Um traço vivo nos moradores mais antigos do Jacarecanga é a memória do prestígio e o incômodo com a falta de conservação das construções de alto padrão do bairro de Fortaleza. O abandono dessas construções mudou a arquitetura local e, em algumas situações, resumiu casarões, bangalôs e mansões a ruínas localizadas próximas ao Centro da Cidade.
A arquiteta e autora da pesquisa “Verticalização no Jacarecanga em Fortaleza: Produção do Lugar, Segregação e Renovação Urbana”, Simone Mendes remonta que o bairro começou a se desenvolver com a ocupação pelas elites econômicas, na década de 1920. Foi quando o político Pedro Philomeno Ferreira Gomes resolveu transformar as próprias terras em um loteamento. “Ele construiu e transformou a região em um local aprazível, com uma arquitetura copiada de revistas francesas”.
“O padrão dos imóveis do bairro eram de construções como a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, a mais bem preservada atualmente. Era uma área de sítios e veraneio. As pessoas tinham chácaras, plantavam pomares e faziam passeios de barco na lagoa”, conta Simone.
A professora explica que o político tinha como projeto construir as primeiras casas para a família e induzir o crescimento da Cidade para o lado do Jacarecanga. “Ele era muito esperto. Com a influência política, ele trouxe a linha de bonde para próximo da sua casa, o que possibilitou uma centralização de atividades no entorno do loteamento”.
A pesquisadora acredita que assim como ele conseguiu moldar um bairro para as elites fortalezenses, ele igualmente as afastou. “Philomeno era empresário e construiu fábricas perto do litoral, onde morava. A indústria provocou um afluxo de moradores não desejados. As pessoas pobres queriam trabalhar e começaram a ocupar áreas no entorno, como o Arraial Moura Brasil e o Pirambu”.
“A Jacarecanga era um bairro de 'Alphaville', sem muros e portões. Somente pessoas muito privilegiadas moravam ali, como as famílias dos médicos, advogados e políticos da época”, lista a arquiteta.
Quando as fábricas foram instaladas, o bairro passou a ser frequentado quase como um passeio turístico por pessoas de baixo poder aquisitivo. “O bairro começou a ficar misturado e as elites começaram a se incomodar com aquela frequência de pessoas que não pertenciam àquele lugar”.
Visando preservar a segregação entre classes, a elite econômica da Cidade resolveu se mudar. “Essa elite podia construir casa onde quisesse. Foi assim que o bairro da Aldeota e o Benfica começaram a se formar”.
“Os ricos saem dos imóveis e alugam para pessoas de classe média alta. Com o tempo, essa classe média percebe que não estava legal morar no local e resolvem migrar. Hoje em dia, essas grandes obras de residências foram substituídas por edifícios ou estão em péssimo estado de abandono”.
A partir deste momento, os grupos moradores eram caracterizados, cada vez mais, por pessoas com rendas menores que os moradores anteriores.
Até os anos 2000, a população da Jacarecanga era de grupos de baixíssima renda. No final dos anos de 1990, houve uma virada de chave. A pesquisadora explica que o bairro deixou de ser operário para voltar a ser desejado pela classe média.
“Novas legislações urbanísticas permitiram a construção de edifícios mais altos. A cronologia das construções no Jacarecanga segue a seguinte ordem: casas de pomares; ocupações de alta renda; cortiços; edifícios baixos de até 4 pavimentos, e agora, construções com 12 pavimentos”.
Simone conta que a nível mundial, todas as áreas centrais da cidade (grandes capitais) entram em decadência. Começam como espaço de moradia, depois comércio. “Todas as administrações municipais lutam para fazer o Centro ser requalificado. Se você tira a moradia de um local, você declara a morte daquele local, no caso do Centro, à noite”.
A pesquisadora também lista um outro fenômeno que contribuiu para a atual ocupação do bairro, além da permissão de construções mais rentáveis para as empresas: a instalação do campus Unifametro. “A instalação desse equipamento trouxe um fluxo de pessoas que fizeram girar a economia.”
O território já era ocupado pelo Liceu do Ceará, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Social do Comércio (Sesc) e Escola de Enfermagem São Camilo de Léllis. A construção de uma universidade no bairro intensificou o fluxo de estudantes e mobilizou a economia local.
“Foi muito decisiva a instalação desses equipamentos. Muitos alunos do Interior passaram a morar nas imediações para não pagar transporte coletivo. Além disso, essas pessoas passam a consumir no bairro, o que movimenta o mercado e o valor dos imóveis”, finalizou.
Um resquício do que foi o bairro no século XX permanece preservado através da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, mencionada pela pesquisadora, Simone Mendes, como “a mais bem preservada, no Jacarecanga, atualmente”.
A casa tem arquitetura de influência europeia, em estilo Art Nouveau italiano, e levou cinco anos para ser construída (de 1924 a 1929). Após ter sido restaurado, em 2002, o imóvel passou a funcionar como uma instituição de ensino, a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho (EAOTPS).
Todos os espaços do casarão foram aproveitados e adaptados para abrigar salas de aula, biblioteca, ilha digital, salas de exposição e ateliês artísticos. As intervenções resgataram e mantiveram a originalidade da edificação. O palacete é protegido pela lei estadual nº 9.109/68 e pertence ao Governo do Estado do Ceará.
“As portas, pisos e janelas são as mesmas desde a construção deixada por Thomaz Pompeu Sobrinho. Ele foi o primeiro morador deste imóvel. A família com sobrenome Pompeu é bem referenciada na nossa Cidade, como Senador Pompeu (avô do Thomaz) e Antônio Pompeu”, explica Michel Rodrigues, guia da Escola.
Thomaz foi diretor do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), presidente do Instituto do Ceará e integrante da Academia Cearense de Letras (ACL). “Ele e outros moradores do Jacarecanga foram as referências das famílias de classe alta da Cidade, fazendo com que essa região tenha sido reconhecida como um agrupamento de famílias com sobrenomes elitizados”.
O guia relembra que antes de ser inaugurado como Escola, o imóvel iria ser desapropriado para algum empreendimento comercial. “É uma pena, que diversos casarões não existem mais. Além disso, com o tempo, os novos moradores alteraram completamente a arquitetura do imóvel. São mudanças que transformaram completamente o bairro”.
Na visita a Escola, o guia mostrou uma exposição de fotos do bairro tirada na época em que a família Pompeu residia na casa. As imagens apresentam uma fonte no meio da Praça, palmeiras compondo o cenário do bairro, muros baixos e uma distância entre uma residência e outra, para assegurar o estilo de moradia do local.
Passado 94 anos, a construção da família Pompeu abriga a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, equipamento administrado pelo Instituto Dragão do Mar, sob Contrato de Gestão com a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará.
A Escola oferece cursos de conservação e restauro, oficinas e minicursos livres de gravura e artesanato, perpetuando os ofícios e permitindo a inserção de jovens no mercado de trabalho por meio de técnicas e conhecimentos tradicionais.
“Quem vem fazer curso ou uma visita aqui volta ao tempo e prova um pouco de como era morar aqui naquele período. Nos cursos oferecidos pela escola, ensinamos o que é patrimônio e a valorização para termos uma consciência crítica sobre o assunto", conclui o guia.
Quem passa pela avenida Francisco Sá, entre as casa de número 1771 e 2224, pode avistar um pouco o que foram as construções da antiga Jacarecanga e do que sobrou desta história. Reformas e ruínas se misturam no cenário do que antes foi um bairro de casas de alto padrão, a partir da década de 1920. (Galeria de fotos abaixo)