Em momento de renovação a partir do avanço tecnológico, a previdência social brasileira completa 100 anos.
Uma das instituições mais antigas do serviço público brasileiro pós-império, atualmente, paga mais de 37 milhões de benefícios e se renova com desafios antigos e novos, como filas, além da adaptação com os bônus e ônus da digitalização.
A partir deste mês, uma nova beneficiária que passou a receber seu salário por lá foi Lúcia Barreto, de 61 anos.
Após 17 anos de trabalho, Lúcia finalmente conseguiu a aprovação dos papéis no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Ela conta que está feliz em ter o benefício aprovado.
Pela previdência social, também recebeu auxílio doença por uma lesão que sofreu no trabalho.
Com carteira assinada, trabalhou por mais tempo como secretária do clube da Associação Atlética Banco do Brasil (AABB). Chegou a passar cerca de 10 anos sem contribuir, em momento em que trabalhou informalmente e desconhecia os carnês de contribuição avulsos.
Mais recentemente, seu último trabalho formal foi numa empresa de telemarketing.
"Agora, a partir do quarto dia útil de cada mês é que vou receber minha aposentadoria", diz ela. Porém, reconhece que o valor de um salário mínimo (R$ 1.302) não será suficiente por conta de seus atuais gastos mensais, que incluem ainda remédios caros para o tratamento de sua lesão de trabalho.
Conforme o depoimento de Lúcia, uma das "heranças" da reforma previdenciária de 2019 foi a redução do valor dos benefícios, por conta da alteração da metodologia de cálculo.
Mas não só isso. Outras mudanças relevantes foram a implementação do requisito de idade mínima para se aposentar: 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens.
Há ainda a extinção do regime de previdência dos Parlamentares Federais: quem já estava permanece, quem entrou a partir da emenda constitucional será filiado ao regime geral de previdência social.
E, praticamente, o Regime Próprio dos servidores públicos se equiparou ao Regime Geral de Previdência Social dos empregados privados.
Em 24/1 é celebrado o Dia do Aposentado. Em 2023, a data marcou o centenário da Previdência Social do Brasil, com cerimônia de entrega de medalhas do mérito previdenciário Eloy Chaves
Na avaliação de Washington Barbosa, especialista em Direito Previdenciário, é preciso lembrar o contexto da época da reforma, em que era necessário equilibrar as contas previdenciárias. Ainda assim, há pontos a serem melhorados.
Ele destaca como prioritários, “alguns ajustes finos, principalmente no que diz respeito à metodologia de cálculo para o benefício de pensão por morte e dos requisitos da aposentadoria especial.”
Para o economista Wandemberg Almeida, membro do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE), apesar dos desafios, a previdência social brasileira ainda é a principal âncora de garantia social e de saúde ao trabalhador.
Na sua avaliação, nestes 100 anos, é errado dizer que ela perdeu relevância, até pelo leque de produtos que possui e seu alcance. "Tem muito o que melhorar neste momento em que chega aos 100 anos, mas precisamos reconhecer os avanços que proporcionou na vida do trabalhador brasileiro.”
Wandemberg ainda destaca que, em meio ao aumento do trabalho informal, há ainda a procura pelo empreendedorismo, o que exige das pessoas estarem atentas às novas modalidades de contribuição, com os carnês da previdência, com acesso a benefícios importantes, como os auxílios maternidade e doença.
“Estamos experimentando uma mudança de cultura. As pessoas estavam acostumadas com uma previdência mantida totalmente pelo Estado. Agora a população está observando alternativas, como previdência privada e outros investimentos”, pontua.
Embora a previdência social seja referida na Constituição da grande maioria dos países do mundo, nenhum dedica tanto espaço de seu texto constitucional para tratar do assunto quanto o Brasil. E as ações da previdência social brasileira seguem aumentando.
Em solenidade que celebrou o seu centenário, realizado no dia 24 de janeiro de 2023, em Brasília, o ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, assinou portaria que detalha os procedimentos adotados pelo INSS para otimizar, a partir do cruzamento de dados, a comprovação da "Prova de Vida" dos beneficiários.
Segundo o IBGE, a população brasileira está em fase de envelhecimento. Até 2060, o percentual de pessoas com mais de 65 anos será de 25,5%. Ou seja, 1 em 4 brasileiro será idoso
No início da gestão, Lupi afirmou que havia 1,3 milhão de pessoas na fila do INSS para obter pensões e aposentadorias. E se comprometeu a acabar a fila.
"Tenho muito orgulho de poder homenagear Eloy Chaves (deputado que foi autor da proposta que instituiu a primeira legislação nacional de previdência social), que buscava a proteção dos ferroviários e fez o arcabouço previdenciário, além dos servidores, para alcançar novas conquistas."
E completa: "Começamos, assim, a luta pelos próximos 100 anos. Vamos marcar a recuperação da previdência e garantir a cidadania para os brasileiros de cada parte desse país”, disse o ministro que prometeu que a responsabilidade social será o pilar central da gestão federal na área.
Para quem não quer esperar somente pela previdência social, existem diversas opções de previdência privada, que permitem a quem aderir a liberdade de definição sobre quando receber os valores.
De acordo com a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (Fenaprevi), até novembro passado existiam 13,9 milhões de planos disponíveis.
Do total no País, 11,1 milhões são da modalidade individual e 2,7 milhões na modalidade coletiva.
Esse mercado vem crescendo bastante nos últimos anos, já que apenas 0,5% dos planos se encontram na fase de recebimento de benefícios. Ainda de acordo com os dados, 10,8 milhões de brasileiros pagam planos privados de previdência.
Uma opção simplificada para quem busca aposentadoria por meio de investimento foi anunciada. Trata-se da criação da modalidade de renda fixa Tesouro Direto do título RendA+ - Aposentadoria Extra, que estará disponível a partir do dia 30 de janeiro.
Na prática, é a primeira iniciativa de um país de implantar um título público previdenciário que é destinado a investidores interessados em garantir uma fonte de renda complementar à aposentadoria.
Desenvolvido em conjunto com a B3, o título será aberto para investimento mínimo de R$ 30, podendo ser resgatado em 240 prestações mensais, totalizando 20 anos.
Reinaldo Domingos, PhD em Educação Financeira e presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Educação Financeira (Abefin), avalia que para escolher essa modalidade as pessoas devem ter em mente duas questões, que são quando deseja se aposentar e com que valor.
Para ele, o investidor deve ter cuidado na forma que escolherá para formar o "pé-de-meia" para a velhice.
Escolher uma modalidade de investimento fora da tradicional previdência precisa ser bem planejada e primando pela diversificação.
"O risco mora principalmente nas pessoas direcionarem todos seus recursos para um único local. É preciso muito planejamento e calma e nada de concentração dos recursos financeiros em uma única linha. Talvez até aportar em 10% a 20% neste tipo de investimento seja interessante, mas não mais do que isso."
"Falo isso pelo simples fato de que não temos certeza de como será o futuro e os resultados dos investimentos. Basta lembrar que no passado o INSS era para ser a grande e mais importante aposentadoria do brasileiro e veja no que deu. Hoje, depois de algumas reformas, os valores não são suficientes para grande parte dos brasileiros", diz Reinaldo.
Ele ainda incentiva que os investidores também criem outras reservas, de curto e médio prazo.
>> Bate-pronto
Com Carlos Heitor Campani (*)
O papel da previdência social precisa ser entendido pelas camadas mais abastadas da sociedade. É o que defende Carlos Heitor Campani, professor de Finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ).
Isso porque, segundo ele, muitos pensam que o INSS é um mau investimento, mas, na verdade, não se trata disso, mas de uma ferramenta de proteção social e também de transferência de renda, dos maiores salários para os menores salários.
Para além do seu papel, o professor também frisa que o funcionamento da previdência se guia pelas mudanças na sociedade, principalmente pela expectativa de vida da população. Por isso que ele não descarta mudanças futuramente.
O POVO - De que forma podemos observar a relevância da Previdência Social brasileira em 100 anos?
Carlos Heitor Campani - A previdência social brasileira é importantíssima porque ajuda milhões de brasileiros. Eu só acho importante a gente compreender muito bem a finalidade do INSS, previdência pública, porque se a gente compreende a finalidade de maneira equivocada, podemos tecer uma opinião equivocada.
Por exemplo, se eu tento andar de carro no mar, eu vou perceber que não vai funcionar, e eu vou achar que carro é uma porcaria, mas na verdade, estou usando o carro de maneira errada, então essa metáfora é importante para a gente entender.
A providência tem a finalidade de cobrir aquele nível mínimo de subsistência para os cidadãos brasileiros, a previdência social não tem a finalidade de dar uma vida boa para os brasileiros, não é essa ideia infelizmente, porque não cabe na conta.
Então, tendo essa finalidade em mente, a previdência tem logrado êxito nisso, as camadas mais abastadas, às vezes, não compreendem muito, acham que o INSS é um mal investimento porque exatamente enxergam ele como investimento.
INSS é uma ferramenta de proteção social e também de transferência de renda, dos maiores salários para os menores salários. Então, tendo essa finalidade em mente, nosso sistema previdenciário, ele pode ser dito um sucesso.
"A alíquota dos ricos é um pouco maior, mas talvez se discuta se deva ser um pouco maior do que as atuais, e também se nós não devamos nos aposentar um pouco mais tarde novamente, por conta do envelhecimento saudável que a sociedade está tendo"
O POVO - Com a reforma previdenciária, alguns grupos - especialmente as mulheres - reclamaram sobre os novos critérios para obter aposentadoria. Isso desestimula os brasileiros a contribuir?
Campani - A sociedade entende a importância e a relevância da previdência social, e as reformas são fundamentais para que o sistema continue de pé firme e forte, na medida que a sociedade vai envelhecendo, vai vivendo mais, à medida que nossa capacidade produtiva vai aumentando, hoje, com 55 anos, a pessoa é jovem ainda, 100 anos atrás essa idade era próxima da expectativa de vida, então com isso é natural e forçoso, você adaptar com o tempo a previdência através de reformas, e com isso, se eu iria antes me aposentar com 60 anos, e agora, eu como homem, vou me aposentar com 65 anos, se eu pensar a nível pessoal, claro que para mim ficou pior, mas eu tenho que pensar a nível social, a nível coletivo.
Para essa liberdade de aposentadoria mais cedo nós temos que recorrer, aqueles que podem, naturalmente, a uma previdência privada. Então as reformas são fundamentais e fazem parte do sistema previdenciário de qualquer país.
Mas por que precisamos de reforma? Porque não tem como a gente prever como a sociedade vai estar daqui a 20 anos, a gente tem que viver, ver e então tomar as melhores decisões, e aí como o INSS é um pacto intergeracional, quem está agora trabalhando está pagando para manter aquelas pessoas que já trabalharam, então quando chegar lá, é natural que deve haver uma reforma que vai tornar o INSS, eu não quero usar a palavra pior, porque tem um sentido negativo, mas é natural eu já ter a expectativa de quando eu me aposentar daqui a 20 anos, a idade mínima não seja 65 anos, talvez 67 anos, se eu prever essa evolução.
Mais uma vez é a metáfora do carro andando no mar: se eu entendo o INSS como algo que alguém foi lá e assinou o contrato comigo e tem que ser aquilo, e vem uma reforma e quebra aquele contrato, eu estou interpretando errado, não existe esse contrato, porque eu estou pagando para pessoas mais velhas e atualmente aposentadas, e como é um pacto social nós temos que compreender que existem mudanças e que a sociedade ao evoluir, precisa rever os seus sistemas de proteção social.
No final das contas, combater isso que coloquei aqui, é combater proteções sociais, porque o caminho alternativo seria numa sociedade sem proteção social, cada um cuida por si só, o que de longe para mim, não é uma solução pensável.
O POVO - Mesmo com as mudanças, o rombo previdenciário ainda é relevante e levanta dúvidas sobre até quando a Previdência Social será sustentável. Há futuro para o sistema?
Campani - O rombo ele existe e, na verdade, como a última reforma não foi exatamente aquela que os especialistas queriam para resolver o problema por algum tempo, você permanece com o rombo, sendo assim, é certo que em pouco tempo falaremos sobre uma nova reforma.
Como disse, não acredito que o salário mínimo vai ter que reduzir na aposentadoria, porque o Brasil tem essa cultura do salário mínimo valer para a previdência, então, a saída vai ser das duas uma ou ambas, um pouquinho aqui, um pouquinho lá, contribuir mais a sociedade como um todo, e aí entra discussão se os ricos devem contribuir mais.
Hoje, já é assim, a alíquota dos ricos é um pouco maior, mas talvez se discuta se deva ser um pouco maior do que as atuais, e também se nós não devamos nos aposentar um pouco mais tarde novamente, por conta do envelhecimento saudável que a sociedade está tendo com a própria evolução e os hábitos de saúde e a medicina que nos tornam mais longevos.
(*) professor de Finanças do Coppead/UFRJ