Entra ano, sai ano e uma coisa não muda no cenário da violência no Estado: regiões que mais sofrem com a falta de direitos e bens são também as que mais sofrem com a criminalidade letal. Levantamento do O POVO, que cruzou dados de assassinatos e de desenvolvimento humano, ratifica isso.
A partir de dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), da Prefeitura de Fortaleza e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), O POVO constatou que, em Fortaleza, quanto maior o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), menores são as taxas de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) de uma determinada região.
O IDH é um índice desenvolvido a partir de dados de escolaridade, renda e longevidade, enquanto os CVLIs são a soma de homicídios dolosos, feminicídios, lesões corporais seguidas de morte e latrocínios.
A SSPDS não divulga a ocorrência de homicídios por bairro, apenas por Áreas Integradas de Segurança (AIS) — ao todo, Fortaleza é dividida em 10 AIS. Aquela que tem o melhor IDH médio entre seus bairros é a AIS 1, que reúne Aldeota, Cais do Porto, Meireles, Mucuripe, Praia de Iracema, Varjota e Vicente Pinzon. A AIS 1 tem um IDH médio de 0,658.
É também a AIS 1 que tem a menor taxa de homicídios da Capital. Até agosto deste ano, 12 homicídios foram registrados na região, conforme a SSPDS, o que significa uma taxa de assassinatos de 6,975 homicídios a cada 100 mil habitantes.
Fica na AIS 1 o bairro de melhor IDH da cidade. Com taxa de 0,953, o Meireles tem um padrão de desenvolvimento humano semelhante ao dos países mais desenvolvidos do mundo. Se fosse um país, o Meireles teria o quarto melhor IDH do mundo, conforme dados de 2020 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Estaria atrás apenas de Suíça, Irlanda e da campeã Noruega.
Também estão na AIS 1 outros quatro bairros que estão entre os 10 maiores IDHs de Fortaleza: Aldeota (0,953), Mucuripe (0,793), Praia de Iracema (0,720) e Varjota (0,717). Após a AIS 1, a AIS que mais tem bairros nesse Top-10 é a AIS 10. São quatro os bairros da região entre os 10 melhores IDHs da Capital: Dionísio Torres, Guararapes, Cocó e Joaquim Távora.E é justamente a AIS 10 a segunda região com a menor taxa de homicídios de Fortaleza. No primeiro semestre deste ano, foram registrados 20 assassinatos na AIS 10, o que dá uma taxa de 8,640 homicídios a cada 100 mil habitantes. O único bairro no top-10 de melhores IDHs que não pertence nem à AIS 1, nem à AIS 10 é o bairro de Fátima, que fica na AIS 5.
Por outro lado, longe desses números de IDH, está a AIS 3, de bairros como Messejana e Jangurussu. É lá que está o bairro com o pior IDH de Fortaleza, o Conjunto Palmeiras, cujo índice de 0,119 é pior que o de Níger, país com o mais baixo IDH do mundo, conforme o PNUD: 0,394. É na AIS 3 que se encontra a maior taxa de homicídios da Capital em 2022.
Com 134 homicídios no primeiro semestre, a AIS 3 teve uma taxa de 52,438 homicídios por 100 mil habitantes nesse período. Conforme O POVO mostra desde o ano passado, a região da Grande Messejana tem registrado um intenso conflito por causa de rachas nas duas maiores facções do Estado.
Apesar disso, a AIS 3 é a segunda região de pior IDH de Fortaleza, estando atrás da AIS 2. Região onde ficam bairros como Conjunto Ceará e Bom Jardim, a AIS 2 tem IDH 0,223. A sua taxa de 29,25 homicídios por 100 mil habitantes era a segunda maior da Capital até agosto.
O levantamento de O POVO encontrou uma correlação de -0,895 entre IDH e taxas de homicídios nas AIS de Fortaleza levando em conta os crimes ocorridos entre 2013 e julho de 2022, conforme o coeficiente de correlação de Pearson. Conforme essa medição, quando mais próximo de 1, maior correlação positiva entre duas variáveis; e, quanto mais próximo de -1, maior a correlação negativa.
Confira os dados na tabela abaixo:
Comitê de Prevenção e Combate à Violência desenvolve pesquisas desde 2015 sobre o tema
O levantamento de O POVO vai ao encontro de diversas pesquisas recentes realizadas no Estado, entre elas, as feitas pelo Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembleia Legislativa do Estado, desde 2015.
Baseado em dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, o Comitê tem conseguido constatar a sobreposição das regiões com maior concentração de homicídios em Fortaleza e as regiões com as maiores vulnerabilidades sociais.
Mapas elaborados pelo comitê apontam concentração de homicídios em regiões específicas da periferia de Fortaleza. Em 2021, os dados mostram alguns dos bairros com melhor IDH e poder aquisitivo da cidade — Meireles, Aldeota e Dionísio Torres —, praticamente, sem manchas de homicídio.
Por outro lado, as manchas são mais fortes, indicando uma maior densidade de assassinatos, em regiões como Grande Barra do Ceará e Planalto Ayrton Senna. De uma maneira geral, a concentração de homicídios de homicídios em Fortaleza lembra um formato de “U”, abarcando a periferia da Capital.
Coordenador do Comitê, Thiago Holanda destaca que são nessas áreas que se concentram os assentamentos precários em Fortaleza, territórios que dispõem de menos serviços e infraestrutura e uma maior concentração populacional, proporcionando uma maior conflitualidade sem mediação do Estado.
Holanda ainda lembra a baixa responsabilização em casos de homicídio no Estado. “Você tem uma arma de fogo muito acessível, você mata uma pessoa e aquela morte fica por isso mesmo”, exemplifica.
“É por isso que o Comitê traz esse questionamento desde o início: que vidas importam?”, diz o pesquisador.
“Há uma gradação de vidas, que se forem perdidas não geram tanto clamor quando um jovem que morrer na Aldeota, em frente à (avenida) Virgílio Távora, e uma resposta do Estado muito mais rápida. Há uma gestão dessas mortes que implica nas próprias políticas de segurança pública, de Justiça, onde os serviços chegam, que vidas realmente merecem receber essa atenção do Estado, a ponto de serem protegidas, não vigiadas”.
Por isso, Thiago defende que a implantação de equipamentos públicos também leve em conta os indicadores criminais, de forma a ser uma ferramenta para visar a redução da violência naquela região. Uma das possibilidades, diz, é a abertura de escolas, principalmente nos finais de semana, com atividades socioculturais, até porque são esses os equipamentos com maior capilaridade e que estão mais próximos dessas manchas.
Tais medidas vêm a atuar na chamada prevenção secundária, em que o foco está em grupos mais vulneráveis, a exemplo de jovens fora da escola, que fazem uso abusivo de drogas ou que cumpriram medidas socioeducativas. “Se esses jovens não forem acolhidos por esses serviços de alguma forma, eles vão continuar morrendo”, diz Thiago.
Ele, porém, lamenta que, nos últimos anos, boa parte das políticas de proteção social, que já eram insuficientes, sofreram cortes, o que se agravou ainda mais na pandemia.
Outra crítica feita por Holanda é a ênfase em policiamento ostensivo, que tem levado a um encarceramento em massa, mas voltado a pequenos traficantes e ladrões, em vez de homicidas. “As facções que hoje dominam esses territórios nascem justamente do sistema prisional”, lembra. Por isso, ele defende uma política de segurança pública com maior foco em inteligência e investigação, assim como maior investimento em políticas que reduzam a vulnerabilidade social.
Roger Sousa, também pesquisador do Comitê, afirma que, muito mais que uma relação de causalidade, os indicadores sociais deficitários e a mortalidade violenta são fruto de uma macroestrutura. “São dois sintomas”, exemplifica. Holanda, porém, lembra que é importante identificar esses marcadores como forma de prevenir mortes e realocar o investimento público de maneira mais efetiva. “A gente consegue, justamente, entender onde é que elas estão, quem são as vítimas mais vulneráveis, mais suscetíveis”.
Estudos que embasaram o Ceará Pacífico e o Proteger mostraram a correlação entre IDH e homicídios
Pesquisas realizadas pelo Governo do Estado também têm mostrado correlação entre baixos indicadores sociais e mortalidade violenta. O fato de regiões de alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) terem uma taxa de homicídios menor havia sido observado, por exemplo, pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece).
Intitulada “Evidências da Criminalidade no Ceará, Experiências Internacionais e Fundamentação para Construção de um Pacto Social de Combate à Violência no Estado”, a pesquisa, realizada em 2015, visava “dar subsídios para a consolidação do programa Ceará Pacífico”.
Nela, os autores analisaram a distribuição territorial do número de homicídios ocorridos em Fortaleza de 2012 a 2014, de forma a buscar a correlação entre indicadores socioeconômicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com relação ao IDH, o estudo apontou que 52,79% dos homicídios registrados em 2014 ocorreram em territórios que registraram IDH abaixo de 0,680.
Enquanto esses locais, que registram os piores IDHs de Fortaleza, tinham 119,06 homicídios por 100 mil habitantes, nos territórios de IDH superior a 0,829, essa taxa era de 29,14 por 100 mil — taxa quatro vezes maior nos bairros de índice baixo.
“Portanto, além de políticas de curto prazo no combate à violência é necessário priorizar as ações de médio e longo prazo que possam melhorar as condições de vida nos locais mais vulneráveis, oferecendo, por exemplo, um maior e melhor acesso à educação, à saúde, ao lazer e à infraestrutura urbana”, concluiu a pesquisa.
Outros estudos que apontaram a relação entre indicadores sociais e criminalidade foram feitos pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), órgão da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS). As pesquisas subsidiaram o Manual do Programa Estadual de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger), que conta com bases policiais em territórios considerados mais violentos.
Para definir esses locais, a Supesp utilizou 30 variáveis, que abordavam tópicos como Renda e Educação, Densidade Populacional, Saneamento e Infraestrutura, todos provenientes também dos dados do IBGE. Essas variáveis também foram usadas para buscar correspondências com os números de homicídios, aqui usando dados de 2015 a 2018.
Levando em consideração os territórios que apresentaram os piores índices após sobreposição dos indicadores sociais e de homicídios, a Supesp identificou 42 Áreas Críticas de Interesse da Segurança Pública (Acisp). Esses locais representam 6,5% da área total de Fortaleza, mas registraram, de 2015 a 2018, em média, 22,4% dos homicídios da Capital.
“O contexto apresentado indica que, se houvesse uma ação conjunta orientada para a melhoria das condições sociais nesses locais, haveria grande possibilidade de redução concomitante da criminalidade”, afirma o Manual.
“Tal conclusão é possível tendo em vista que os territórios que apresentam melhores infraestruturas e condições de moradia, educação, saúde, saneamento, são aqueles que possuem os menores índices de violência, daí a importância de se conhecer as particularidades de cada microterritório”.
O POVO buscou a Vice-Governadoria do Estado para entender as ações desenvolvidas no âmbito do Ceará Pacífico para enfrentar tais contextos. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem.