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Como recuperar a Saúde após desmonte no governo Bolsonaro
Reportagem

Como recuperar a Saúde após desmonte no governo Bolsonaro

Especialistas em gestão e políticas públicas para saúde elencam os pontos mais críticos do passivo deixado pela gestão passada e quais devem ser as prioridades do novo governo na Saúde
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Os casos de desnutrição e malária na região dispararam nas últimas semanas em território Yanomami; Lula declarou emergência de saúde (Foto: MICHAEL DANTAS/AFP)
Foto: MICHAEL DANTAS/AFP Os casos de desnutrição e malária na região dispararam nas últimas semanas em território Yanomami; Lula declarou emergência de saúde

A nova gestão nacional da Saúde se depara com uma área descoordenada. Para especialistas em gestão em saúde e políticas públicas, o passivo deixado pelo Governo Jair Bolsonaro inclui cobertura vacinal insuficiente, "apagão" de dados públicos, orçamento reduzido, programas fragilizados. As ações devem ser planejadas a médio, curto e longo prazo em diferentes frentes, enfatizando a articulação com demais esferas de governança. 

Acompanhamento das vítimas da covid longa e a demanda represada de outras doenças em razão da pandemia também são problemas a serem enfrentados. Além disso, houve um enfraquecimento histórico na construção de políticas para populações especificais como mulheres, negros e indígenas — a exemplo da situação dos povos indígenas do território Yanomami, que enfrenta situação de emergência.

O médico sanitarista Adriano Massuda, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP) e pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde (FGV/Saúde), afirma que houve "uma piora do conjunto, uma desconstrução do papel de coordenador nacional" do sistema de saúde, que é a função do Ministério.

A falta de coordenação teve um "efeito cascata" que afetou desde a vacinação à realização de transplantes. "Não tem um problema, é um mosaico de problemas de extrema gravidade e complexidade. Para enfrentar, precisa de uma gestão técnica, competente no Ministério da Saúde (MS), mas com alta capacidade política", avaliou, frisando que o MS é coordenador, mas não executa as ações — função esta desempenhada por estados e municípios.

"Se for pensar o sistema de saúde como uma orquestra, o MS deve ser o grande maestro para fazer com que o sistema de saúde funcione em harmonia e possa produzir as ações necessárias para cuidar da população", compara.

Jairnilson Silva Paim, professor emérito do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das lideranças do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, concorda com a análise de Massuda. "Não foi possível identificar pelo menos uma área ou tópico da política de saúde em que não houvesse retrocesso nos programas e ações de saúde do MS", avalia, sobre o período entre 2019 e 2022. 

Foram quatro ministros nesse ínterim: Luiz Henrique Mandetta (de 1º/1/2019 a 16/4/2020), Nelson Teich (16/4/2020 a 15/5/2020), Eduardo Pazuello (15/5/2020 a 15/3/2021) e Marcelo Queiroga (15/3/2021 a 31/12/2022). 

Paim, que é autor de livros sobre política de saúde, planejamento em saúde, Reforma Sanitária Brasileira e Sistema Único de Saúde (SUS), frisou a importância do "revogaço" de normas que atentam "contra os direitos humanos, contra o direito à saúde e contra as bases científicas das ações de saúde" ainda nos primeiros dias de governo.

Ele destaca que é preciso "recompor o controle social no SUS, ampliando a participação do Conselho Nacional de Saúde e seus equivalentes nos estados (CES) e municípios (CMS)" e reorientar a Política Nacional de Saúde, com a elaboração do novo Plano Nacional de Saúde (PNS), "integral, participativo e ascendente". Apenas em 2024, será o momento da implementação de um orçamento já elaborado pelo novo governo. 

Principais medidas a serem adotadas pelo Ministério da Saúde

O médico sanitarista Adriano Massuda, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP) e pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde (FGV/Saúde), identifica três grandes blocos de ações a serem implementados a curto, médio e longo prazo na tentativa de mitigar os problemas da saúde pública brasileira. 

1. Problemas urgentes

Uma frente imediata é lidar com indicadores que pioraram nos últimos anos. Segundo Massuda, é preciso recuperar a cobertura vacinal nos 100 primeiros dias, "por meio de uma campanha forte envolvendo governadores, prefeitos, empresários e a sociedade civil".

Outro ponto "agudo" é "lidar com a demanda represada de consultas, exames e cirurgias". Para isso, se faz necessário mobilizar os serviços públicos e também privados para "ampliar a capacidade produtiva do sistema de saúde para atender a demanda reprimida, que não pode esperar". 

2. Problemas crônicos

A segunda grande frente é lidar com os problemas crônicos que o sistema de saúde brasileiro ainda não resolveu. Um dos principais, segundo Massuda, é o financiamento.

"Sem maior aporte de recursos federais, o sistema não vai conseguir funcionar. É fundamental buscar novos recursos. A aprovação da PEC garante um novo aporte de recursos que dá um fôlego para o ano de 2023. Mas é preciso criar uma regra, uma modificação na regra de financiamento para que haja maior aporte de recursos federais", detalha.

Um outro desafio estrutural não resolvido e que também precisa ser enfrentado já nos 100 primeiros dias é "começar a pensar um novo desenho federativo para o sistema de saúde brasileiro", que fortaleça o papel das regiões de saúde — uma governança, "um sistema de saúde descentralizado a nível dos municípios", opina o professor.

"A gente tem 5.570 municípios. 70% com menos de 20 mil habitantes, baixa capacidade de ofertar ações de média e alta complexidade. Isso só se resolve com a organização de regiões de saúde", detalha.

Um terceiro desafio ainda dentro do grupo de problemas crônicos, é o fortalecimento da atenção básica, através da Estratégia de Saúde da Família (ESF). "É o melhor modelo para o desenvolvimento do sistema de saúde brasileiro e precisa ser fortalecido com a provisão de profissionais médicos em áreas de dificuldade, melhor financiamento das equipes, melhor definição dos indicadores", frisa.

3. Questões a longo prazo

Um terceiro bloco é preparar, nos 100 primeiros dias, o sistema de saúde para o futuro — planejamento de longo prazo. "Uma das questões que os sistemas de saúde no mundo estão se preparando é uma transformação digital. O Ministério da Saúde agora conta com uma secretaria de saúde digital, que deve coordenar os esforços", afirma.

Do ponto de vista do sistema de informação, o apagão de dados, a falta de um diagnóstico preciso, impede a gestão de ver a situação do estoque de medicamentos, vacinas, itens que estão faltando e a se perder, por exemplo. É importante recuperar a capacidade de planejamento do MS e trabalhar com essas informações para ter legitimidade, alerta o médico sanitarista.

Uma secretaria voltada para isso deve permitir melhor aquisição de dados, "que são fundamentais para o planejamento e melhor alocação de recursos para melhorar a gestão do sistema". Dados reais também são importantes para melhorar o acesso da população "utilizando telemedicina, telesaúde, com a coordenação do cuidado nos diferentes níveis de atenção".

Atenção às populações vulneráveis

A reestruturação do sistema de saúde também perpassa o foco em populações vulneráveis. Jairnilson Silva Paim, professor emérito do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das lideranças do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, elenca: mulheres, negras e negros, quilombolas, indígenas.

Mas o desafio inclui ainda a valorização e formação de profissionais de saúde. Pontos que também merecem destaque são "uma nova política sobre drogas, a garantia dos direitos sociais, o envelhecimento saudável e ativo, o respeito à cidadania LGBTQIA+, a autonomia para pessoas com deficiência e o reconhecimento das identidades". 

Em relação aos programas, ele aponta a retomada da Farmácia Popular, do Programa Mais Médicos (PMM) e do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS).

O problema histórico de subfinanciamento do SUS

No que se refere ao financiamento, além de incluir a saúde como prioridade na agenda pública, se faz necessário "iniciar um processo de ampliação do SUS e desprivatização da oferta de serviços de saúde". O alerta é de Lígia Bahia, especialista em financiamento público e privado e regulamentação dos planos de saúde. 

A epidemiologista é integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Medicina Coletiva (Abrasco) e professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES-IESC/UFRJ). 

O SUS enfrenta o desafio político de assegurar a sua sustentabilidade econômica e institucional desde a sua criação. Jairnilson Silva Paim, professor emérito do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das lideranças do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, destaca ainda que "há perdas para o SUS estimadas em 60 bilhões nos últimos 4 anos, decorrentes da vigência da Emenda Constitucional 95 de 2016 (EC-95)[conhecida como PEC do Teto de Gastos]". 

Segundo ele, "a redução dos recursos para o SUS e a adoção deliberada de estratégias para privatização do setor saúde pelo governo Temer tornaram o SUS, desde então reduzido, com o grande risco de se tornar um simulacro".

A possível revogação da EC-95, contudo, não altera imediatamente a estrutura de financiamento do setor da saúde. O professor alerta para a divisão de gastos: "os gastos privados em saúde representam, atualmente, 5,7% do PIB enquanto os públicos são apenas 3,9%", compara. "Esta proporção deve ser invertida, progressivamente, de modo que o SUS possa dispor de pelo menos 6% dos recursos do PIB nos próximos anos", defende Paim. 

De acordo com o sanitarista, a relação público-privada precisa ser "redefinida de sorte que o interesse público prevaleça na regulação das operadoras de planos de saúde e das empresas produtoras e comerciais de bens e serviços de saúde".

As demandas da pandemia da Covid-19

Apesar de estar considerada sob controle, a situação Covid-19 ainda demanda esforços e ações de enfrentamento e vigilância. Lígia Bahia, integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Medicina Coletiva (Abrasco), a situação demanda "investimentos em pesquisas para o desenvolvimento de vacinas, medicamentos e insumos e na produção nacional para a garantia do suprimento adequado para o país".

Além do aprimoramento e expansão da vigilância epidemiológica e genômica e a inserção no debate e nas iniciativas internacionais de monitoramento e mitigação da Covid-19, aponta a epidemiologista, que é professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES-IESC/UFRJ).

Segundo ela, um ponto que deve ser priorizado pela nova gestão é justamente a preparação adequada do sistema para emergências sanitárias "desde, por exemplo, deslizamentos em função do período de chuvas até o recrudescimento de casos graves de infecções transmitidas pessoa a pessoa".

O Ministério da Saúde deve, por isso, manter relações permanentes com os demais ministérios, especialmente Desenvolvimento Social, "para a realização de ações conjuntas que desfragmentem as políticas públicas e alcancem maior impacto". 

As prioridades da nova gestão

Em dezembro do ano passado, Arthur Chioro, coordenador do Grupo Técnico de Saúde do gabinete de Transição Governamental, afirmou que "o quadro é de absoluto caos". "Não é exagero, mas uma constatação objetiva da situação de total desmonte de políticas, que se expressou de forma mais expressiva na situação da Covid-19, resultando em mais de 600 mil mortes", disse.

No dia 10 de janeiro, a nova ministra da Saúde, Nísia Trindade, apontou, durante entrevista coletiva de imprensa, as pautas prioritárias da Pasta para os 100 primeiros dias de gestão. Entre os pontos destacados por ela, está uma campanha de vacinação para a retomada dos altos índices de cobertura vacinal, incluindo a imunização contra a Covid-19, com previsão para fevereiro.

  • Elaboração de um plano emergencial para redução de filas para diagnósticos e cirurgias eletivas;
  • Transparência da Câmara Técnica Assessora para Imunizações (Ctai) e recuperação da conversa com a sociedade cientifica;
  • Campanha de vacinação para recuperar as coberturas vacinais;
  • Inclusão da vacina para covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação;
  • Retomada do Programa Farmácia Popular e ampliação da oferta de medicamentos;
  • Fortalecimento da saúde da população negra e indígena;
  • Ações emergenciais para a população Yanomami;
  • Prosseguimento e ampliação do programa Mais Médicos, priorizando os médicos brasileiros e posteriormente os médicos estrangeiros;
  • Reforço do diagnóstico do câncer do colo do útero. 
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