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Interior é principal destino de drogas enviadas por encomendas postais ao Ceará
Reportagem

Interior é principal destino de drogas enviadas por encomendas postais ao Ceará

Traficantes têm preferido cidades do Interior cearense para o envio de drogas escondidas em encomendas postadas pelos Correios. Fora a Capital, 18 municípios eram destino de apreensões entre 2022 e 2023. Pelo menos 15 tipos de entorpecentes foram identificados
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FORTALEZA, CE, BRASIL,19.04.2023:  Cães farejadores da Receita Federal no setor de cargas do aeroporto Internacional Pinto Martins. (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FORTALEZA, CE, BRASIL,19.04.2023: Cães farejadores da Receita Federal no setor de cargas do aeroporto Internacional Pinto Martins.

Despachada no município de São José, na Grande Florianópolis (SC), a encomenda com 1,4 kg seguiria para Ararendá, cidade cearense de 11 mil habitantes no Sertão de Crateús. Foi descoberta enrolada num pano, no início de fevereiro deste ano, dentro de uma caixa junta com outros produtos.

Outras duas remessas, de 4,5 kg e 4,3 kg, também saídas de Florianópolis, iriam para Nova Russas, vizinha a Ararendá. Foram detectadas em dois dias seguidos, na primeira semana de março. E mais um pacote, enviado de São Paulo, com pouco mais de 5 kg, estava destinado para uma pessoa em Altaneira — município na região do Cariri, ainda menor, com 8 mil moradores.

Nessas quatro encomendas, enviadas pelos Correios via Sedex, havia 15,2 kg de skunk, a variação mais concentrada da Cannabis. A droga tem seu teor de tetrahidrocanabinol (THC), a substância psicoativa, até sete vezes maior que na maconha comum. É bastante popular entre traficantes (pelo maior valor cobrado) e consumidores (pelo efeito ainda mais forte). Só o pacote que seguiria para Altaneira, apreendido no último dia 14 de abril, foi avaliado em R$ 70 mil. Mas, além dos valores movimentados, são os destinos que têm chamado atenção.

Cão Symon, da Receita Federal, no momento em que identificou os 5 kg de skunk despachados de São Paulo para a cidade de Altaneira, no Ceará. Droga foi avaliada em R$ 70 mil
Cão Symon, da Receita Federal, no momento em que identificou os 5 kg de skunk despachados de São Paulo para a cidade de Altaneira, no Ceará. Droga foi avaliada em R$ 70 mil (Foto: DIVULGAÇÃO RECEITA FEDERAL)

No Ceará, a Receita Federal tem se deparado, cada vez mais frequentemente, com o envio de entorpecentes inseridos em encomendas postadas para cidades do Interior do Estado. A Capital é apenas ponto de passagem dessa droga. Essa movimentação ilícita segue para todas as macrorregiões. Os pontos de partida principais são São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Distrito Federal. A redução de voos internacionais é apontada como uma das causas desse incremento.

"Eu digo que 80% das drogas que apreendemos recentemente para esse tráfico doméstico iria para o Interior", afirma ao O POVO um agente da Receita que atua diretamente no trabalho de vigilância e repressão no Aeroporto de Fortaleza. As apreensões são feitas junto aos terminais de cargas e por equipes aduaneiras, nas verificações de bagagens.

Em levantamento feito pela 3ª Região Fiscal do órgão (que abrange Ceará, Piauí e Maranhão), 19 municípios cearenses aparecem numa lista de destinos para onde os entorpecentes seriam enviados. O período analisado pela Receita foi entre 2022 e 17 de abril deste ano. Em pouco mais de 100 dias de 2023, foram quase 70 kg de maconha ou skunk encontrados em vistorias das encomendas, cargas e pertences de passageiros. Das apreensões na regional da Receita, 98% acontecem em solo cearense.

Pelo menos 15 tipos de drogas já foram reconhecidas nessas remessas ilícitas ou camufladas diretamente com viajantes. Maconha e cocaína aparecem com seus respectivos derivados (como oxi, crack, haxixe, MDMA, pasta-base e outras variações), além de versões líquidas. As drogas sintéticas também são diversificadas: LSD, NBOme ("N-Bomb" ou "Smiles"), ecstasy, K2 ("K9" ou "Spice"), MDMA.

Houve até o registro de um 16º tipo, "uma substância entorpecente não identificada" (registrado assim em relatório dos agentes). Nem o narcoteste rápido conseguiu apontar qual seria. A quantidade, 190 gramas, chegou num pacote que saiu do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, e o comprador esperava recebê-lo em Sobral. O conteúdo foi para análise no laboratório da Polícia Federal e a conclusão ainda não foi apresentada. A suspeita é de que seja uma variação de maconha sintética.

O incremento no envio de drogas para o Interior passou a ser mais notado em inspeções a partir de setembro do ano passado. Os pacotes postados acabam descobertos porque passam obrigatoriamente pela Capital, no centro de distribuição de mercadorias e cargas. É uma das etapas antes do envio dos produtos para cada cidade.

"Eles (criminosos) veem dificuldade de trazer para Fortaleza diretamente. Aí tentam entrar pelo Interior", detalha o mesmo agente, da divisão da Receita que combate o tráfico, contrabando e descaminho. Segundo ele, a Capital hoje representaria 10% dos volumes apreendidos. Também em índices aproximados, descreve que 35% vão para Zona Norte e Litoral Oeste; 35% para Centro Sul e Cariri; 20% para Litoral Leste, Região Jaguaribana e Sertão Central.

Todos os nomes de remetentes e destinatários são repassados pela Receita para abertura de inquéritos pela Polícia Federal. Os envios se dão entre pessoas físicas. “São jovens, abaixo dos 30 anos, maioria homens, sem antecedentes criminais”, descreve o agente da Receita.

Questionada sobre o encaminhamento dado aos casos — inclusive de nomes que se repetem entre quem envia ou tenta receber —, a Superintendência da PF no Ceará informou que não iria se manifestar por conta do sigilo legal das investigações em curso.

Drogas apreendidas no Ceará - origens e destinos
Drogas apreendidas no Ceará - origens e destinos (Foto: Luciana Pimenta)

Origem, destino ou tamanho de pacote estão entre perfis de risco analisados

No protocolo de inspeção, as mercadorias são consideradas por um perfil de risco que pode levar em conta desde origem e destino a critérios como tipo de carga ou registros recentes de apreensões. As denúncias são outro recurso. O POVO acompanhou, no último dia 19, uma vistoria de rotina da Divisão de Repressão e Combate ao Tráfico, Contrabando e Descaminho da Receita Federal, feita por cinco agentes e mais dois cães farejadores num dos terminais de carga do Aeroporto Internacional de Fortaleza.

Vistoria de encomendas postais num dos terminais de cargas do Aeroporto de Fortaleza, feita pela Divisão de Repressão da Receita Federal. Interior tem sido principal destino da droga enviada por traficantes para o Ceará
Vistoria de encomendas postais num dos terminais de cargas do Aeroporto de Fortaleza, feita pela Divisão de Repressão da Receita Federal. Interior tem sido principal destino da droga enviada por traficantes para o Ceará (Foto: Cláudio Ribeiro)

Uma das estratégias é usar níveis para o risco, a partir do que está sendo vistoriado. O olho treinado dos agentes vai em pacotes pequenos ou maiores. O disfarce para a droga pode estar em qualquer tipo de encomenda. Quando os cães Ithor e Symon farejam algo suspeito, indicam sentando diante da mercadoria. Inclusive param de latir. As embalagens são abertas para a vistoria. Um narcoteste chegou a ser usado, mas a presença de droga não se confirmou em nenhum produto naquela manhã. Nos ambientes maiores e de malas despachadas, também são usados scanners e aparelhos de raio-x.

“Muitos (pacotes com drogas) podem passar. Não temos como checar 30 mil encomendas domésticas. Fazemos por amostragem e em análise de perfis de risco", admite o agente da Receita, da Divisão de Repressão, que pede para não ser identificado. Por turno, três agentes chegam a verificar mais de mil encomendas, em média, segundo ele. Num dos terminais de cargas do aeroporto, a movimentação estaria em cerca de 11 mil encomendas por dia.

O tráfico por encomendas postadas não é novo, mas ganhou incrementos com a chegada da pandemia da Covid-19. O maior quantitativo apreendido no Estado pela Receita, atualmente, é justamente no aeroporto. O órgão também faz inspeções nos portos, estradas, terminais de cargas e junto a empresas transportadoras. Em ações próprias ou em parceria com outras forças e órgãos de segurança.

FORTALEZA, CE, BRASIL,19.04.2023:  Cães farejadores da Receita Federal no setor de cargas do aeroporto Internacional Pinto Martins.
FORTALEZA, CE, BRASIL,19.04.2023: Cães farejadores da Receita Federal no setor de cargas do aeroporto Internacional Pinto Martins. (Foto: FÁBIO LIMA)

"Como voos internacionais praticamente cessaram na pandemia, passamos a atuar mais em voos domésticos. Aí houve o aumento dessas apreensões. Você pergunta se é um aumento da criminalidade ou maior atuação nossa? Acho que são as duas coisas. A nossa Direp (Divisão de Repressão) teve ganho de pessoas e a gente focou nesses últimos anos no trabalho de repressão e combate. O consumo de drogas vêm aumentando e nossa atuação foi mais forte”, explica Alexandre Guilherme Vasconcelos, superintendente-adjunto da 3ª Região Fiscal da Receita.

Nos últimos anos, a Regional passou de três para oito servidores no trabalho de repressão, e de um para três cães de faro. O auxílio dos animais é destacado. Naquela manhã, o terceiro agente canino, Scooter, estava em outra atuação fora do aeroporto. 

Em setembro, Correios passaram a exigir CPF/CNPJ como medida de segurança

"Os Correios trabalham em parceria com os órgãos de segurança pública e fiscalização para prevenir o tráfego de itens proibidos por meio do serviço postal. Tais operações são executadas em conjunto pelas instituições e acontecem rotineiramente", informou a Superintendência dos Correios no Ceará, através de nota, sobre a presença constante de drogas em encomendas postais.

Até antes de setembro de 2022, a empresa nem era obrigada a informar expressamente, a órgãos de segurança e fiscalização, o que estava sendo remetido como mercadoria postada. Uma das medidas adotadas passou a ser a informação do CPF ou CNPJ para o envio de encomendas nacionais. Passou a vigorar também para prevenir o despacho camuflado de ilícitos como entorpecentes. 

"Com relação à exigência de dados de CPF/CNPJ, a medida visa dar maior segurança ao processo de postagens de encomendas nacionais, juntamente com a Nota Fiscal (NF) ou Declaração de Conteúdo (DC), além de responder de forma positiva às autoridades tributárias na adaptação de seus processos e normas", explicou a empresa.

FORTALEZA, CE, BRASIL,19.04.2023:  Cães farejadores da Receita Federal no setor de cargas do aeroporto Internacional Pinto Martins.
FORTALEZA, CE, BRASIL,19.04.2023: Cães farejadores da Receita Federal no setor de cargas do aeroporto Internacional Pinto Martins. (Foto: FÁBIO LIMA)

Segundo a estatal, seus empregados atuam de forma diligente para identificar postagens em desacordo com a legislação. "Muitas das operações de repressão a ilícitos começam por meio do processo de fiscalização não-invasiva (raio-x) dos Correios". A empresa declara que tem "priorizado investimentos em ações preventivas para fortalecer a integridade dos serviços postais", mas não especifica valores e quais seriam essas medidas.

Sobre a identificação de remetentes e destinatários de mercadorias ilícitas e sobre a condução administrativa dos casos identificados, os Correios informam que "quando constatada a presença de conteúdo suspeito em seu interior, o objeto é encaminhado à autoridade competente para avaliação especializada".

Um agente da Receita Federal apontou que algumas pessoas reincidem no envio ou recebimento de drogas, mesmo tendo sido identificados pelos Correios, Receita ou Polícia Federal. Nesta questão, os Correios responderam que por ser um assunto relativo à segurança, os detalhes sobre as ocorrências são prestados somente aos órgãos competentes.

Perguntada sobre o volume de cargas e mercadorias em circulação diariamente no Centro de Distribuição dos Correios no Aeroporto de Fortaleza, a empresa informou que não repassaria os dados. Justificou que seria "para proteger sua estratégia de negócios", diante da concorrência de outras empresas no segmento de remessas internacionais. 

Em 2022, drogas apreendidas valiam R$ 9,5 milhões

Em relatórios internos, a Receita Federal também descreve valores estimados para as drogas apreendidas, quanto os traficantes movimentariam com os entorpecentes descobertos antes de chegarem ao destino. Ao longo de 2022, somente com o quantitativo recolhido nas inspeções em bagagens no Aeroporto Pinto Martins, a cifra bateu US$ 1.916.325,04. Na moeda brasileira, mais de R$ 9,5 milhões.

Neste ano, as inspeções feitas no Aeroporto de Fortaleza em bagagens detectaram 10 kg de skunk e 3,1 kg de cocaína. A mulher presa no dia 23 de janeiro tentava embarcar "vestindo" a droga. O pó estava envolto em seu corpo em uma embalagem plástica simulando uma cinta. Essa quantidade foi avaliada em R$ 240 mil.

Os 10 kg de skunk foram estimados em US$ 147.539,05 — quase R$ 740 mil. Estavam na mala de uma estudante de 18 anos que viajava de Manaus (AM) para Fortaleza. O voo havia feito uma escala em Guarulhos (SP). A jovem foi presa em flagrante na recepção de um hotel no Centro da capital cearense, para onde seguiu ao desembarcar.

A proporção é direta: quanto mais longe o destino, mais onerosa será a operação criminosa, mais cara será a droga. "São valores muito alto envolvidos. Dependendo do País, a cocaína pode ser negociada por R$ 100 mil a R$ 120 mil na Europa. Na Oceania chega por quase R$ 200 mil", exemplifica.

Mesmo com a rota doméstica do tráfico aumentando as remessas para o interior cearense, o agente da Receita ouvido pelo O POVO confirma que "o maior filão são o mercado europeu e africano, e os principais destinos passam por Portugal (Lisboa) e Cabo Verde".

 

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