foram de pescadores do Pirambu que afirmaram que o líquido estaria matando os peixes- como citado anteriormente nessa mesma reportagem.

Não é incomum que manchas de óleo apareçam no litoral do Ceará, mesmo sem estarem ligadas a naufrágios. A última vez que o Estado registrou esse incidente foi no inicio deste ano, quando a substância foi encontrada em pelo menos 40% das praias cearenses.

Um navio abandonado e a busca por respostas

Como a embarcação não foi reclamada pela responsável, a empresa Argo Maritime Ltda – SVC, e estava naufragada em uma área da Companhia Docas do Ceará (CDC), o órgão chegou a tentar novamente leiloar partes da máquina. A ideia ainda era utilizar do valor arrecadado para pagar os marinheiros e para repor gastos que a companhia teve, mas ninguém nunca quis comprá-las.

De acordo com a lei nº 7.542/1986, após cinco anos do incidente e visto que não houve procura de proprietários, a responsabilidade passou a ser da União. O POVO encaminhou e-mail para a assessoria da Marinha na última quinta-feira, 4, mas até o fechamento desta reportagem, não houve retorno.

Mesmo uma década após o naufrágio, os responsáveis ainda estão sendo procurados. Conforme documento registrado em ata da reunião do Conselho de Administração (Consad) das Docas, que ocorreu em maio deste ano, a Controladoria-Geral da União (CGU) expediu recomendação para que fosse instaurada uma tomada de contas especial.

O objetivo da ação seria quantificar o dano causado a CDC e "buscar o ressarcimento dos valores e seus responsáveis". No mesmo documento, é afirmado que as Companhia já se preparava para notificar acusados e seguir com recomendação para abrir a tomada de contas. 

Procurada pelo O POVO para saber sobre o andamento da ação e de maiores informações acerca do assunto, como o impacto ambiental na região, a assessoria da CDC informou que todas as informações a respeito desse processo ou de danos provenientes do incidente estão a cargo da CGU.

O POVO encaminhou um e-mail para a controladoria e o órgão respondeu, na quinta-feira, 04, que estava levantando os dados a respeito do caso. No entanto, até o fechamento da reportagem não houve retorno. Conforme o relatório de apuração feito no ano passado, a CDC gastou com o naufrágio do navio um valor que gira em torno de R$ 11.882 (cerca de R$ 24 mil ajustados pelo INCC), em ações como a remoção do óleo combustível que havia nos tanques.

O POVO também tomou conhecimento de que há um estranhamento popular ao entorno do fato de o navio ter alagado no mesmo dia em que foi decidido seu leilão — mas, sem conclusões oficiais, tudo não passa de teorias conspiratórias. O fato é que os tripulantes que supostamente trabalharam sob condições análogas a escravidão nunca foram reembolsados com a venda da estrutura.

Enquanto não há um "desfecho" dessa história, a embarcação búlgara segue naufragada em águas próximas ao espigão da rua João Cordeiro. Quem passa pela região talvez nem imagine a existência de um navio que já foi marcado pelo sofrimento de seus trabalhadores — e que agora segue ali, imóvel sob pedras e submerso em questões não resolvidas.

Linha do tempo: outros naufrágios e encalhes na orla cearense

  • 10 de abril de 1942: O navio norueguês Balkis foi atacado por um submarino italiano, durante a Segunda Guerra Mundial, e naufragou entre Fortaleza e Natal.
  • 2 de novembro de 1981: Navio Amazônia afundou a 200 metros da praia, na Enseada do Mucuripe. A embarcação continha cargas valiosas, como peças de cristais e madeiras, que foram saqueadas pela população local.
  • 6 de março de 1985: O Mara Hope ancorou nas proximidades da Praia de Iracema por conta de problemas mecânicos. Dias depois foi arrastado e encalhou em um banco de areia, onde segue até hoje.
  • 29 de junho de 2012: O navio Seawind naufragou no Porto do Mucuripe, depois de ficar ancorado há quase um ano na região.
  • 5 de março de 2022: A embarcação "Lagoa Paranaense" encalhou na Barra do Ceará e virou ponto turístico na região.

A reportagem foi construída com base em matérias que saíram no O POVO ao longo da última década e com informações do site Mar do Ceará

O que você achou desse conteúdo?