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Emergência ignorada: Pacote de ações para população de rua de Fortaleza não saiu do papel
Reportagem

Emergência ignorada: Pacote de ações para população de rua de Fortaleza não saiu do papel

Orçamento empenhado para projetos destinados à população em situação de rua foi menor do que o previsto pela Lei Orçamentária Anual. Público atendido se queixa de estado precário de abrigos e falta de alimentação
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FORTALEZA, CE, BRASIL,27.01.2023: Pousada social da Av. Dom Manuel. Matéria especial sobre pessoas em situação de rua. (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FORTALEZA, CE, BRASIL,27.01.2023: Pousada social da Av. Dom Manuel. Matéria especial sobre pessoas em situação de rua.

Há um ano, no dia 4 de fevereiro de 2022, a Prefeitura de Fortaleza lançou um pacote de ações emergenciais para a população em situação de rua. Os principais investimentos prometidos, que incluíam um novo abrigo para famílias e mais um espaço de Higiene Cidadã, não foram feitos. Pessoas em vulnerabilidade denunciam ainda a precariedade dos equipamentos já existentes, desde a insalubridade das pousadas sociais até o número de quentinhas insuficiente distribuído diariamente.

A vereadora Adriana Gerônimo (Psol), do mandato coletivo Nossa Cara, chamou atenção para a falta de higiene e manutenção das pousadas sociais após visita realizada com ativistas no dia 23 de janeiro. O relatório aponta colchões rasgados e cheios de percevejos, banheiros quebrados e sujos, pouca ventilação, inexistência de lençóis, além de problemas estruturais de acessibilidade.

As duas pousadas sociais, mantidas pela Prefeitura em parceria com o Instituto Maria da Hora — organização social que também é responsável pelos contêineres de Higiene Cidadã —, atendem 100 pessoas a cada para pernoite. Uma delas, Jackson Araújo da Silva, 24, que há dois meses dorme na pousada localizada na avenida Dom Manoel, reclama da situação em que se encontram os equipamentos.

"O banheiro não é muito limpo, é desorganizado. Os colchões estão bem rasgados, mas dá para dormir", afirma. Segundo ele, as pousadas também não distribuem itens de higiene, como xampu e sabonete.

"Muita gente sofre com isso, a gente tem que dormir 'preguento' (sujo)". No momento do monitoramento da vereadora, foi registrado que xampus e condicionadores eram armazenados em bisnagas de ketchup e mostarda e entregues de forma paulatina.

O POVO também visitou a pousada localizada na avenida do Imperador no dia 25 de janeiro, com autorização da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) e acompanhado de representante da pasta. Dois dias após a denúncia da vereadora, o espaço recebeu lençóis. No entanto, os colchões eram os mesmos. Segundo a secretaria, uma licitação foi feita para a compra de 200 novos itens, mas não havia previsão de entrega. Enquanto isso, 140 itens disponibilizados pela Defesa Civil devem substituir os velhos.

Os banheiros foram limpos antes da visita da O POVO, mas problemas ainda eram visíveis, como vazamento de água em canos, paredes com reboco rachado e um papel colado entre os dois chuveiros disponíveis apontava que uma das portas estava quebrada. Os toaletes tinham ainda cadeiras comuns de plástico que serviam como apoio para pessoas com algum problema de mobilidade. Conforme nota da SDHDS, providências para reforma das pousadas estão em execução, com vistoria técnica. Os banheiros devem receber pintura, troca de pias e maçanetas.

A sujeira vista pela vereadora foi justificada pela pasta devido ao turno de trabalho dos zeladores, que estão presentes no local apenas pela manhã, horário que O POVO visitou a pousada, e à tarde. À noite, quando as pessoas em situação de rua chegam para dormir, não há equipe de limpeza.

O calor que fazia no local também chamou atenção, já que no galpão de cima, que abriga 80 camas, apenas seis ventiladores de parede estão instalados. Charles Holanda de Queiroz, 40, que dormia na pousada da avenida Imperador, também reclamou da higiene. "Tô só com três dias dormindo lá, mas é mesmo que ter passado um mês", afirmou.

Além das pousadas, a Prefeitura disponibiliza 150 vagas distribuídas em dois abrigos e uma Casa de Passagem. No pacote anunciado em 2022, havia a promessa da habilitação de mais um abrigo para mulheres e famílias, com capacidade de 50 novas vagas. No entanto, o equipamento não foi aberto. Segundo a SDHDS, uma vistoria técnica seria realizada no imóvel para avaliar o funcionamento. Não foi informada a localização.

A sopa distribuída à noite nas pousadas também é alvo de reclamações. Charles conta que o alimento é "fraco". Para Jackson, algumas vezes o alimento "não tem gosto", conta. Segundo a Prefeitura, as sopas são entregues também nos três pontos de Higiene Cidadã e em 17 Centros de Referência da Assistência Social (Cras). Há um ano, 700 sopas diárias eram disponibilizadas. A SDHDS conta que a quantidade foi aumentada para 3.200 refeições.

Já as quentinhas distribuídas no horário do almoço podem ser recebidas no Refeitório Social, no bairro Moura Brasil, nos três espaços de Higiene Cidadã, no Centro, e nos Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) dos bairros José Bonifácio e Damas. No início de 2022, eram entregues mil quentinhas diariamente. A proposta do pacote de ações emergenciais era aumentar a quantidade em mais mil por dia, com investimento de R$ 5.055.250. No entanto, o número atual é de 1.200 almoços.

Marcelo Medeiros, ativista e pessoa em situação de rua, afirmou que a alimentação providenciada não é suficiente. "Tá com dois dias que eu vou pegar quentinha e não consigo. Fica muita gente sem almoçar, não tem o que comer", diz. "A gente que tá em situação de rua até agora não viu nada", afirma sobre o pacote de ações da Prefeitura. 

 

FORTALEZA, CE, BRASIL,27.01.2023: Pousada social Meyre Hellen de Oliveira Jardim, Av. do Imperador. Matéria especial sobre pessoas em situação de rua.
FORTALEZA, CE, BRASIL,27.01.2023: Pousada social Meyre Hellen de Oliveira Jardim, Av. do Imperador. Matéria especial sobre pessoas em situação de rua.

Fiscalização deve ser sistemática, afirma promotor

O promotor de Justiça Alexandre Alcântara, coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Cidadania do Ministério Público do Ceará (MPCE), defende que a fiscalização dos equipamentos destinados à população em situação de rua seja efetiva e sistemática.

"A Prefeitura alega que está fiscalizando. Me parece estranho que tenha fiscalização ali", afirma. No dia 26 de janeiro, o MPCE pediu à Justiça a interdição da Casa de Passagem Elisabete de Almeida Lopes, no bairro Benfica, que atende a população de rua, principalmente idosos. Alexandre foi um dos promotores que visitou o local e atestou diversos problemas.

"Chegamos lá e vislumbramos uma situação extremamente preocupante e caótica. A casa não tem nenhum dos condicionantes legais para funcionar", afirmou. O promotor conta que os funcionários não conseguiram mostrar alvarás sanitários nem certificação do Corpo de Bombeiros.

"Vimos que as condições sanitárias são bastante precárias. A estrutura precisa de uma intervenção. Pessoas em situação de rua merecem equipamentos que possam recebê-las de forma digna", contou. No local, três idosos estavam muito doentes e acamados, segundo o promotor. "Eles não poderiam estar ali."

Alexandre afirma que os promotores da área estudam a possibilidade de propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a Prefeitura de Fortaleza relacionado à manutenção dos equipamentos para esse público. O relatório feito pelo mandato Nossa Cara sobre as pousadas sociais também foi entregue ao MPCE para avaliação.

 

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