A Polícia Civil do Ceará (PCCE) e o Ministério Público Estadual (MPCE) estão a par das denúncias que descrevem a liberação de exames médicos e psicológicos incompletos para concessão de carteiras nacionais de habilitação (CNHs) no Estado. Em sete boletins de ocorrência, registrados entre o final de setembro e início de outubro deste ano, candidatos(as) se disseram enganados ao contratarem os serviços das clínicas. A linha investigada é de crime de estelionato.
No MPCE, uma “notícia de fato” (procedimento semelhante a um BO) foi protocolada em 20 de outubro último. O documento pede que seja instaurado um procedimento no órgão para também investigar e punir responsáveis sobre o assunto. O Ministério Público confirmou que a petição foi acatada para abertura de procedimento investigatório. O POVO teve acesso às cópias dos documentos.
Os motoristas — seis mulheres e um homem — buscavam modificar suas habilitações para a categoria de atividade remunerada, que os obrigava a realizar novo teste psicológico. O denunciante que deu entrada com uma “notícia de fato” junto ao MPCE usou o termo “máfia” para tachar os que estariam cometendo as irregularidades. Ele sugere no documento que a prática é fraude e que também seja possível apontar o crime de inserção de dados falsos.
Pelo menos quatro clínicas da Capital e duas de uma cidade da Zona Norte estariam no alvo das denúncias. O POVO tem os nomes dos estabelecimentos, mas opta por não publicar neste momento para não atrapalhar a fase atual da investigação.
No último dia 24 de novembro, a 2ª Vara Criminal indeferiu um pedido de busca e apreensão feito pela Polícia Civil para vistoriar as clínicas de trânsito sob suspeita. Havia parecer favorável da promotoria de Justiça para a operação.
O POVO apurou que o juiz decidiu pela necessidade de mais diligências, embora já exista materialidade constatada no inquérito. Uma das ideias dos mandados de busca e apreensão é justamente coletar mais provas dos crimes apontados nos pedidos judiciais. O caso ainda está sob segredo de Justiça.
Uma representante do Conselho Regional de Psicologia (CRP) chegou a ser ouvida na investigação. A conselheira endossou que seria “absurdo” as clínicas não realizarem todos os testes obrigatórios. Os psicólogos dessas clínicas deverão sofrer as sanções administrativas previstas na legislação da categoria. Alguns deles deverão ser intimados para depoimento.
O que banca a tese de estelionato é que as carteiras foram concedidas, ainda que os testes tenham sido realizados parcialmente e os candidatos tenham desembolsado para ter a perícia completa. Até dezembro, pagava-se R$ 202,26 pelos exames psicológico e médico - valor corrigido para R$ 215,20 em 1º de janeiro. Os BOs foram registrados na Delegacia de Defraudações e Falsificações (DDF), em Fortaleza, e na delegacia de uma cidade da Zona Norte do Estado que O POVO opta por não identificar.
No documento enviado ao MPCE, ao citar o nome das clínicas, o texto diz que elas “não realizaram todos os testes previstos em lei, o que invalida o processo de habilitação dos candidatos e põe em xeque todo o sistema, não apenas em razão da parcialidade dos peritos ocasionado pela falha no sistema de distribuição dos exames, mas principalmente por não aferir a real condição psíquica do candidato”.
Procurado, o delegado titular da Delegacia de Defraudações e Falsificações, Carlos Teófilo, disse que não poderia dar detalhes da investigação policial e que não iria se manifestar. Pelo Código Penal Brasileiro (CPB), o crime de estelionato (artigo 171) se configura quando o suspeito "obtém, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. A pena prevista é reclusão, de 1 a 5 anos, e passível de multa.
A inserção de dados falsos na administração pública é crime previsto no artigo 313-A do CPB: “Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano”. Prevê pena de 2 a 12 anos, além de multa.
Os documentos e depoimentos juntados pelo O POVO sobre irregularidades nos exames em clínicas de trânsito somam um combo de denúncias. Que vão além da falta do exame de aptidão mental completo para confirmação indevida de carteiras de motorista no Ceará. Uma das ilegalidades mais cometidas é a “casadinha” entre autoescolas e as clínicas credenciadas junto ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE).
A venda de pacotes de aulas de direção+exame ou a indicação/troca de clientes entre esses estabelecimentos é proibida, mas raramente deixa de acontecer. As empresas firmam a parceria comercial, silenciosamente, para não perderem lucros nem metas financeiras. Entre as ponderações, a casadinha é proibida para evitar que uma autoescola pressione para que a clínica parceira sempre aprove os candidatos recomendados. Gera conflito de interesse.
Segundo a Resolução nº 16/2002, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), “aos psicólogos peritos responsáveis pela avaliação psicológica, fica vedado estabelecer qualquer vínculo com os centros de formação de condutores (autoescolas), seja como pessoa física, seja como pessoa jurídica”.
O candidato a motorista geralmente desconhece a regra, muito mais percebida e destacada por quem é do segmento. Mesmo que o site do Detran oriente para que o candidato busque diretamente uma clínica credenciada para seus exames, a indicação feita por uma autoescola é tida como normal pelo cliente e dada como uma facilidade oferecida.
A “notícia de fato” sobre o caso denunciada junto ao Ministério Público Estadual (MPCE) diz que a contratação das clínicas “viabilizou um verdadeiro comércio entre alguns Centros de Formação de Condutores [autoescolas] e clínicas de medicina e psicologia do tráfego. Tal relação também ocasionou uma disputa por preços na qual a Clínica que cobrar o menor valor com menor índice de reprovação receberá a maior demanda, exatamente o que condena a resolução 016/2002, do Conselho Federal de Psicologia (CFP)”.
As autoescolas e clínicas até produzem prova contra si, como foi constatado ao longo da apuração. Chegam a emitir um mesmo recibo pelo pagamento dos dois serviços. O POVO teve acesso à cópia de um desses recibos, assinado por uma autoescola do Interior do Ceará. O candidato pagou com pix pelas aulas de direção com os exames médico e psicológico. Com algumas tentativas, também não foi difícil confirmar trocando mensagens pelos sites ou WhatsApp de algumas das clínicas e autoescolas.
Também não são irregularidades pontuais ou difíceis de serem confirmadas. Basta ligar ou pedir informações por e-mail ou troca de mensagens junto a autoescolas ou clínicas que cometem a ilegalidade.
O POVO contatou o Conselho Federal de Psicologia (CFP), enviou questionamentos sobre a prática, mas não recebeu retorno até a publicação da reportagem.
O Ceará é o único estado brasileiro que não implantou a Divisão Equitativa, considerada uma das principais propostas para regular a distribuição de candidatos entre clínicas de trânsito. A medida tem efeito direto em evitar a concorrência desleal, manter a impessoalidade dos exames médicos e psicológicos e conter a parceria proibida das clínicas com as autoescolas — chamada de “casadinha”.
Na Divisão Equitativa, a indicação do local de exames de aptidão física e mental dos candidatos a motorista é feita por sistema informatizado. Há o sorteio eletrônico, com base no endereço pessoal informado pelo candidato. As clínicas passam a ter chances iguais de receberem pacientes/clientes/candidatos.
No sistema hoje adotado no Ceará, o local do exame deve ser escolhido pelo próprio candidato. A lista é disponibilizada no site do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE). São 112 clínicas credenciadas (dados até dezembro 2022).
Há recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM), pela Resolução 1.636/2002, e do Conselho Federal de Psicologia (CFP), na Resolução 016/2002, indicando que os exames de aptidão física e mental e de avaliação psicológica para o trânsito “devem ser distribuídos imparcialmente, através de divisão equitativa obrigatória, aleatória, sequencial e impessoal”.
Não há previsão de quando, nem se de fato a Divisão Equitativa será implantada no Estado. O Detran-CE afirma que a adoção do projeto “encontra-se em análise pelas unidades técnicas” do órgão, mas não há prazo estipulado sobre uma definição do tema. Reafirma que "o agendamento dos serviços é feito unicamente pelo site oficial do Departamento".
O Sindicato dos Centros de Formação de Condutores (SindCFCs), que representa as autoescolas, é contra a proposta de implantação da divisão equitativa no Ceará. Para o SindCFCs, "é uma forma prejudicial, pois cabe ao cliente a liberdade de escolher qual clínica ele deseja contratar para realizar seus exames", justifica a entidade, em nota. Segundo o Sindicato, todas as clínicas credenciadas devem se adequar para oferecer um serviço de qualidade "e assim permitir uma concorrência leal entre elas".
O Detran-CE já recebeu comissões de donos de clínicas, psicólogos e médicos de tráfego e diversos e-mails pleiteando a mudança. Há uma ação, em trâmite no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), para decidir a questão. O processo teria sido sorteado para o gabinete do desembargador Francisco Gleidson Pontes.
Ribeirão Preto, no Interior paulista, em 1999, foi a primeira cidade no País a implantar a divisão equitativa, ainda como projeto-piloto. São Paulo adotou o sistema já no ano seguinte; a Bahia, ainda em 2003. Em alguns estados mais tardios, como Tocantins, a regra existe desde 2015. O Conselho Estadual de Trânsito (Cetran) já emitiu parecer favorável para implantar a Divisão Equitativa no Ceará.
Na nota enviada ao O POVO, o Detran-CE considera que o sistema atual de clínicas credenciadas permite ao usuário "total autonomia para escolher data, local e horário de atendimento, de acordo com a sua conveniência".
O Sindicato das Autoescolas do Ceará (SindCFCs) reafirmou ao O POVO, em nota, que é proibido às empresas do segmento "praticarem qualquer tipo de venda casada" em parceria direta com as clínicas credenciadas. A medida é definida em resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), Conselho Regional de Psicologia (CRP) e portaria do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE).
O presidente do SindiCFCs, Eliardo Martins, garantiu na nota que "não há parcerias entre autoescolas e clínicas médicas". Porém, O POVO atestou a situação em ligações telefônicas (gravadas), em respostas de autoescolas enviadas por e-mail, em mensagens de áudios trocadas em grupos de WhatsApp (entre clínicas e autoescolas), em recibos de pagamentos, em denúncias formalizadas em BOs.
A entidade informa que os centros de formação de condutores "apenas podem indicar aos seus alunos que realizem determinados exames obrigatórios em clínicas credenciadas devido a segurança de estes prestarem um serviço de qualidade". A prática é parte de investigações abertas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público Estadual. "Nesta operação denunciada, compete ao Detran-CE fiscalizar e, caso apure, e se constatar algo irregular, que os envolvidos sejam punidos", complementa a nota do SindCFCs.
Sobre a denúncia de indução da aprovação dos alunos, o Sindicato das Autoescolas diz que desconhece casos e repudia essa prática. "Os médicos e psicólogos das clínicas são regidos por códigos de ética e os empresários de autoescolas são fiscalizados por órgãos de trânsito, justamente para evitar qualquer tipo de irregularidades dessa natureza", responde a nota. Acrescenta que "mais uma vez, cabe aos órgãos competentes apurar as denúncias".
A denúncia de clínicas de trânsito realizarem exames incompletos ou "casadinhas" com autoescolas no Ceará não chegou formalmente ao Ministério da Infraestrutura (Minfra). "Até o momento não há registro de denúncias dirigidas ao Ministério da Infraestrutura quanto a possíveis irregularidades quando da avaliação psicológica por candidatos no Departamento de Trânsito do Ceará (Detran-CE)", respondeu a pasta federal em nota ao O POVO.
"Ressaltamos que é necessário cumprir a Resolução 927/2022, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Quem não cumprir a norma está passível de punição prevista no artigo 26 desta resolução", destacou o Ministério. O descumprimento das regras deve ser apurado em processo administrativo, que prevê advertência, suspensão das atividades por 30 dias ou até a clínica ter o credenciamento cassado. A norma é válida em todo o País.
A sindicância administrativa tramita nos conselhos regionais de Psicologia (CRP) e de Medicina (Cremec) e na Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), principal órgão executivo de trânsito em nível federal. A Senatran substituiu o extinto Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), em setembro de 2021. A ideia anunciada foi dar maior autonomia para gerenciar conflitos e definir novas políticas para o setor.