Na última semana, uma investigação independente realizada a pedido da própria Igreja Católica expôs a dimensão de um dos maiores escândalos de pedofilia já constatados com a chancela da instituição religiosa. Pelo menos 4.815 crianças e adolescentes foram abusadas sexualmente por membros do clero católico de Portugal de 1950 até os dias atuais.
A verificação percorreu décadas e vasculhou aspectos obscuros da cúpula da religião em Portugal, situação ainda mais delicada por se tratar de um país de mais antiga e arraigada tradição católica no mundo — com influência determinante para a formação da sociedade e da fé no Brasil.
Centenas de vítimas foram ouvidas nas investigações. "Os testemunhos nos permitem chegar a uma rede de vítimas muito mais ampla, calculada em um número mínimo de 4.815", afirmou o coordenador da comissão de especialistas, o psiquiatra infantil Pedro Strecht, em entrevista coletiva em Lisboa.
"Agora é difícil que tudo fique na mesma quando se trata de violência sexual contra menores em Portugal e a consciência do seu impacto traumático", disse à imprensa.
Em outubro de 2021, uma equipe de seis especialistas, liderada por Strecht, anunciou que havia registrado 424 testemunhos legítimos de supostas vítimas, mas advertiu que o número total era "muito maior".
Os membros da comissão de especialistas expuseram durante duas horas, de forma crua e detalhada, os ensinamentos dos 512 testemunhos validados, mas também das investigações nos arquivos da igreja e de suas entrevistas com seus altos funcionários da hierarquia.
Apesar da dimensão do escândalo revelado, a maioria dos casos denunciados já prescreveu. Dos mais de 500 depoimentos, 25 foram encaminhados ao Ministério Público, que abriu investigações.
"O informe revela uma realidade dura e trágica. Esperamos que marque um novo começo", afirmou o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), o bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas.
"Pedimos perdão a todas as vítimas", acrescentou, referindo-se a uma "ferida aberta que nos (...) envergonha", após assistir à apresentação do informe.
Diante dos milhares de casos de abusos revelados em todo o mundo e das acusações de acobertamento, o papa Francisco prometeu em 2019 erradicar o abuso sexual de menores por parte do clero dentro da Igreja.
Vários países publicaram nos últimos anos relatórios sobre casos de pedofilia na Igreja, incluindo França, Irlanda, Alemanha, Austrália e Holanda.
Na América Latina, continente de forte presença católica, há centenas de casos investigados em Chile, Colômbia, Argentina e México. Não há trabalhos de aprofundamento
no Brasil.
Um dos 25 depoimentos encaminhados para investigação do Ministério Público em Portugal é o de Alexandra, o segundo nome de uma mulher de 43 anos que prefere permanecer no anonimato e que foi estuprada por um padre quando se preparava para a vida de freira aos 17 anos.
"É muito difícil falar sobre o tema em Portugal", um país no qual 80% da população se define como católica, explica Alexandra, que é mãe, formada em Ciência da Computação e trabalha como ajudante de cozinha.
"Eu guardava este segredo há muitos anos, mas sentia que era cada vez mais difícil administrar sozinha", declarou em entrevista. Ela chegou a denunciar o agressor às autoridades eclesiásticas, mas se sentiu "ignorada".
Três anos depois, os especialistas da comissão independente se ofereceram para ouvir o depoimento e proporcionar apoio psicológico.
Em abril do ano passado, o cardeal-patriarca de Lisboa e principal líder da Igreja Católica portuguesa, Manuel Clemente, declarou-se disposto a "reconhecer os erros do passado" e a "pedir perdão" às vítimas.
O jesuíta Hans Zollner, membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, lamentou que "a magnitude dos números e dos testemunhos" não seja algo novo e que ecoe outros relatos ouvidos em todos os "cantos do mundo".
Mas o trabalho da comissão independente é também "sinal de que a Igreja é capaz de enfrentar esta profunda ferida", acrescentou o diretor do Instituto de Antropologia para a prevenção de abusos após a apresentação do informe.
O papa Francisco viajará a Portugal em agosto para a Jornada Mundial da Juventude e existe a possibilidade de um encontro com algumas vítimas.