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O que ameaçaa democracia hoje
Reportagem

O que ameaçaa democracia hoje

| Brasil | Para pesquisadores, grupos extremistas e facções criminosas são hoje as principais ameaças ao regime democrático no país
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Data que marca início da ditadura militar ainda gera controvérsia política (Foto: Jansen Lucas)
Foto: Jansen Lucas Data que marca início da ditadura militar ainda gera controvérsia política

Às vésperas do 31 de março, o Brasil ainda se recupera de outra data representativa de autoritarismo: o 8 de janeiro. Quase seis décadas depois do golpe militar no país, o ataque à sede dos Três Poderes da República é uma atualização do espírito antidemocrático de uma fração dos brasileiros.

Em conversa com O POVO, especialistas discutem os nexos entre os dois momentos: o marco a partir do qual foi deflagrado o regime de exceção, que perdurou por mais de 20 anos, e a intentona golpista do início de 2023, como ficou conhecida a investida de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para desestabilizar o recém-empossado Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Para pesquisadores, o 31/3 é hoje menos um perigo real do que um símbolo em torno do qual grupos radicalizados e autocráticos se aglutinam para celebrar um governo que perseguiu, torturou e assassinou adversários políticos e cujo ideário inspirou abertamente Bolsonaro.

"Hoje temos de lidar não propriamente com o 31/3, que é uma data simbólica para eles comemorarem suas ideias golpistas, mas a gente tem que se preocupar com o dia a dia das instituições", avalia Carolina Botelho, cientista política do Instituto de Estudos Avançados da USP e pesquisadora associada do Doxa/Iesp/Uerj.

Segundo ela, o maior risco à democracia neste momento não se encontra meramente em um signo que remeta aos militares, mas na "organização de grupos antidemocráticos, como se mantêm, como perpetuam ideias, através de quais canais, como conseguem sustentar as redes de desinformação que mantêm esses canais vivos e os grupos coesos".

As ameaças escalaram, assumindo contornos reais e extrapolando o território retórico, como se viu durante a campanha eleitoral de 2022 e mais ainda depois de confirmada a derrota de Bolsonaro.

Os acampamentos de apoiadores na frente dos quartéis foram um indício dessa massa que ganhou volume progressivamente, até finalmente se assentar naquele movimento, funcionando como laboratório de ações terroristas, como a tentativa de explodir uma bomba nas proximidades do aeroporto de Brasília.

"Os desafios são enormes", continua Botelho, para quem o 8/1 "foi consequência de um processo de violência e de ataque às instituições da democracia brasileira que vem se tornando forte e constante a partir da eleição de Bolsonaro".

Ou seja, não se trata de raio em céu azul, mas de uma força social que se identificou com o então presidente e em torno de quem passou a se organizar politicamente a fim de sabotar o regime democrático, com anuência e estímulo do chefe do Executivo.

"Dali em diante (a partir de 2018), a gente conseguiu ver na sociedade grupos e segmentos bastante antipáticos à democracia, alguns inclusive com interesses particulares na quebra das regras do estado de direito", salienta.

Nesse sentido, a ameaça institucional seguiria em latência no Brasil, mesmo depois do revés eleitoral de Bolsonaro e do desfecho das investigações sobre o 8/1, no âmbito das quais quase 1,5 mil pessoas foram presas por determinação do ministro do STF Alexandre de Moraes - uma boa parte delas já foi solta.

Cientista político e professor, Rodrigo Prando (Faculdade Mackenzie) concorda: "O 8 de janeiro de 2023 vai ser uma marca na trajetória da história política brasileira". Logo, sua sombra deve se projetar ainda por algum tempo, como uma nódoa semelhante à do 31/3.

De acordo com ele, os acontecimentos daquele dia se explicam por condutas individuais e coletivas, além de declarações manifestadas sistematicamente por figuras como a do ex-presidente Bolsonaro e aliados de primeira hora, entre os quais estavam seus filhos.

"Têm responsabilidade política", defende o pesquisador, "todos aqueles que fizeram um discurso de ataque aos valores republicanos", municiando as hordas que depredariam patrimônio público.

Mas, passada a eleição, esse tipo de ameaça já não deveria ter sido superado? Prando responde que "esses ataques ganham uma amplitude que muitas vezes os democratas não conseguem alcançar".

"O ódio à democracia e às instituições viraliza numa velocidade pelas redes sociais do século XXI, enquanto temos instituições analógicas", aponta.

O 8/1, nesse caso, foi um exemplo clássico da "materialização de anos de discurso de ódio" jamais punido como deveria, ao menos até agora.

 

Ricardo Moura: Uma democracia sob fogo cruzado

Dentre suas várias obrigações, os governos precisam prover segurança aos seus cidadãos. Na Constituição Federal, no artigo 144, é dito que a segurança pública é "dever do Estado e direito e responsabilidade de todos". Na medida em que essa premissa se mostra insuficiente, diante da ação de grupos armados, direitos básicos são colocados em risco, como o de ir e vir livremente, por exemplo.

O episódio mais recente e dramático sobre como a rotina da população pode ser interrompida de forma brusca está acontecendo no Rio Grande do Norte. Atentados, incêndios e ataques a prédios públicos, ônibus, comércios e, até mesmo, residências são uma mostra do poder de fogo de tais organizações criminosas em um claro desafio às autoridades e, no limite, à democracia.

Em 2019, o Ceará viveu situação semelhante por duas vezes, em janeiro e em setembro daquele ano. A raiz do que ocorreu aqui e do que o Estado potiguar enfrenta, neste momento, é a mesma: a crise do sistema penitenciário brasileiro, um ente superpopuloso, ineficaz em seu processo de ressocialização e corroído pela presença do crime organizado, o mesmo que investe contra autoridades da República.

Se as imagens de veículos incinerados são espetaculares e repercutem tanto na mídia tradicional quanto nas redes sociais, o desafio da mobilidade é uma constante para populações que vivem sob o jugo de tais grupos, fazendo com que elas sejam impedidas de acessarem serviços básicos como educação e saúde. Muitos estudantes precisam mudar de escola por causa de ameaças e pacientes carecem de atenção médica por viverem em territórios sob disputa.

A incapacidade estatal de exercer sua soberania sobre áreas inteiras pode ser expressa de diversas maneiras, de norte a sul do país: da atuação desinibida das milícias no Rio de Janeiro à exploração desenfreada do garimpo na Amazônia, passando por cima de qualquer regulamentação legal em busca do lucro.

Quando o Estado perde o monopólio do uso legítimo da força a democracia se enfraquece. O cenário que se desenha, nessa circunstância, é o de um estado de natureza em que a desconfiança mútua esgarça o tecido social e o acesso privilegiado à violência armada se torna o elemento garantidor dos direitos individuais. Sob todos os aspectos, um imenso retrocesso.

 

Supporters of Brazilian former President Jair Bolsonaro destroy a window of the the plenary of the Supreme Court in Brasilia on January 8, 2023. - Hundreds of supporters of Brazil's far-right ex-president Jair Bolsonaro broke through police barricades and stormed into Congress, the presidential palace and the Supreme Court Sunday, in a dramatic protest against President Luiz Inacio Lula da Silva's inauguration last week. (Photo by Ton MOLINA / AFP)
Supporters of Brazilian former President Jair Bolsonaro destroy a window of the the plenary of the Supreme Court in Brasilia on January 8, 2023. - Hundreds of supporters of Brazil's far-right ex-president Jair Bolsonaro broke through police barricades and stormed into Congress, the presidential palace and the Supreme Court Sunday, in a dramatic protest against President Luiz Inacio Lula da Silva's inauguration last week. (Photo by Ton MOLINA / AFP)

"Não existe democracia consolidada no Brasil"

Professor de Direito da Universidade Regional do Cariri (Urca), Fernando Castelo Branco cita alguns motivos pelos quais a democracia no Brasil frequentemente se vê sob ataque, seja de militares, seja de civis.

"A primeira coisa a considerar", diz o pesquisador, "é que não existe democracia consolidada nem no Brasil nem no mundo, no sentido de democracia pronta, acabada, democracia fora de risco".

Segundo ele, o quadro é assim porque "a democracia é um regime de governo, quer dizer, é uma forma de organizar o processo decisório" que se altera historicamente.

"Essa forma é dinâmica, muda, porque mudam as possibilidades, as necessidades da sociedade, seus dilemas, desafios, problemas. A democracia está em permanente construção, mesmo em lugares em que se tem instituições mais antigas, como é o caso dos EUA", explica.

O Brasil, porém, é marcado por um conjunto de particularidades que o torna mais vulnerável a solavancos periódicos. É o caso, por exemplo, do que Castelo Branco considera como problemas de forma e de conteúdo.

Entre os de forma, estão as permanentes mudanças nas regras do jogo eleitoral. "Não temos regras eleitorais estáveis, a cada eleição há uma novidade na legislação eleitoral, não conseguimos manter a mesma de uma eleição para outra. Isso fragiliza as coisas e compromete a consolidação da democracia", critica.

Além disso, o país não teria "estabilidade nas regras de governabilidade" que assegure minimamente que um chefe de Estado terá condições de governar sem estar refém de forças políticas que controlam a pauta do Congresso.

Tampouco há "estabilidade na delimitação da separação dos poderes", o que resulta em "crises institucionais muito frequentes".

Já quanto ao conteúdo, o professor enfatiza que "a finalidade da democracia é incluir pessoas e realizar o bem comum" e que, "sob esse ponto de vista, a desigualdade cria categorias de cidadãos que são diferentes".

Finalmente, o regime democrático nacional tem contas a acertar com seu passado. "Temos um problema crônico que é histórico: nós não fizemos o julgamento do passado autoritário do Brasil", pondera.

A esse conjunto de obstáculos ao amadurecimento democrático, o professor de Direito Felipe Braga, da Universidade Federal do Ceará (UFC), acrescenta as "causas econômicas e sociais, ou seja, um grande contingente de trabalhadores que perderam seus empregos e não se consegue ver perspectiva de ascensão social".

"É uma pobreza endêmica. Isso também compromete o sistema democrático", avalia Braga.

Todos esses elementos, de acordo com o docente, representam dificuldades ante as quais o regime democrático é desafiado, e não apenas aquelas variáveis mais comumente associadas a ataques à democracia, tais como a recente declaração do presidente do Superior Tribunal Militar (STM) classificando o golpe de 1964 como uma "revolução". (Henrique Araújo)

 

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