Carlos Irineu Granja Costa, de 41 anos, é diretor da Wedja Psicologia. Até o fim de 2022, e por muitos anos, foi a única empresa autorizada no Ceará a comercializar cadernos de testes psicológicos utilizados por clínicas de trânsito. O exame serve de perícia para confirmar ou negar a aptidão de candidatos a novos motoristas ou quem esteja alterando a categoria da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para atividade remunerada. Segundo ele, redes de clínicas locais adquirem muito menos testes periciais em sua empresa do que a movimentação que costumam registrar diariamente. Para Irineu, a situação abre margem para a desconfiança de que algo esteja errado no segmento.
“Olha, os números me deixam, vamos dizer assim, bem intrigado sobre o que acontece nas avaliações dentro das clínicas. Óbvio que a gente não tem o poder de Polícia, de investigar. Mas a gente nota pelo comportamento de compra das clínicas. É muito discrepante com o número de candidatos”, afirmou Irineu ao O POVO. O movimento de sua empresa, até pouco tempo como única no ramo, ajuda a desenhar o movimento comercial do setor. Uma segunda empresa passou, no início de 2023, a também vender as folhas de teste no mercado local.
Este é o terceiro episódio de uma série em que O POVO expõe que candidatos a motoristas no Ceará estão recebendo suas CNHs por meio de fraude. Ganham a permissão para dirigir sem serem submetidos à avaliação completa. Em vez de seis formulários psicológicos obrigatórios e reprobatórios — definidos por resoluções das autoridades de trânsito e do Conselho Regional de Psicologia (CRP) —, as clínicas estariam aplicando parte deles ou até nenhum, conforme denúncias levantadas ao longo de dois meses de apuração.
"Hoje a gente tem como estatística do ano 2022 uma média de 25 mil a 30 mil carteiras emitidas por mês no Ceará. Isso nem de longe é o número que a gente tem de comercialização de folhas de testes para essas avaliações", confirma o empresário. "Se tem que ter uma folha de teste para avaliar cada habilidade específica, deveriam ser 30 mil folhas vendidas. E não é isso que os números mostram", compara. O POVO falou com Carlos Irineu em dois momentos, no final de outubro (dia 27) e na semana passada (20 de janeiro).
As clínicas de trânsito realizariam a perícia incompleta principalmente para aumentar a margem de lucro. As seis avaliações aferem inteligência, memória, atenção concentrada, atenção dividida, atenção alternada e personalidade (agressividade e impulsividade). Um candidato só deverá ser considerado apto a dirigir se aprovado nesses seis testes. Em caso de reprovação, precisa repetir a perícia.
Carlos Irineu exemplifica que uma dessas redes de clínicas, de grande porte, estaria comprando dele R$ 1 mil por mês em cadernos de testes. Uma clínica média chega a receber até 60 candidatos por dia. E uma única folha não preenchida custa de R$ 30 a R$ 40. A conta que não bate. Ele disse ter sido procurado por proprietários de clínicas, após a publicação da série de reportagens do O POVO. Alguns até admitiram desconhecer a obrigatoriedade de seis testes dentro da perícia psicológica, segundo ele.
Descreve: as clínicas “aplicam para memória um teste que não é para memória, mas para avaliar inteligência. Aplicam dois testes de inteligência num mesmo candidato. Aplicam dois de personalidade e nenhum de atenção”. Motoristas periciados nessas condições são um risco real para a sociedade, aponta.
Questionado sobre quantos motoristas podem estar circulando atualmente no Ceará por testes psicológicos fraudados, incompletos, o empresário palpita: “Arrisco a dizer que tem muito motorista rodando hoje no nosso estado que seriam bons candidatos para uma reciclagem de avaliação psicológica. Porque não foram avaliados adequadamente”.
As clínicas de trânsito credenciadas junto ao Detran-CE passaram a atuar a partir de 2019. Antes, uma única clínica, a Cedetran, prestava serviços ao órgão. Contratava diretamente profissionais médicos e psicólogos especializados na área de tráfego. Em quatro anos, quase 280 mil novos motoristas foram habilitados no Ceará.
O Conselho Regional de Psicologia e o Detran-CE já haviam se manifestado ao O POVO sobre as irregularidades apontadas. O órgão estadual de trânsito considerou que "o conteúdo dos arquivos encaminhados pela reportagem não levam a qualquer conclusão" e que a fiscalização da atividade das clínicas era de responsabilidade dos conselhos profissionais de medicina e de psicologia. O CRP afirmou que não havia recebido denúncias sobre irregularidades cometidas pelas clínicas de trânsito.
O exame psicológico é compulsório também para quem busca registros de porte de arma ou de CAC (colecionador, atirador, caçador), para pilotos de aviação e em concursos públicos — principalmente da área policial. Conforme Carlos Irineu, “temos um certo ambiente de negócio paralelo ligado a essas avaliações compulsórias. Que chega a ser nefasto, danoso para a sociedade”. Segundo ele, há pessoas especializadas para ensinar os testes psicológicos.
“Quando o psicólogo utiliza o teste, tem essas pessoas que ensinaram as respostas. E quando a pessoa não ensina, muitas vezes o psicólogo não aplica os testes. Nos concursos é um pouco mais difícil”, denuncia. Irineu amplia a acusação: “Em alguns casos a gente pode chegar ao absurdo de não ter nem o contato do psicólogo com o paciente, para se chegar ao resultado (da perícia). É um contato superficial, meramente por telefonema, uma troca de mensagem por Whatsapp”.
O teste de perícia psicológica é numerado e deve ser obrigatoriamente arquivado por 5 (impresso) a 20 anos (digitalizado). Pode ser requisitado para investigações de crimes de trânsito ou ações indenizatórias. Caso um candidato seja reprovado na perícia psicológica, tendo passado pelos seis testes completos, o profissional credenciado pode aplicar o reteste, o que eleva a bateria para 12 testes, se de fato realizados.
A Delegacia de Defraudações e Falsificações (DDF) e o Ministério Público Estadual (MPCE) investigam o caso denunciado pelo O POVO. A principal suspeita é de crime de estelionato cometido pelas clínicas e profissionais da área, por estarem cobrando o valor completo dos seis testes (R$ 98,86). Com o exame médico (R$ 115,34), o candidato paga pelo menos R$ 214,20 para obter a CNH.
Outro fio da denúncia puxa para a falta de arquivamento dos exames. Como os testes não são realizados integralmente entre os que cometem a fraude, não estariam sendo guardados como pede a regra — obrigatoriamente por cinco anos. Num dos casos, em Fortaleza, a suspeita é de que mais de 100 mil testes, no mínimo, não teriam sido arquivados num período de dois anos. O caso reforça indícios de que a perícia psicológica foi feita apenas parcialmente, o que seria prática usual no segmento.
A história virou rixa entre o dono da clínica e a profissional. Os dois mantiveram parceria comercial e dividiram despesas do estabelecimento. Cada parte fez um boletim de ocorrência contando sua versão dos fatos. Ao O POVO, ele deu detalhes de que os testes poderiam nem estar sendo realizados por ela e, no BO, denunciou que só havia recebido “554 testes, número aproximado de testes psicológicos realizados mensalmente” e que os demais não existiam. A situação teria sido comunicada ao Detran. O POVO não conseguiu confirmação sobre isso.
Já ela afirmou, num outro BO, que uma infiltração de água na sala e mofo teria danificado os testes guardados em caixas de papelão e que “não teve nenhuma intenção de danificar ou perder esse material”. Ela teria pedido desligamento da parceria para abrir uma clínica própria. E foi cobrada pelo proprietário sobre os testes que deveriam ter sido arquivados e devolvidos integralmente.
O volume de testes reposto seria irrisório, não condizente com os 24 meses em que a profissional atuou na clínica, entre outubro de 2019 e outubro de 2021. Nem com a movimentação diária do estabelecimento, que teria média de 700 a 800 exames por mês, com pico acima de 1 mil num dos meses após o fim da primeira onda da pandemia.
Como a média era de 700 a 800 exames por mês, se multiplicados pelos seis testes de cada candidato (4.200 a 4.800) pelo dois anos de atuação na clínica, a conta omitida alcançaria de 100 mil a 115 mil testes sem arquivamento. O POVO apurou que o caso estaria no radar da investigação da Delegacia de Defraudações e Falsificações (DDF), em Fortaleza. Então titular da DDF, o delegado Carlos Teófilo não quis dar detalhes da apuração policial. Na segunda semana de janeiro, Teófilo foi informado que deixaria a DDF. Um novo delegado deverá assumir o caso, depois de se inteirar do andamento da investigação.
O POVO falou com os proprietários da clínica, que confirmaram a história dos testes não conservados. O POVO opta por não publicar o nome dos personagens porque a investigação ainda está em andamento. Mas as versões divergem nos dois BOs registrados.
No BO registrado em 30/11/2021, a psicóloga admitiu ter devolvido à clínica apenas parte dos exames arquivados. Alegou, porém, que o material teria sido estragado pela suposta infiltração de água na sala onde as folhas dos exames eram mantidas. “Nesse local havia várias caixas de testes psicológicos já utilizados e não utilizados que foram deteriorados por questão de infiltração de água e mofo”, descreveu a profissional à Polícia. Mencionou que o local permaneceu fechado durante a pandemia, o que teria contribuído para a situação.
Dois dias depois, em 2/12/2021, o proprietário da clínica também correu para registrar seu BO para contar o seu lado da mesma história. “Tais fatos (infiltração e mofo) não condizem com a verdade, pois nunca houve deterioração de documentos na clínica, como qualquer funcionário pode comprovar”, afirmou sobre a ocorrência.
Pela resolução do Conselho Federal de Psicologia, o profissional de psicologia e a clínica dividem a responsabilidade pela guarda dos testes periciais. Ao O POVO, o Conselho Regional de Psicologia disse não ter conhecimento desses fatos. “Não há denúncia deste caso em nossas comissões”, afirmou Georgiana Portela, presidente da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) da entidade.
Um ano atrás, a diretoria do Detran já havia sido avisada sobre as parcerias comerciais silenciosas firmadas entre as autoescolas e as clínicas. Indicam clientes em troca de comissões e para manter a margem de lucro. Isso está entre as proibições, mas é amplamente sabido e praticado no mercado. Apesar desse alerta, a irregularidade não foi contida. Um ofício com o mesmo teor foi formatado para envio à então governadora Izolda Cela (sem partido).
A comunicação ao Detran, mais em tom de queixa que como denúncia, foi feita num e-mail enviado em 11 de novembro de 2021. Foi apresentada por “um grupo de clínicas médicas e psicológicas credenciadas”. Entre os trechos, a mensagem fala de “acordos ilegais e informais” dos estabelecimentos e cobra que o serviço credenciado "deve ser pautado nos valores éticos, técnicos, científicos, sem nenhum outro beneficiamento e intervenção".
Um dos que assinaram e encabeçaram o alerta ao Detran foi o presidente da Associação de Psicólogos de Trânsito do Ceará (Apsitran), José Wagner Queiroz Paiva — também representante da entidade nacional (Associação Brasileira de Psicólogos de Trânsito - Abrapsit). O POVO chegou a conversar com ele na condição de psicólogo proprietário de clínica ainda em funcionamento. No fim de outubro, numa carta escrita a colegas empresários do segmento de perícia psicológica, ele anunciou que está desistindo do ramo.
Entre os motivos, Paiva alegou que há “corrupção institucionalizada no processo de credenciamento (...) junto ao Detran”. “O que eu classifico como corrupção é a intervenção indevida, injusta, exploradora dos centros de formação (autoescolas) junto às Clínicas Médicas e Psicológicas exigindo delas altos percentuais para direcionar seus alunos candidatos à CNH”, descreve.
Paiva diz que o órgão estadual “'fez vista grossa’ e ‘deu carta branca’ para que as clínicas iniciantes fizessem ‘todo tipo de acordos’ com os centros de formação”. Menciona num trecho da carta que as autoescolas “passaram a exigir das clínicas valores exorbitantes iguais e superiores a 50% das avaliações médicas e psicológicas”. “Razão porque desistimos”, escreve, ao final de uma das mensagens que disparou em grupos de WhatsApp avisando de sua decisão.
No fim de dezembro, Paiva atualizou que, a partir de 2023, "passará a prestar consultoria na área de psicologia e medicina de tráfego". O trabalho incluirá palestras, cursos, treinamentos e assessoria administrativa, mas não mais como credenciada ao Detran.