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6% dos cearenses nascidos desde 2016 não têm o nome do pai nos registros
Reportagem

6% dos cearenses nascidos desde 2016 não têm o nome do pai nos registros

Lacuna no documento pode causar sentimentos de rejeição
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Em mutirão do MPCE, Célio Silva comprovou a paternidade de seu filho Renato (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Em mutirão do MPCE, Célio Silva comprovou a paternidade de seu filho Renato

A certidão de nascimento é um documento que carrega parte da identidade de uma pessoa. Contudo, milhões de brasileiros em idade escolar ainda enfrentam uma lacuna em sua documentação: a falta do nome do pai. Em Fortaleza, entre janeiro de 2016 a julho de 2023, das 287.360 certidões de nascimentos emitidas pelos cartórios, 18.260 constavam apenas o nome da mãe. Ou seja, 6% das crianças nascidas não têm a filiação paterna em seus registros. 

Os dados são Central de Informações do Registro Civil - (CRC Nacional) e mostram que Potengi foi o município que registrou o menor índice de lacuna paterna nas certidões de nascimento de crianças, com 771 nascimentos e todos com o nome da mãe e do pai na certidão. Na contramão desse cenário, o município de Jardim, localizado na Região Metropolitana do Cariri, chama a atenção por liderar o índice de pais ausentes do Estado - 13%. Com 27.181 habitantes (IBGE, 2020), a Cidade registrou 6.209 nascimentos nos últimos sete anos. Destas, 828 crianças foram registradas apenas com o nome da mãe.

Francisco do Horizonte, 50, conhece bem os impactos da ausência paterna. Nascido em 1973, no município de Várzea Alegre, ele relata que é fruto de um relacionamento extraconjugal. Na época, seu pai era casado e, por isso, tinha outra família. Assim, se recusou a reconhecê-lo como filho e apenas sua mãe o registrou como genitora.

“No meu registro de nascimento tem escrito ‘pai ignorado’. Esse termo era muito pesado, ainda mais para uma criança que não entendia muito bem das coisas. Isso na minha época, ainda mais no Interior, não era muito comum”, explica.

Atualmente, os registros de nascimento que não possuem o nome dos genitores masculinos vêm com a denominação "pai não conhecido".

Francisco do Horizonte ainda conta que, quando tinha por volta de dois anos, sua mãe o entregou aos cuidados de uma família bem sucedida da Cidade. “Ser criado por outra família e essa questão na certidão de nascimento me fez alvo de vergonha e preconceito”, relata.

Francisco conta que uma das maiores dificuldades com a ausência paterna foi em seu período escolar. “Na escola eu sentia muita vergonha porque ficavam insistindo em saber o nome do pai e eu sentia que era julgado. Até mais velho, quando eu estava com 14 anos, tinha vergonha de mostrar minha identidade. Isso até hoje mexe comigo, é uma coisa que eu não consegui superar cem por cento”, explica.

Mais velho, Francisco ingressou na Marinha do Brasil, se casou e formou uma família. Ele conta que chegou a refletir sobre procurar o pai e tentar incluir o nome em seus documentos. “Eu sempre tive um certo contato com meu pai na infância e, depois de mais velho, chegou um momento que ele mesmo perguntou se eu não gostaria de inserir o nome dele na minha certidão”, relata o capitão Horizonte.

Francisco do Horizonte teve uma infância difícil sem o reconhecimento paterno(Foto: Arquivo Pessoal/O POVO)
Foto: Arquivo Pessoal/O POVO Francisco do Horizonte teve uma infância difícil sem o reconhecimento paterno

“Só que eu já era mais velho, então pensei que não deveria mexer mais nisso, eu queria superar”, conclui. Pai de três filhos, o capitão Horizonte afirma que sua história o faz reconhecer a importância da presença dos pais na vida de uma criança, em diferentes aspectos da formação.

Impactos psicológicos

A psicanalista Paula Julianna Chaves (CRP 11/05920) discute a importância do registro de filiação como um reconhecimento social do indivíduo. “O registro de nascimento é um reconhecimento social da filiação daquele indivíduo. Quando isso não se dá, ou quando ocorre por meio de intervenção judicial, os efeitos negativos são muito semelhantes: sensação de recusa”, explica a especialista.

Segundo Paula Chaves, a falta de vínculo com a figura paterna pode refletir em dificuldades de identificação consigo mesmo. “Nossas relações sociais se baseiam nas primeiras relações familiares, e quando esse aspecto fundamental está ausente, ocorre um desequilíbrio que pode afetar regras básicas de convívio, o desenvolvimento da personalidade e a identificação de si”, afirma.

Para a psicanalista, além do registro social, a ausência do referencial paterno na infância tem impactos significativos que se refletem na adolescência e fase adulta, como:

    • no desenvolvimento cognitivo;
    • na capacidade de estabelecer vínculos;
    • no desenvolvimento profissional.

INFOGRÁFICO

MAIS:
Jardim - nascimentos: 6218 / crianças não registradas: 828 (13,31%)
Itatira - nascimentos: 105 / crianças não registradas: 11 (10,47%)
Catunda - nascimentos: 655 / crianças não registradas: 67 (10,22%)
Itaitinga - nascimentos: 5151 / crianças não registradas: 526 (10,21%)
Missão Velha - nascimentos: 2627 / crianças não registradas: 258 (9,82%)

MENOS:
Potengi - nascimentos: 776 / crianças não registradas: 0 (0%)
Pires Ferreira - nascimentos: 720 / crianças não registradas: 12 (1,66%)
Saboeiro - nascimentos: 152 / crianças não registradas: 3 (1,97%)
Caririaçu - nascimentos: 3275 / crianças não registradas: 67 (2,04%)
Uruburetama - nascimentos: 2528 / crianças não registradas: 54 (2,13%)
Mulungu - nascimentos: 1743 / crianças não registradas: 45 (2,58%)

Fonte: Central de Informações do Registro Civil - (CRC Nacional), dados extraídos de 01/01/2016 a 31/07/2023.

De acordo com Nathalia Periquito, representante do Cartório de Registro Civil Simões Periquito, do município de Jardins, é difícil estipular os fatores principais para a cidade ter índices tão expressivos. “Cada caso é um caso, principalmente porque envolve questões pessoais familiares e afetivas”, pontua a gerente.

Contudo, ela explica que, nos últimos anos, tem observado um fenômeno que pode ter influenciado diretamente nos índices de reconhecimento de paternidade. “Muitos pais, na maioria das vezes bem jovens, vão morar em outros estados para trabalhar, porque não conseguem empregos aqui na região. Alguns quando chegam, vêm ao cartório e fazem esse reconhecimento, mas isso é depois de muitos meses ou até anos”, explica a registradora.

Direitos dos Filhos

Por trás da maioria das histórias de luta por reconhecimento paterno, também há relatos de mães que enfrentam desafios em busca de direitos. Uma delas é Lidiane Costa*, que tinha apenas 14 anos quando conheceu o homem que viria a ser o pai de seus filhos.

Ainda sem ter plena consciência das complexidades da vida adulta, ela compartilha como, aos poucos, se envolveu com ele, um homem de 33 anos. “Ele me levou para trabalhar na casa da família dele, cuidando da filha dele, que tinha deficiência intelectual. No decorrer do tempo, fomos nos envolvendo. Aos 17 anos tive o meu primeiro filho com esse homem. Depois, engravidei mais uma vez. Hoje meus filhos já têm 25 e 15 anos”, conta Lidiane.

Ela conta que, durante muitos anos, os meninos não tiveram o sobrenome paterno em seus documentos, pois o homem se recusava a reconhecê-los. “Eu passei muitos anos tendo que ficar calada com a situação, porque não podia me expor. O pai dos meninos é militar e ele se revoltou contra mim, a ponto de ser violento, me ameaçar, para não fazer o teste de DNA”, detalha.

Além de não receber apoio durante o crescimento das crianças, Lidiane ainda conta que a família paterna ainda insultava ela e seus filhos e insinuavam que eles eram de outro homem. “Aquilo me revoltou e meus filhos sofreram com isso. Mas depois de alguns anos, eu tomei coragem e o obriguei a fazer o exame de DNA. Não deu outra, foi comprovado que os filhos eram realmente dele”, explica.

Hoje, os filhos de Lidiane Costa carregam os nomes de seu pai e podem viver com a certeza de sua linhagem biológica. Ela ainda acionou a Justiça para ter o direito a um auxílio financeiro para seu filho mais novo. Contudo, a mãe precisou pedir uma medida protetiva contra o militar. “As ameaças de morte ficaram piores. Hoje ele não pode se aproximar de mim e ele também não quer nem ver os filhos”, relata.

Lidiane diz que se arrepende de não ter dado entrada no processo antes, “tanto pelos direitos das crianças, pelo direito ao sobrenome do pai, quanto pela questão do respeito conosco”, conclui a mãe.

* nome alterado para preservar a identidade da personagem.

Importância do registro de nascimento

Segundo a supervisora do Núcleo de Atendimento e Petição Inicial da Defensoria Pública do Ceará, Natali Massilon Pontes, o registro de nascimento pode ser feito por um ou ambos os pais. Contudo, em casos onde os genitores não são casados, é necessário que haja a manifestação de ambos para que seus nomes sejam incluídos no documento. “Infelizmente, muitos pais [na figura masculina] se esquivam dessa responsabilidade, se negando a prover os direitos que essas crianças têm, como a convivência paterna e a questão financeira”, explica a defensora pública.

Ter o nome do pai na certidão de nascimento é mais do que uma formalidade: é um direito assegurado pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069).

Natali Pontes explica que, mesmo que o pai se recuse a registrar a criança, as mães não podem deixar de registrar suas crianças. Afinal, crianças e adolescentes precisam de certidão de nascimento para frequentarem escolas e não ter acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).

“Registrou e o pai não quer reconhecer? Existem duas opções: procurar a Defensoria para que a gente tente que esse pai voluntariamente se submeta a um exame de DNA. Caso ele tenha realizado o exame, deu positivo e esse pai não reconheceu voluntariamente a paternidade, então a mãe pode ingressar judicialmente com o processo, que chama investigações de paternidade", detalha.

Ser presente

Célio Ferreira, morador do bairro Jardim Iracema, em Fortaleza, se tornou pai há 35 anos. Na época que engravidaram, os genitores tinham apenas um relacionamento casual. Sem uma relação estável, a mãe tomou a iniciativa de registrar seu filho, Renato Anderson, sem a filiação de Célio.

“Apesar dela ter registrado sem meu sobrenome, ela já havia avisado que tinha a possibilidade desse filho ser meu. E mãe sabe, né? Mas aí eu sempre fiquei próximo, meu filho tem Síndrome de Down e eu sempre dei muito carinho. Além de sempre contribuir financeiramente, mesmo sem ter a certeza que o filho era meu”, conta o pai.

A vida deles tomou um novo rumo quando uma amiga mencionou para a mãe de Renato - e ex-namorada de Célio - que a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) estava realizando testes de DNA gratuitos. A mãe então procurou Célio, questionando a possibilidade de fazer o teste. Ele concordou. Segundo Célio, não para alterar o registro, mas para confirmar o que ele já sentia: a conexão paternal com Renato.

Essa ação da DPCE ocorreu em março de 2022. O mutirão, intitulado “Meu Pai Tem Nome”, foi uma força tarefa para o reconhecimento de paternidade nas cidades de Fortaleza, Sobral e Crato. Na época, 715 casos foram atendidos.

“Eu tinha avisado o Renato que, independentemente do resultado, não mudaria o afeto e o amor que já sentia por ele”, relata Célio. O processo na Defensoria Pública foi gratuito e, após o exame de DNA, realizado em um pequeno laboratório dentro das instalações, veio a confirmação: Célio era verdadeiramente o pai de Renato.

No ultimo mutirão do MPCE, Célio Silva comprovou a paternidade de seu filho Renato (Foto: Samuel Setubal/O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal No ultimo mutirão do MPCE, Célio Silva comprovou a paternidade de seu filho Renato (Foto: Samuel Setubal/O Povo)

Conforme a Associação dos Notários e Registradores do Ceará (Anoreg-CE), o reconhecimento da paternidade pode ser solicitado a qualquer momento. As solicitações podem ser feitas pela mãe da criança, pelo próprio filho maior de 18 anos ou ainda voluntariamente pelo pai que deseja confirmar sua paternidade em qualquer cartório de registro civil. Para isso, é necessário ter em mãos a certidão de nascimento do filho a ser reconhecida e preencher um formulário padronizado.

Célio destaca uma lição que aprendeu: o nome no registro é importante, mas nada se compara à presença constante de um genitor na vida de seus filhos. “Foi uma grande felicidade ter essa certeza. Um conceito que eu deixo para os pais que possam ter essa dúvida: façam o teste. Mas o mais importante de tudo é a presença dele na vida dos filhos, na educação, no desenvolvimento e compartilhar momentos especiais”, ressalta.

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