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Facções x jogo do bicho: atentados, cobrança de lucros e disputas por territórios
Reportagem

Facções x jogo do bicho: atentados, cobrança de lucros e disputas por territórios

Empresa de casas de apostas já registrou mais de 100 BOs por atentados sofridos. Facções não permitem nos territórios que atuem loterias que não estabeleceram acordos com eles. Até suposta milícia teria envolvimento na questão
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Homens de moto passam em frente a uma casa de apostas (Foto: Fotos: Samuel Setubal)
Foto: Fotos: Samuel Setubal Homens de moto passam em frente a uma casa de apostas

Os ataques orquestrados por facções criminosas a casas de apostas continuam no Ceará, apesar das operações policiais deflagradas para coibir a prática. Somente uma das empresas, a Loteria Popular — também conhecida como Paratodos —, já contabiliza mais de 100 boletins de ocorrências (BOs) registrados por conta de roubos, incêndios, atentados à bala e ameaças praticados contra suas bancas desde 2021.

De acordo com investigações da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual (MPCE), as ações ocorreram para impedir o funcionamento de casas de jogos que não estabeleceram pactos com a facção que atua no território.

A operação Saturnália, deflagrada pela Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco) em outubro de 2022, identificou que a facção Comando Vermelho (CV) passou a cobrar 20% dos lucros da Loteria do Povo e da Loteria Gomes. Em contrapartida, bancas concorrentes são proibidas de funcionar onde a facção marca presença.

O acordo, iniciado em setembro de 2021, passou a render, mensalmente, R$ 1 milhão aos cofres do CV, conforme divulgado à época pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS). Posteriormente, outras facções também passaram a se valer do expediente. A operação Saturnália prendeu quatro sócios e dois gerentes das loterias do Povo e Gomes, assim como denunciou integrantes do CV pela prática.

De acordo com a advogada Katarina Landim, representante da Paratodos, a ação policial mitigou os ataques por “cerca de cinco meses”, mas, em seguida, os atentados voltaram. A empresa foi autorizada a funcionar em uma decisão judicial de novembro de 2021 da 2ª Vara da Fazenda Pública do Ceará.

Uma das ações mais recentes ocorreu no dia 1º de setembro, no bairro Messejana, e foi registrada por câmeras de vigilância. As imagens mostram dois homens chegando a um estabelecimento onde funciona um ponto da Loteria, em plena luz do dia, e rendendo um funcionário com uma arma de fogo. Em seguida, os criminosos roubam as maquinetas dos jogos e o montante arrecadado no dia.

Há ainda ações que envolvem o uso de fogo, como O POVO já havia mostrado em outubro de 2021. Na madrugada dessa terça-feira, 26, mais um ponto foi alvo de incêndios, desta vez na avenida Castelo de Castro, na comunidade São Cristóvão, bairro Jangurussu.

A Paratodos já denunciou à Polícia Civil ataques a cambistas em bairros como Carlito Pamplona, Parque São José, Mondubim, Parque Araxá, José Walter, Messejana, Sapiranga, Cristo Redentor, Jacarecanga, Jóquei Clube e Pici. Landim, afirma, porém, que nem todos os crimes são denunciados, pois os cambistas têm medo de sofrer retaliações.

A advogada cita casos em que, em questões de dias, o arrendatário abre e fecha o estabelecimento com medo das ameaças. “Já aconteceu, por exemplo, (do agente lotérico dizer:) ‘Não, mas eu não vou trabalhar para vocês (faccionados) não’. (E eles dizerem:) ‘Vai sim, que você precisa trabalhar’”, diz a advogada. “É muito complicado”.

Além do CV, a rival Guardiões do Estado (GDE) também passou a adotar práticas semelhantes. Durante as investigações da Chacina do Lagamar, que deixou quatro mortos em fevereiro de 2022, a Polícia Civil recebeu denúncia anônima que afirmava que um chefe da facção na região havia instalado uma casa de jogos e proibia que os moradores do bairro fizessem apostas em outros estabelecimentos.

Em uma outra investigação, feita pela Draco, a atuação da GDE no jogo do bicho também apareceu. Antes de ser preso, Francisco Rogério de Sousa Rocha, de 40 anos, acusado de ser o chefe de uma organização criminosa que explorava jogos de azar na Regional V, fez um boletim de ocorrência (BO), em agosto de 2022, denunciando que, no começo daquele ano, um homem identificado apenas como Vidal foi até donos das bancas da região do bairro Conjunto Esperança apresentando-se como integrante da GDE.

Ele, então, teria ameaçado os cambistas de morte caso não dessem 20% de seus lucros à facção. Em agosto daquele ano, prosseguiu Francisco Rogério no BO, as ameaças se intensificaram e criminosos passaram a tomar as máquinas de jogos dos cambistas. No depoimento, o homem disse ter tomado conhecimento de que Vidal já havia matado um dono de uma das bancas que desobedeceram às suas ordens.

Em nota, a Polícia Civil informou que a Draco segue investigando os crimes contra casas de apostas. "Mais detalhes serão repassados em momento oportuno para não comprometer os trabalhos policiais em andamento", informou, em nota.

Jogo do bicho

Conforme o artigo 58 da Lei das Contravenções Penais, texto de 1941, explorar ou realizar o "jogo do bicho" pode render "prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis". "Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro", diz o parágrafo único do texto

 

Jogo do bicho patrocina facções para conseguir monopólio de territórios

A mistura de jogo do bicho com as facções criminosas pode ser um grande complicador na Segurança Pública, já que os dois existem e estão consolidados em todo o País. No Rio de Janeiro, por exemplo, a conexão entre bicheiros e o crime organizado tornou muito mais difícil rastrear os recursos das organizações criminosas. O caminho que os contraventores já conheciam bem para a lavagem de dinheiro foi uma oportunidade a mais para traficantes ficarem milionários sem serem notados.

No Ceará, o jogo do bicho e as facções também já se encontraram e a Operação Saturnália, da Polícia Civil, já demonstrou que alguns grupos estão se retroalimentando. A disputa de territórios pelo tráfico acabou abrindo portas para que os bicheiros também tentassem atuar sem a interferência de concorrentes.

"Existe uma disputa muito forte pela hegemonia dos territórios, porque uma facção sabe quanto a outra ganha nos bairros com tráfico de drogas e também com o jogo do bicho. O jogo do bicho não é propriamente um complicador, é um fato novo junto às investigações do crime organizado aqui no Ceará. É uma fonte de combustível para os criminosos, diferente do tráfico de drogas. Apesar de bem antigo, o jogo do bicho amornou e ressurgiu abraçando tudo isso", afirmou um investigador da Polícia Civil, que preferiu não se identificar.

O policial confirma que não é raro notícias de que facções mandaram fechar bancas, principalmente nos bairros da periferia de Fortaleza. "Isso dá um poderio financeiro para a outra banca que está sendo apoiada pela facção e continua funcionando. Nesse movimento, vão acontecendo os monopólios, que vão se tornando extremamente lucrativos", explica.

O investigador da Polícia Civil ressalta que ainda existe muita gente que "mexe só com jogo do bicho", mas ressalta que também é uma prática ilegal. "É uma contravenção e se a Polícia pegar, vai ser responsabilizado também. Os bicheiros que patrocinam o crime organizado estão muito mais complicados, no caso de serem presos. Eles estão ali em uma troca mútua de favores. A organização criminosa se valendo de um aval financeiro e a facção dando proteção territorial para manter esse monopólio", explica. (Márcia Feitosa)

 

PMs acusados de envolvimento foram denunciados por formação de milícia

Se, conforme a Polícia Civil, por um lado, há casas de apostas buscando aliar-se a facções criminosas para expandir seus negócios, por outro, há aqueles que buscam recrutar agentes de segurança. É o caso da loteria comandada por Francisco Rogério de Sousa Rocha, acusado pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), ao lado de quatro policiais militares, por formação de milícia armada.

Conforme a investigação da Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco), a banca chefiada por Francisco Rogério contava com policiais para fazer a segurança de seus pontos diante dos ataques de facções, mas também para atacar rivais.

O próprio Francisco Rogério explicou, em áudio encontrado em seu celular, como funcionava o esquema. "Eu vou falar o que é: os meninos da segurança pegam o carro, aí vai nos pontos que a gente perdeu, recolhe as máquinas e diz que não é mais para trabalhar para negócio de facção", disse em julho de 2022, conforme a denúncia do MPCE, ofertada em junho último.

Além do envolvimento dos militares, há indicativos de que o grupo planejava aliciar policiais civis para expandir os negócios. "Ei, joguinho bom que só ali na região de Aracoiaba e Baturité. [...] O jogo tá meio que abandonado [...] Será que a gente consegue um contatozinho lá? Um civilzinho de lá da delegaciazinha de lá, não, hein? Pra botar um joguinho lá", diz Francisco Rogério, em um dos áudios.

"E eu tô até falando com um amigo meu aqui que parece que quem manda lá na área lá, tanto no tráfico, quanto na polícia, parece que é um tenente da Polícia. Esse chapa meu ficou de me ajudar pra falar com ele e disse que nos botava lá", responde, por sua vez, José David Honorato Palhano, que é filho de um policial militar e se valia disso, conforme o MPCE, para fazer contatos com agentes de segurança.

Em outro áudio, Rogério aparece pedindo para que um subordinado fale com um PM para lhe dizer que iria, no fim de semana, conversar com ele e com um delegado, "levando uma garrafa de uísque para cada". O objetivo da conversa seria saber como os dois poderiam ajudar Rogério a colocar bancas em Itapipoca, no Vale do Curu, diante do "receio pois os 'caras' da facção o estão colocando para fora".

Haveria ainda o pagamento de propina para agentes de segurança. Foto tirada de um caderno de anotações, encontrada no celular de um dos acusados, indica que a banca efetuou um pagamento de R$ 340 identificado como "Polícia".

Entre os PMs denunciados por formação de milícia está sargento Francisco Amaury da Silva Araújo, preso suspeito de envolvimento no assassinato da advogada Rafaela Vasconcelos de Maria, e da mãe dela, Maria Socorro Vasconcelos de Maria, em Morrinhos (Litoral Norte do Estado).

Ao todo, 11 pessoas foram denunciadas pelo MPCE. Mensagens encontradas nos celulares dos alvos indicaram que eles praticavam crimes como desenvolvimento de organização criminosa e de milícia privada, lavagem de dinheiro, homicídio, porte ilegal de arma de fogo, adulteração de sinal identificador de veículo, ameaça, falsa identidade, entre outros.

Existe a suspeita de que o grupo foi responsável pelo assassinato de Jandlir Carvalho de Melo, em junho de 2022. Ele seria um concorrente do grupo criminoso. Nas conversas em seu celular, Rogério aparece dizendo que queria "apagar" um homem conhecido como Jan. No dia em que Jandlir foi morto, Rogério diz ao subordinado que "um já foi" e orienta a ele que apague as mensagens. O inquérito que investiga a morte de Jandlir segue em aberto, sem indiciados.

 

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