Na dark web (ou deep web), o ambiente proibido da internet, o cearense bacharel em Psicologia, de 30 anos, usava um codinome comum e gostava de participar de diversos fóruns de pornografia infantil. Vamos chamá-lo de @jose2016 (nome fictício). As atividades suspeitas foram rastreadas no submundo virtual a partir de 2016 pela Polícia Federal (PF) — inclusive com ajuda da Interpol (a polícia internacional).
@jose2016 era um usuário ativo. Frequentava grupos temáticos, mas os de sua preferência eram os de "pedomoms" ou "pedowomen" — o termo para designar comunidades de mães ou mulheres pedófilas. Era por onde ele se aproximava das supostas abusadoras parceiras, que seriam as próprias mães ou parentes das vítimas. As crianças abusadas, cinco meninos e uma menina, tinham entre 1 e 9 anos de idade. Uma das características principais do suspeito preso era criar tutoriais para ensinar pedófilos a identificar e aliciar mulheres abusadoras.
A operação Anêmona, deflagrada pela Polícia Federal nesta segunda-feira, 31, não é uma investigação típica de comercialização de imagens de pornografia infantil — embora pelo menos uma das seis acusadas presas tenha sido apontada também por esse crime. Segundo a delegada Luciana Mota, da Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos (DRCC), da PF, que coordenou a investigação, as mulheres chegavam a expor os filhos em videochamadas ou arquivos de imagens (fotos e vídeos) em ambientes reservados mesmo sem envolver negociação financeira. Não havia extorsão. As abusadoras teriam agido por vontade própria. O aliciador foi preso em dezembro de 2022, dentro da operação Psique Sombria. A Anêmona foi iniciada a partir do material apreendido (notebook, HD, celular, anotações) na residência do aliciador.
"Os piores casos são os das crianças mais novas. Na cabeça dele (aliciador) e delas (mães), os meninos não iriam contar para ninguém. Elas disseram que os meninos não iriam lembrar. Mencionaram que hoje em dia não faziam mais, que o menino hoje está crescido. Associavam que a criança poderia lembrar, por isso os casos eram piores ainda com os bebês. São imagens pesadíssimas", descreve a delegada federal. Alguns dos fóruns de dark web visitados constantemente pelo suspeito preso focavam em sadismo e em bebês. Com pelo menos duas das mulheres, o acusado fez videochamadas e assistiu ao vivo aos abusos delas com os garotos do outro lado da linha. Com pelo menos duas das mulheres, o acusado teria feito videochamadas e assistido ao vivo aos abusos delas com os garotos do outro lado da linha.
@jose2016 fazia os primeiros contatos com as mulheres ainda em redes sociais abertas. Muitas vezes simulava paqueras ou se apresentava em conversas despretensiosas. Com o tempo, os diálogos mais íntimos migravam para ambientes virtuais privados. Por sua formação acadêmica (não clinicava na profissão), o aliciador tinha maior facilidade para identificar os perfis psicológicos das mulheres e reconhecer quem teria tendência a cometer crimes sexuais. Ganhava confiança ao ponto de induzi-las para as práticas abusivas contra as crianças. O alvo dele, e delas, envolvia principalmente meninos. Nem os pais ou outros familiares das crianças teriam sabido da extensão dos fatos praticados, segundo a PF. Alguns remontam fatos ocorridos há cinco anos. Os garotos hoje são adolescentes.
"O pedófilo geralmente posta muito os abusos, (mas) Ele não postava tantos arquivos dos abusos em si. O diferencial dele era compartilhar na deep web os prints das conversas que mantinha com as mulheres para ensinar aos outros abusadores como ele aliciava. Gostava de se exibir, de ensinar. Ele criava tutoriais disso", descreve a delegada. Como as conversas com as mulheres se davam em chats privados, criptografados, eram mais difíceis de rastreamento. Foram as postagens que fez nos fóruns clandestinos que permitiram sua identificação. “Se ele não tivesse compartilhado na deep web, a Polícia Federal jamais chegaria nessas mulheres. Porque elas não têm o perfil de produtoras de abuso sexual infantil”, comentou Luciana Mota.
Em setembro de 2022, foi comprovado pela PF que @jose2016 trocou mensagens com uma mãe da Bahia. A mulher filmava os abusos dela com um filho de 1 ano. O aliciador foi preso em dezembro, em Fortaleza. Ele é detento do presídio da Cigana, em Caucaia. A mãe baiana só foi presa em abril, após a análise de material apreendido. O conteúdo passou a ser analisado pela DRCC da PF cearense a partir de janeiro. Os depoimentos das mulheres e as apreensões em imóveis relacionados a elas deverão alimentar desdobramentos da investigação. A PF ainda não sabe, por exemplo, se as mães chegaram a abusar de mais de um filho e se mais de uma das mulheres presas comercializou pornografia infantil.
Os crimes apontados são estupro de vulnerável, comercialização de imagens e conduta lasciva na presença de crianças. A PF informou que as cinco crianças e adolescentes no Ceará foram atendidas por integrantes do Conselho Tutelar dos respectivos municípios. Foi assinado um termo de guarda pelo órgão para que os pais, avós e familiares se responsabilizem pelos cuidados com as vítimas, diante da prisão das mães. O POVO não conseguiu informações sobre a situação da criança vítima em Belford Roxo, no Rio de Janeiro.
Base de dados da Interpol auxiliou investigações da operação Anêmona
O principal banco de dados internacional sobre exploração sexual infantil, o ICSE (sigla de International Child Sexual Exploitation database), coordenado pela Interpol, é alimentado por polícias signatárias de todo o mundo para ajudar a localizar e prender abusadores e aliciadores. E principalmente alcançar as vítimas. É uma ferramenta de inteligência artificial, com software de comparação de imagens que permite conectar vítimas a possíveis agressores e locais utilizados, analisando padrões criminais.
Nas fotos e vídeos analisados pelo programa são consideradas desde as vestimentas dos acusados e das vítimas até detalhes de ambientes privados usados para os crimes. Foram as informações do ICSE que municiaram a Polícia Federal na gênese da operação Anêmona. Ajudaram a confirmar as crianças vítimas, as mães suspeitas de abuso sexual e a relação que teriam mantido com o aliciador @jose2016 (nome fictício).
Segundo a delegada Luciana Mota, da Delegacia Federal de Repressão a Crimes Cibernéticos (DRCC) no Ceará, que coordenou a operação Anêmona, o ICSE disponibilizou uma série de imagens capturadas por agentes em fóruns da dark web e em material apreendido.
"Esse aliciador tinha aparecido em um fórum de dark web, no ano passado, num abuso que aconteceu no Interior do Ceará", descreveu. O caso teria sido em Crateús, a 359 km de Fortaleza. Na época, um outro abusador foi preso. @jose2016 teria comentado numa foto que reconhecia o abusador, um tio da criança, e a própria vítima — a partir de imagens compartilhadas. "Já tinham sido feitas diligências para se chegar a esse aliciador", segundo a delegada.
O ICSE contém mais de 4,3 milhões de imagens e vídeos e já ajudou a identificar mais de 32 mil vítimas no mundo, segundo a página da Interpol. No Brasil, a Polícia Federal é a gestora do conteúdo para a base de dados internacional e somente 36 policiais federais são qualificados no País para operar o sistema. A força-tarefa é sediada em Brasília.
A equipe da DRCC passou a trabalhar mais detidamente com o caso das mães cearenses abusadoras dos próprios filhos a partir de janeiro de 2023. A investigação foi conduzida pela Polícia Federal por envolver transnacionalidade, em compartilhamento internacional de imagens.