Fincado no tradicionalmente seco Sertão Central do Ceará, o município de Milhã precisará de tempo para se recuperar de tanta água que desceu à cidade no dia 27 de março. Nos bairros mais atingidos, Dom Mauro e São Francisco, a agonia das cerca de 300 famílias que vivem na região ainda não terminou.
O retrato das áreas mais afetadas pela enxurrada é desolador. Casas destruídas, postes caídos, árvores arrastadas, além de diversos objetos espalhados pelo solo, que passaram a compor o cenário local após a inundação. Nas ruas, prevalece um forte cheiro que mistura os odores do esgoto remexido e do mofo que se adere aos objetos. Segundo a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), choveram 420,3 mm em Milhã em março. A média é de parcos 182,2 mm. Como um todo, a região hidrográfica do Banabuiú recebeu 98,1% a mais do que o volume esperado de precipitação. Quase o dobro.
Em meio a tamanha destruição, famílias tentam contabilizar os prejuízos e retomar a vida que água parece ter levado. A casa da cozinheira Veroneide Avelino, 45 anos, foi inundada. A umidade na parede demarca que o nível da água atingiu cerca de 1,5 metro. Com lágrimas nos olhos, ela conta que, no momento da enchente, só pensava no seu filho, Artur Avelino, de 8 anos.
"Eu não queria saber se eu ia perder nada, eu só queria saber do meu filho. Foi um desespero tão grande, esse bichinho gritava. Eu nunca imaginei passar por isso, eu não consigo nem explicar", conta.
Veroneide vive com o filho, o marido e a sogra, de 74 anos. Ela conta que a idosa não conseguiu sair de casa. Com a enxurrada, o freezer e o sofá da casa foram arrastados para as portas da residência, o que impossibilitou uma saída imediata. "Meu marido tentava abrir a porta, minha sogra ficou no cantinho. Com muito sacrifício, ele conseguiu. Entrava muita pedra e esgoto. Quando saímos, meu marido voltou para ficar com a mãe dele".
Alzenir Ferreira, 41, marido de Veroneide, conta que só sobreviveu devido à diminuição do fluxo da água que entrava na casa. "A água chegou no pescoço da minha mãe, e ela se alarmou, encostei nela. Não ia deixar minha mãe morrer só". Após o susto, a idosa segue em repouso, na casa de outros familiares.
Com a casa ainda revirada pela água, Veroneide diz ainda não ter forças para tentar reverter a situação. "Não sei o que eu vou fazer, estou sem coragem. Não consigo pensar, tem tanta coisa pra arrumar. É muito ruim a gente ficar de favor na casa dos outros. Vamos tentar, a fé em Deus é tudo", completa.
De acordo com a Prefeitura de Milhã, mais de 1.200 pessoas foram afetadas de forma direta pela tragédia. Entretanto, todo o município contabiliza danos. Paralelamente, o abastecimento de água foi completamente afetado e a energia elétrica ainda não foi retomada em todas as localidades.
"Não tenho nem dúvida de que os prejuízos passam de R$ 10 milhões. Além das famílias e das casas, somos a terra do leite. Muitos animais foram atingidos. Sem energia, não há como armazenar leite, que estraga e precisa ser descartado", explica o prefeito Alan Macêdo (PL).
Após a catástrofe, a chuva, que outrora representava esperança, passou a ser temida por quem vive em Milhã. "Hoje, por incrível que pareça, a gente pede para não chover. Se a chuva chegar, voltaremos para uma situação ainda mais crítica, porque nossos açudes já estão muito cheios", afirma o prefeito. Maior reservatório do município, o Jatobá está sangrando. A região tem outros três açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) também com 100% da capacidade: Patu (Senador Pompeu), São José I (Boa Viagem) e São José II (Piquet Carneiro).
Cilânia Pinheiro, 51, é outra moradora do Sertão Central que teve a casa inundada durante a enchente, e passou a temer que mais água caia do céu. A residência havia acabado de passar por uma reforma, a mudança estava planejada para esta semana.
"Foram quatro anos juntando dinheiro para reforma. A estrutura ficou, mas perdi quase todos os meus móveis. Agora, minha filha não quer mais morar aqui, eu fico triste, o tanto que a gente trabalhou aqui, tinha tanto gosto por essa casa", lamenta.
Menos de 300 metros separam a sede da Prefeitura de Senador Pompeu de uma das áreas mais atingidas do município. Desde o último, 26, a rua Sisgismundo Rodrigues não existe mais. Com a enchente, as águas do rio Banabuiú, que abastece toda a região, passaram a ocupar a via, que antes era a principal ligação entre Senador Pompeu e Piquet Carneiro.
Quem mora próximo ao rio conta que a noite de domingo jamais será esquecida. "Não deu tempo de nada, chegou de uma vez. Isso por volta de 23 horas, tudo escuro, muita chuva e água subindo. A gente corria para tirar as coisas, um desespero", conta Marlan Lima, 26, que possuía um lava a jato, hoje destruído.
Na zona rural, a situação é ainda pior. A cerca de 20 quilômetros do Centro, a localidade de Codiá tem comunidades inteiras ilhadas. Só na região do Poço Grande são 65 famílias, de acordo com levantamento da Prefeitura.
Para chegar ao local, já não há estrada. A passagem é feita a pé, em meio a casas destruídas, postes e fios caídos. Após superar a via destruída, ainda é preciso atravessar a passagem molhada, com uma forte correnteza e buracos na estrutura feitas à força pela água.
José Iranlei Alves, 44, é um dos responsáveis por ajudar a abastecer os demais habitantes do Poço Grande. Os mantimentos só podem ser recebidos por quem consegue superar todas as adversidades do terreno.
Ele conta que os estragos começaram na noite de domingo. "Ouvimos uns estrondos, e nos preparamos para correr. A gente achava que o barulho era o açude do Poço Grande que tinha estourado. Corremos para uma pedra e lá ficamos até amanhecer".
Já o agricultor Marcos Costa, 52, relata que ainda não superou o que viveu. Admirador da chuva, ele conta que nunca imaginou que perderia tudo para a água. "É terra arrasada. Levou todo o meu milho, minha cerca e o arame. O investimento de todo um ano foi levado pela água. Não tem tempo, nem terreno, já estamos entrando em abril, não tenho mais condições de retomar", lamenta.
No local, os moradores ainda não sabem quando voltarão a ter acesso à sede do município, mas muitos afirmam que não desejam deixar Poço Grande. "Para Senador Pompeu não temos como ir. Estão trazendo as cestas e passando no braço. Já veio helicóptero buscar gente, mas quero ficar aqui até o fim da vida".