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A rotina desgastante de cadeirantes que usam transporte por app
Reportagem

A rotina desgastante de cadeirantes que usam transporte por app

Pessoas que usam cadeira de rodas alegam que plataformas não possuem acessibilidade e que motoristas se recusam a seguir com viagens por preconceito e "má fé"
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fFORTALEZA-CE, BRASIL, 30-05-2023: Davi, estudante de Jornalismo. Cadeirantes X transporte por aplicativo, acompanhamos um cadeirante pedindo Uber, para retratar a dificuldade que ele enfrenta ao pedir transporte por aplicativo. (Foto: Aurelio Alves/O Povo) (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES fFORTALEZA-CE, BRASIL, 30-05-2023: Davi, estudante de Jornalismo. Cadeirantes X transporte por aplicativo, acompanhamos um cadeirante pedindo Uber, para retratar a dificuldade que ele enfrenta ao pedir transporte por aplicativo. (Foto: Aurelio Alves/O Povo)

Escolher endereço de partida, destino final e o tipo de veículo desejado. São os passos necessários para solicitar um transporte por aplicativo. Quem usa cadeiras de rodas, contudo, muitas vezes precisa realizar mais uma etapa: aguardar encontrar um carro acessível e esperar — por minutos ou horas —, um motorista que aceite a corrida. A rotina é desgastante, repetitiva e, por vezes, solitária.

Em uma checagem por plataformas sociais como o Twitter e em sites de reclamações como o "Reclame Aqui", é possível perceber inúmeras denúncias de cadeirantes que tiveram problemas em transportes dessas modalidades. Os relatos vão desde consecutivas viagens recusadas até tratamento indevidos.

Muitas denúncias, no entanto, não se formalizam. De acordo com o Ministério Público do Ceará (MPCE), o Programa Estadual de Defesa do Consumidor (Decon-CE) recebeu, nos últimos quatro anos, apenas duas reclamações de pessoas em cadeiras de rodas sobre a dificuldade em usar transporte por aplicativo.

Segundo o Decon, as "reclamações são sobre a dificuldade de encontrar veículo adaptado para deficiente físico, sendo uma contra a Uber e outra contra a 99Pop. Essas reclamações, no entanto, foram arquivadas por 'falta de retorno dos consumidores'".

De acordo com Emerson Damasceno, presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Ceará (OAB-CE), esse índice não representa a realidade.

"Claro que esse número (de denúncias feitas) é bem menor do que o que acontece no dia a dia por diversos fatores, um deles é a questão mesmo das barreiras inúmeras que as pessoas com deficiência enfrentam. Sejam elas barreiras de comunicação, sejam elas um desconforto, uma descrença de que não vão conseguir (apoio). Isso infelizmente existe mesmo que a gente sempre diga em vários espaços de fala que as pessoas têm que denunciar, devem recorrer, judicializar quando forem feridas no seu direito", diz o advogado, que é pessoa com deficiência.

O advogado frisa que, no âmbito nacional, há vários casos de cadeirantes que foram lesionados por plataformas de aplicativo e levaram o caso à Justiça. "Com as novas decisões e os novos julgamentos publicados na imprensa, isso acaba encorajando com que outras pessoas façam o mesmo", pontua.

Segundo Emerson Damasceno, se o motorista utilizar no trabalho um veículo que tenha capacidade de transportar a cadeira de rodas do passageiro, ele não pode se recusar a fazer a viagem. "A exceção aí são as cadeiras motorizadas, que são maiores, precisam de carros maiores", explica o advogado.

Caso o passageiro comprove que sofreu discriminação, a conduta do motorista pode ser tipificada como criminosa, conforme estipulado na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, n° 13.146. "A lei estabelece que discriminar alguém em função de sua deficiência é um crime", diz Emerson.

"Se a situação vir a ser tipificada, de forma comprovada que houve uma discriminação, que determinado motorista não quis atender em função da deficiência de alguma pessoa (...) Isso pode vim a ser objeto de ação penal", explica Emerson, que explica que a ação deve passar por perícia criminal.

Conforme a defensora pública Mariana Lobo, que está a frente do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC), da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), situações como essas também podem ser analisadas sob a perspectiva do Direito do Consumidor, uma vez que se trata da adesão de um serviço.

Ou seja, tanto o motorista como a plataforma utilizada podem ser responsabilizadas pela atitude do condutor, seja em razão de discriminação ou pela forma como o serviço foi prestado. "É importante destacar que todo tipo de discriminação é crime", reforça ainda a defensora pública. 

Medidas e contatos

O que fazer após sofrer recusa do motorista em razão da deficiência:

  • Tirar o print da tela;
  • Fotografar ou gravar a placa do veículo;
  • Filmar a situação, se possível;
  • Registrar um boletim de ocorrência (BO)

Fonte: Mariana Lobo, defensora pública

Onde procurar ajuda no Ceará:

Delegacia de Proteção ao Idoso e Pessoa com Deficiência (DPIPD)

Rua Professor Guilhon, 606 - Bloco D - Aeroporto, Fortaleza - CE, 60415-330

Telefone para contato: (85) 3101-2495

Defensoria Pública do Estado

Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas - Ndhac - Fortaleza

Endereço: Av. Senador Virgílio Távora, 2184, Dionísio Torres, Fortaleza - CE

Telefone(s): Ligue 129 / (85) 3194-5049

Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça Cíveis

Endereço: Rua Lourenço Feitosa, n° 90, Fortaleza

Bairro: José Bonifácio, Fortaleza

Telefone: (85) 3252-6508

E-mail: seccv@mpce.mp.br

 

 

fFORTALEZA-CE, BRASIL, 30-05-2023: Davi, estudante de Jornalismo. Cadeirantes X transporte por aplicativo, acompanhamos um cadeirante pedindo Uber, para retratar a dificuldade que ele enfrenta ao pedir transporte por aplicativo. (Foto: Aurelio Alves/O Povo)
fFORTALEZA-CE, BRASIL, 30-05-2023: Davi, estudante de Jornalismo. Cadeirantes X transporte por aplicativo, acompanhamos um cadeirante pedindo Uber, para retratar a dificuldade que ele enfrenta ao pedir transporte por aplicativo. (Foto: Aurelio Alves/O Povo)

Dois caminhos atravessados pelo preconceito

É início da noite quando Davi Brandão, 24, sai da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde estuda, e se prepara para voltar para casa. Como a maioria da população que usa transporte por aplicativo, ele saca o celular e pede um veículo por uma plataforma. Quando o motorista aceita a corrida, porém, o estudante faz algo que a maioria não precisa fazer: entra no chat do aplicativo e avisa que é cadeirante.

Frequentemente, o motorista cancela a corrida após ler a mensagem. Há condutores que perguntam se a cadeira "desmonta" e aceitam o serviço ao saberem que sim, mas, logo em seguida, sem razão aparente, cancelam. Então o jovem tem de repetir o processo uma, duas, três vezes, até que alguém finalmente siga com a viagem. No início da jornada, ele tem colegas de turma ao lado. Aos poucos, a companhia vai minguando.

Davi tem paralisia desde nascença, e usa esse tipo de aplicativo há cerca de um ano. Para ele, é mais fácil, confortável e seguro ir de carro para a universidade. Contudo, ele passou a acumular viagens canceladas. Foi quando teve a ideia de enviar mensagens para avisar os condutores com antecedência que seria preciso transportar uma cadeira de rodas. Pouco adiantou.

De acordo com o estudante, há motoristas que não olham a mensagem que ele envia e, quando percebem que se trata de um cadeirante, ficam esperando que o jovem cancele a corrida — processo que resulta em taxas para o passageiro. Ele já chegou a esperar duas horas para conseguir que alguém aceitasse a corrida. Ficou na rua sem uma única companhia, apenas com o celular e a vontade de voltar para casa.

“Muitos deles (motoristas) falam que não conseguem levar (a cadeira), só que outros eu percebo que é má fé, porque eles realmente não querem levar. Tem dias que eu chego atrasado; eu já tive que pagar oito taxas (de cancelamento) porque eles chegam aqui em casa e não querem me levar. Simplesmente param, ficam esperando na porta de casa até dar o tempo necessário (para a taxa ser cobrada)”, conta o jovem, dizendo ainda que alguns condutores são "grosseiros" e não o "enxergam como uma pessoa".

Negociação de Davi com motorista(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Negociação de Davi com motorista

Assim como o universitário, a conciliadora Jully Coutinho também desenvolveu o hábito de mandar mensagem para o motorista avisando que ela é cadeirante — mas parou de fazer isso após perceber que o aviso a fazia ter uma "taxa de cancelamento altíssima". Ainda assim, os problemas continuaram.

"Eles (condutores) se recusam a levar a cadeira de rodas alegando que não cabe no carro porque tem gás, ou às vezes simplesmente por má vontade", desabafa. Ela relata que, desgastada com a situação, já perguntou para alguns motoristas a razão pelo qual eles cancelaram a corrida e ouviu de um deles que era "por preguiça de guardar a cadeira" ou ainda "de ter que ajudar o passageiro a entrar no carro".

Jully, que opta por usar esse tipo de transporte também em razão da segurança e do conforto, diz ainda que passa diariamente por constrangimentos quando o motorista, por exemplo, percebe que ela é cadeirante e pergunta se "a cadeira de rodas vai também". Ela conta que também já foi cobrada por taxas de cancelamento indevidas, mas que conseguiu justificar e não teve de arcar com os valores.

"Todo dia é essa novela. Quando é o meu esposo, que não tem deficiência, o carro (de aplicativo) vem, bota ele dentro e vai embora", compara. Segundo Jully, é comum sugerirem que ela peça um transporte com taxa extra de conforto, mas ela rechaça ser razoável alguém pagar mais por um serviço pelo simples fato de ser pessoa com deficiência.

fFORTALEZA-CE, BRASIL, 30-05-2023: Davi, estudante de Jornalismo. Cadeirantes X transporte por aplicativo, acompanhamos um cadeirante pedindo Uber, para retratar a dificuldade que ele enfrenta ao pedir transporte por aplicativo. (Foto: Aurelio Alves/O Povo)
fFORTALEZA-CE, BRASIL, 30-05-2023: Davi, estudante de Jornalismo. Cadeirantes X transporte por aplicativo, acompanhamos um cadeirante pedindo Uber, para retratar a dificuldade que ele enfrenta ao pedir transporte por aplicativo. (Foto: Aurelio Alves/O Povo)

Rede de assistência: a quem cadeirantes podem recorrer?

Vivenciando diariamente a dificuldade de usar transporte por aplicativo, a conciliadora Jully Coutinho procura utilizar dos meios disponíveis para lutar contra problemas de acessibilidade. Atuando no Procon Fortaleza, ela diz que está se mobilizando para agir em prol de pessoas com deficiência que enfrentam situações desse tipo.

Já o estudante Davi Brandão usa o que tem: a resistência. Para o futuro jornalista, ter um corrida recusada é apenas um dos percalços do dia a dia. O jovem conta que fica muitas vezes sem comer direito para conseguir arcar com os custos diários do transporte.

"O sentimento é de raiva, eu tenho realmente a capacidade de me tornar um grande jornalista, mas eu esbarro no preconceito do motorista", diz o jovem.

De acordo com Mariana Lobo, o melhor caminho para lutar contra essa situação é denunciar os casos. A defensora pública lista como o passageiro lesado pode agir: tirar print da tela do aplicativo, fotografar ou gravar a placa do veículo, filmar a situação, se possível, e registrar Boletim de Ocorrência (BO).

Uma vez munido de provas, é importante que o passageiro busque apoio de advogados particulares ou órgãos públicos.

Políticas de acessibilidade das duas maiores plataformas

Casos como os trazidos nessa reportagem já chegaram ao conhecimento de órgãos públicos e incentivaram ações em prol de usuários com deficiência. Em 2019, por exemplo, após Ação Civil Pública (ACP) do Ministério Público do Ceará, a Justiça determinou que a Uber reserve pelo menos 10% dos veículos acessíveis a pessoas com deficiência, com adequação nos veículos dos motoristas parceiros.

O POVO encaminhou e-mail, na quarta-feira, 31 de maio, para a Uber indagando se a determinação foi acatada, mas, até o fechamento da reportagem, a plataforma não deu retorno sobre esse ponto em específico. No entanto, a empresa encaminhou nota informando que "não tolera qualquer forma de discriminação em viagens pelo aplicativo" e diz que tem o "compromisso de promover o respeito, a igualdade e a inclusão".

A Uber afirma ainda que fornece aos motoristas materiais informativos e um guia de acessibilidade. Intenção das ações é orientar condutores sobre como tratar cada usuário com "cordialidade e respeito" e também "como ter interações positivas e respeitosas com usuários que têm alguma deficiência".

"Nos casos em que usuários sentirem que o tratamento dado pelo parceiro não foi respeitoso, ou que desrespeitou os termos da lei, ressaltamos sempre a importância de reportarem esses incidentes à Uber, para que possamos tomar as medidas necessárias", informou ainda a empresa, destacando que "motoristas que adotem conduta discriminatória podem levar à perda de acesso à plataforma".

Já a 99POP, que junto à Uber figuram como as plataformas mais populares no Ceará, encaminhou nota ao O POVO informando que "atua na conscientização e na educação dos motoristas "sobre respeito e empatia para promover um ambiente seguro e acolhedor nas corridas".

"A empresa ressalta que o fato de a pessoa ter deficiência não é aceito como motivo para o motorista parceiro cancelar a viagem e que tem uma política de tolerância zero com qualquer atitude discriminatória, seja contra motoristas ou passageiros. Em situações como essa, usuários devem reportar ao aplicativo para que medidas previstas no Termo de Uso da plataforma sejam tomadas", orienta em nota.

"Caso não seja possível realizar a corrida (por exemplo, porque o porta-malas é muito pequeno), o passageiro com deficiência deve cancelar a corrida, entrar em contato com a Central de Ajuda, diretamente no app, se identificar como pessoa com deficiência e explicar a situação. Dessa forma, a taxa de cancelamento será anulada e uma nova solicitação poderá ser realizada", completa ainda a empresa.

 

Órgãos públicos

Entre os órgãos que podem melhor atender esses casos, Emerson Damasceno lista a Delegacia de Proteção ao Idoso e Pessoa com Deficiência, o Ministério Público, a Defensoria Pública

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