Com pioneirismo mundial na criminalização, o Brasil tem sido palco de uma batalha com mais de um século de história, iniciada com traços de racismo, no combate ao uso da maconha em suas mais diversas formas: medicinal, recreativa, religiosa. Mesmo hoje, com inúmeros estudos e resultados comprovando benefícios na vida das pessoas devido aos seus componentes terapêuticos, a planta está envolvida em um debate acalorado que busca dissociar sua utilidade de uma ação ilícita. Nesta luta, em que, prioritariamente, as mulheres assumiram a dianteira com um protagonismo próprio, é possível perceber mudanças significativas na esfera jurídica para dar passos firmes rumo ao encaminhamento desta questão.
Antes de ser um assunto definido, porém, a erva tem sido objeto que escancara contradições na sociedade brasileira. Na mais democrática casa cearense, a Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), por exemplo, seguranças tentaram impedir a entrada de algumas pessoas que portavam mensagens defendendo a utilização da planta. A alegação era de que o grupo não poderia acessar o local com cartazes que exibiam a palavra “maconha”. Era o começo da tarde de 19 junho de 2023, data em que uma audiência pública estava marcada para discutir com membros da sociedade civil a regulamentação da cannabis medicinal no Estado.
Erika Lima foi a responsável por narrar essa situação constrangimento, vivenciado por alguns de seus colegas de movimento de lutas sociais, a um público formado por políticos, representantes do Governo do Estado, médicos, pesquisadores, professores universitários e diversas outras pessoas interessadas em discutir a utilidade terapeutica desta erva para pacientes de mais dezenas de doenças e condições clínicas. Membro da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), ela é conhecida como Erika “Loka” e estava entre as pessoas convidadas pela Comissão de Direitos Humanos e Saúde, presidida pelo deputado Renato Roseno (Psol), para fazer parte da discussão promovida na Alece.
“O racismo impera na nossa sociedade. Quando nós estávamos entrando na Casa, infelizmente tivemos problemas com os cartazes. Quatro colegas foram barrados porque seus cartazes tinham escrito ‘maconha’ e não ‘cannabis’”, esbravejou durante a audiência, indicando que tal grupo era formado por negros e moradores de periferia. Costumeiramente, ela continua, integrantes da mobilização pela legalização e liberalização da cannabis são coagidos em ações policiais, por vezes truculentas, em suas manifestações públicas.
Ex-integrante da Marcha da Maconha, um dos principais movimentos que lutam pela descriminalização da cannabis, Érika Loka relembra que, em diversas vezes, as forças policiais do Estado chegaram a se voltar contra os militantes do movimento. Ela puxa da memória que ao longo da realização de diferentes edições do evento, agentes fardados tentaram reprimir o grupo sob a justificativa de “conduta de incitação e/ou apologia ao crime”. Desde 2011, porém, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) é de que a realização do movimento é uma garantia constitucional de “reunião e de livre expressão de pensamento”. Apesar do entendimento da Justiça, a violência policial é recorrente.
Érika reflete, por outro lado, que ao invés de trazer medo, a ação policial dá ao movimento “mais gás” para seguir na luta. “Nunca foi fácil. A gente se assusta e denuncia porque, afinal, estamos avançando nessa discussão e garantindo nossos direitos. E a gente acredita que o braço armado do Estado vai cumprir com a legalidade, mesmo não sendo isso o que acontece na prática. A repressão faz parte dessa metodologia de combate ao nosso movimento”, lamenta ao O POVO+, por telefone.
Agora, para entender os motivos que fazem com que as polêmicas que envolvem a utilização da erva aconteçam, é preciso refletir sobre como o debate do uso da cannabis nasce e se insere nas mais diversas relações sociais. Afinal de contas, é entendimento de diversos especialistas que os efeitos médicos e recreativos da cannabis são colocados de lado em discussões sobre a sua utilidade na vida das pessoas. Isso em meio, principalmente, a inúmeras pesquisas e evidências que apontam a cannabis como aliada no tratamento de doenças como:
Advogado da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) e do coletivo Rede Reforma, José Tiago é um pesquisador da área e autor de uma tese em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) que faz uma abordagem antropológica sobre a regulamentação da cannabis medicinal. Para tentar explicar tamanho cenário de polêmicas, ele aponta para um dos mais emblemáticos estudos sobre a temática na literatura mundial, que analisa as resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU), na Convenção sobre Drogas de 1961.
Publicado pelo filósofo espanhol Antonio Escohotado "Antonio Escohotado (1941-2021) foi um dos maiores especialistas em drogas da literatura, sendo autor de "História Geral das Drogas". Em mais de 1,5 mil páginas, a obra faz o percurso da humanidade a partir das drogas, naturais e sintéticas – estas cada vez mais buscadas pela "sociedade do consumo e do espectáculo"." , em 1989, o livro “História geral das drogas” assinala que critérios objetivos e científicos, como possibilidades de compulsão e poder de adicção "Adicção é um vício que, normalmente, está associado ao consumo abusivo de álcool e outras drogas. No entanto, o conceito também pode estar relacionado a qualquer compulsão ou dependência psicológica, seja por comida, videogames, sexo ou outro nicho." , deram lugar a questões subjetivas e de preconceito nos encontros internacionais da ONU. Pensando nisso, José Tiago afirma em sua tese que é preciso compreender que as substâncias são detentoras de múltiplos sentidos e que elas, unicamente, portanto, não são objetos maniqueístas.
"As drogas, em si, não são imbuídas de valores, funções ou tabus. Tais atribuições partem do social, perpassam a pessoa e concretizam-se nas relações destas com as substâncias, dialogando com o seu entorno” – José Tiago
Ao OP+, José Tiago comenta ainda que Antonio Escohotado narrou em sua obra a existência de movimentos políticos dentro da própria ONU que embasavam seus argumentos em “preconceitos” para determinar a censura sobre as drogas. “(Os argumentos) Não eram apoiados em uma justificativa legal, científica ou farmacológica. Havia uma abordagem política na proibição. Para definir quais substâncias seriam proibidas nesse acordo internacional, deixaram que os critérios fossem traçados pelas próprias nações”, pontua.
Diante disso, a legislação, o conhecimento e a cultura sobre as mais diversas substâncias variaram de país para país ao longo dos anos, tornando, assim, o debate fragmentado em cada parte do mundo. Abaixo, veja como a discussão do uso da maconha acontece em diversos países:
Colega de José Tiago, o também advogado Ítalo Coelho relembra que no Brasil, as discussões pela proibição da maconha começaram ainda no Século XIX não porque a planta “poderia fazer mal”, mas porque havia uma questão racial por trás. “Ela era relacionada às pessoas, comunidades e populações negras. Então a maconha só foi proibida por causa de racismo”, assinala. Tanto é que em 1830, uma lei criada na Câmara Municipal do Rio de Janeiro teria sido a primeira do mundo a tratar desta criminalização.
“É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.”
“Pito do Pango” era a denominação para a maneira como a maconha era fumada pelos negros escravizados no Brasil, que o faziam em cachimbos de barro. Também conhecida como “fumo de Angola”, a droga era responsável por causar “sonhos” em seus usuários, que a consumiam principalmente em rituais culturais e religiosos. Tudo isso, servia de bravata para frases prontas como “maconha em pito faz negro sem vergonha”, muito comuns na época.
“Foram mais de 90 anos de racismo, discursos pesados e preconceituosos contra a maconha. Quando eu era criança, cresci ouvindo as pessoas falarem que quem fumava maconha eram pessoas violentas, desrespeitavam os pais e por aí vai. Havia muita desinformação proposital durante muito tempo”, reforça Ítalo Coelho, que é especialista na Lei de Drogas.
Em contrapartida, nos últimos anos o debate sobre o uso da maconha, sobretudo medicinal, também evoluiu bastante, conforme mostramos no primeiro episódio desta série de reportagens. Prova disso é que atualmente 26 medicamentos produzidos à base da cannabis estão liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que pacientes possam importar ou comprar diretamente em farmácias. Outra possibilidade legal que surgiu foi a do autocultivo da planta para produzir por conta própria o medicamento. Em todos os casos é necessária uma prévia autorização da Anvisa ou mesmo da Justiça para que esse direito seja garantido.
Ao mesmo tempo, ao longo de 2023, os ministros tanto do STF como do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sinalizam para um novo direcionamento rumo à descriminalização do uso recreativo da maconha no Brasil, podendo ser essa a principal mudança da Lei Antidrogas desde 2006, quando ela passou a entrar em vigor.
A defesa pela legalização da cannabis é uma batalha contínua especialmente entre as mulheres, as mais atingidas nessa discussão. No Ceará, por exemplo, a atuação deste público se evidencia de maneira tão intensa que boa parte dos movimentos sociais, das pesquisas acadêmicas, das discussões políticas e da luta pela garantia de direitos têm um braço feminino liderando. O papel que elas desempenham nas configuração das famílias brasileiras está entre os fatores que ajudam a explicar o porquê disso acontecer.
Moradora de Limoeiro do Norte, no Vale do Jaguaribe, por exemplo, Amanda Maia é estudante de Agronomia e mãe de África Luna. Hoje com sete anos, a pequena foi diagnosticada ainda aos três meses de vida com fibrose cística, uma doença genética crônica que afeta principalmente os pulmões, os pâncreas e o sistema digestivo. Como forma de amenizar os efeitos degenerativo sofridos pela filha, Amanda recorreu a um óleo fitoterápico para usar em seu tratamento.
O custo elevado para importar o medicamento, entretanto, fez com que a terapêutica fosse interrompida, uma vez que se tornava insustentável financeiramente. Para se ter ideia, uma única caixa do medicamento, que tinha duração de apenas cerca de 15 dias, chegava a custar mais de R$ 500. Mas apesar da quantia impraticável para grande parte da população brasileira, África Luna continuava precisando de tratamento. Foi enquanto que Amanda encontrou no plantio de mudas da maconha, em pequenos vasos no quintal de casa, a alternativa para devolver mais saúde para a filha.
De maneira independente, ela própria extraia o óleo da planta para medicar a filha. A ideia teria sido perfeita, se não fosse por um detalhe: Amanda ainda aguardava por um habeas corpus da Justiça para realizar o autocultivo. Mas antes de obter o HC em mãos, ela foi surpreendida por policiais devido uma denúncia anônima de porte de drogas em casa. “Até que chegou um momento em que policiais, infelizmente, invadiram a nossa casa. Cheguei a ser presa e sofri ameaças de que minha filha iria para o conselho tutelar”, narrou ela durante audiência pública na Assembleia Legislativa do Ceará para discutir a regulamentação da cannabis no Estado.
Graças a uma articulação de advogados juntos com a Defensoria Pública, ela conseguiu ser liberada após assinar um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). “Espero que ninguém mais precise passar pelo o que eu passei”, afirma ela, que vislumbra maiores avanços nessa questão no território cearense.
Criada para atuar em rede na luta pelos direitos humanos e o fortalecimento político das mulheres, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) surge em 2016 com a proposta de transformar a opressão racial, patriarcal e capitalista diante do público feminino sobretudo no campo das políticas de drogas. “Ao longo da caminhada de luta antiproibicionista, a gente percebeu que a guerra às drogas atinge as mulheres de uma forma diferente”, comenta uma das participantes da Renfa no Ceará, Érika “Loka”.
Ela explica que as mulheres estão inseridas no centro deste debate mesmo quando ele remete aos mais variados temas, como uso recreativo, medicinal ou religioso. “Quando a gente fala da maconha medicinal, por exemplo, geralmente sãos as mulheres que têm a responsabilidade do cuidado com as crianças, os idosos ou quem quer que fique doente no lar”, conta.
Ela complementa ainda: “A gente também enxerga que as drogas atravessam a vida das mulheres mesmo sem elas sequer serem usuárias, como quando uma mãe vai visitar o seu filho em um presídio porque foi preso com droga; Ou quando vai atrás de um remédio porque o filho precisa de um tratamento que o Estado não garante; ou quando leva o filho para um espaço religioso porque está precisando de uma atenção espiritual.”
Com essa percepção em mente, Érika e diversas outras mulheres espelhadas pelo Brasil entenderam a necessidade de se juntarem com a perspectiva de trabalhar na vida das mulheres. Hoje com quase oito anos de estrada, a Renfa já tem núcleos em 16 estados, os quais atual principalmente com mulheres em situação de encarceramento e familiares de pessoas encarceradas, mães de crianças atípicas, pacientes de maconha medicinal, trabalhadoras do sexo e população de rua. Entre as atividades do movimento está a facilitação de acesso a serviços públicos até o desenvolvimento de atividades que geram renda extra às mulheres atendidas.
“A droga não é só questão de políticas públicas do Estado. Se a cultura, a educação, o acesso à saúde, à comida, à moradia chegassem aos territórios vulnerabilizados, a gente conseguiria ganhar a guerra contra o tráfico”, aponta.
Sendo a droga ilícita mais consumida no Brasil "Em 2015, um levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou a maconha como a droga mais consumida no Brasil. Cerca de 7,7% dos brasileiros, de 12 a 65 anos, já teriam fumado a erva pelo menos uma vez na vida, conforme a instituição." , a maconha está em meio a uma incerteza jurídica. Atualmente, seus usuários não são presos caso estejam portando a droga, porém a legislação também não estabelece critérios objetivos que diferenciam o uso comum do tráfico. Para embasar as discussões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização da maconha, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em 2023, indica para mudanças significativas na quantidade de pessoas encarceradas no Brasil.
Intitulado de "Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas", o levantamento produziu e analisou dados sobre natureza e quantidade de drogas apreendidas nas ações criminais por tráfico no primeiro semestre de 2019. Nele, foram analisadas ações que tiveram decisão terminativa nos tribunais estaduais da Justiça comum, em que tenha havido réu indiciado, denunciado e/ou sentenciado por crimes de tráfico de drogas previstos na Lei.
O estudo observou a predominância de processos relacionados a pequenas quantidades de cannabis, o que caracteriza posse de drogas para uso pessoal caso o Brasil adotasse critérios objetivos de quantidade. No gráfico abaixo, 31% dos casos (8.193) são de pessoas presas por portarem quantidade inferior a 26 gramas de maconha.
Em seu voto favorável pela descriminalização da maconha para uso pessoal, em 2 de agosto de 2023, o ministro Alexandre de Moraes propôs uma metodologia a ser adotada para identificação de traficantes. Para ele, seria classificada como “usuária” aquela pessoa flagrada com quantidades de 25 a 60 gramas ou de seis plantas fêmeas. Sua ideia é evitar que o pequeno porte torne as punições mais duras, além de diminuir o número de presos por tráfico no sistema penal brasileiro.
Esta faixa, entretanto, deve ser tratada de maneira relativa, uma vez que os policiais deverão também utilizar outros parâmetros em suas ações. “O critério deve, caso a caso, ser analisado com base em outros critérios, complementares. Por exemplo, a forma como está condicionado o entorpecente, a diversidade de entorpecentes, a apreensão de outros instrumentos, como balança, cadernos de anotação, locais e a circunstâncias da apreensão”, declarou, atenuando o discurso dizendo que não existirá uma “cartilha” com medidas corretas para tratar a questão.