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O papel da tornozeleira eletrônica no combate à violência contra a mulher
Reportagem

O papel da tornozeleira eletrônica no combate à violência contra a mulher

Apesar de ainda ter uso restrito, dispositivo trabalha junto ao georreferenciamento para proteger vítimas. Em quase 10 anos, não foram registradas violências contra pessoas protegidas pela medida
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Úrsula Malveira Goes, psicóloga do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Úrsula Malveira Goes, psicóloga do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher

“Acaba que nós, que somos vítimas, nos tornamos as presas. Porque a gente não tem segurança e começa a ter medo de ir para algum lugar e a pessoa aparecer”, relata a advogada familiarista Conceição Martins, de 40 anos. Vítima de violência doméstica cometida pelo ex-marido, ela precisou solicitar as medidas protetivas para tentar quebrar o ciclo de agressões físicas e psicológicas que vivenciou ao longo de 12 anos de relacionamento. O agressor utilizou a tornozeleira eletrônica por seis meses.

O monitoramento domiciliar para tornozelados como mecanismo de proteção à mulher vítima de violência foi instituído no Ceará em 2014, em aditivo às medidas protetivas que já constam na Lei Maria da Penha. Para funcionar, o instrumento jurídico é distribuído em três partes: a tornozeleira eletrônica para o agressor, o dispositivo georreferenciado para a vítima e a central de vigilância em tempo real.

Similar a um celular, o aparelho informa à mulher vítima de agressão se o perímetro está seguro, assim, evitando o contato dela com o agressor. O Ceará foi um dos precursores no assunto georreferenciamento no País. Segundo a defensora geral do Estado, Elizabeth Chagas, a ideia de oferecer um aparelho para as mulheres surgiu em um sonho.

“A princípio, a ideia era que não fosse algo pesado, mas que ela (a mulher) pudesse usar como se fosse um celular, e, aliado a isso, tivesse a tornozeleira do homem e uma central de monitoramento dentro da Secretaria da Justiça (Sejus)”, esclarece Chagas.

Apesar do impacto na vida das vítimas, o uso dos dispositivos ainda é restrito. Conforme dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), até o último dia 27 de setembro, o Ceará conta com 314 agressores e 236 vítimas sendo monitorados ao vivo em cumprimento à Lei Maria da Penha.

Até o final de agosto, foram registradas 15.900 vítimas do gênero feminino pela Lei Maria da Penha no Estado — alta de 28% em comparação com o mesmo período do ano passado, quando haviam 12.380 registros. No mesmo período, houve ainda 32 feminicídios, três a mais do que todo 2022. Todos os dados são da Superintendência de Estratégia em Segurança Pública (Supesp), da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS).

Conceição Martins(Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Conceição Martins

A advogada Conceição Martins, que fez uso do dispositivo georreferenciado, conta que conheceu o ex-companheiro enquanto ela cursava Direito. À época, os indícios de agressividade não eram tão aparentes e vinham à tona apenas em pequenas discussões casuais — geralmente com um tom de voz mais alto — quando o “álcool subia à cabeça”.

Todas as vezes que ele a maltratava, em sequência, mostrava arrependimento, pedia desculpas para ela e fazia promessas de não repetir as violências.

Por parte dos familiares e amigos, a advogada era aconselhada a não terminar o relacionamento, nem a denunciá-lo, considerando a influência social e financeira do marido. Mas não demorou para que as situações de violência fossem retomadas, e um ciclo contínuo de abusos e desculpas fosse iniciado.

“A violência doméstica nunca começa com a agressão, ela tem passos: inicia com a violência verbal, com algum insulto ou fala em tom de voz mais alto; passa para algo mais comportamental, com uma tentativa de afastamento da vítima de seus familiares e amigos; vai para a questão financeira, fazendo com que a mulher seja dependente do agressor; e só então vem o primeiro empurrão, o primeiro tapa”, detalha Conceição.

O ápice veio como tentativa de feminicídio. Alcoolizado, o agressor tentou sufocá-la com o cabo de um carregador. Então, ela decidiu que era a hora de tentar escapar e reunir forças para pedir o divórcio. Juntou economias para sair de Fortaleza, denunciou o ex e solicitou as medidas protetivas.

Dispositivo usado pela vítima como medida protetiva que inclui a tornozeleira usada pelo agressor e o monitoramento em tempo real(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Dispositivo usado pela vítima como medida protetiva que inclui a tornozeleira usada pelo agressor e o monitoramento em tempo real

A titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Fortaleza, juíza Rosa Mendonça, explica que as medidas protetivas — providências garantidas por lei às vítimas de violência doméstica — têm a finalidade de garantir a proteção da mulher e dos familiares dela.

“A mulher faz o pedido da medida protetiva na delegacia. Ele é encaminhado para a Justiça, que terá 48 horas para decidir pela aplicação (ou não). Em Fortaleza, sendo concedida a medida, a vítima será intimada por WhatsApp ou por ligação telefônica, bem como o agressor. Caso alguma das partes envolvidas não tenha celular, eles são intimados via oficial de Justiça”, explica.

"Agradeço muito à tornozeleira, acho que foram os únicos seis meses desde 2010, quando comecei a me relacionar com ele (o ex-marido), que pude ter um pouco de paz e de segurança" Conceição Martins, advogada

No caso da advogada Conceição, mesmo com a aplicação prévia das medidas protetivas, as perseguições continuavam via redes sociais e quando os dois frequentavam os mesmos espaços. Foi então que a juíza determinou o uso da tornozeleira eletrônica para o marido.

“Agradeço muito à tornozeleira, acho que foram os únicos seis meses desde 2010, quando comecei a me relacionar com ele (o ex-marido), que pude ter um pouco de paz e de segurança. Se eu pudesse passar o resto da vida com o dispositivo, nem que tivesse que pagar, preferiria continuar”, declara.

O marido foi condenado por dois processos de descumprimento das medidas protetivas, mas a ação por lesão corporal continua em andamento desde 2018.


 

Aplicabilidade da tornozeleira eletrônica

Conforme a titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Ceará, Anna Kelly Nantua, o tornozelamento do agressor é realizado em situações de descumprimento das medidas protetivas, ou quando ocorre a prisão em flagrante.

“Em caso de flagrante, o juiz realiza a audiência de custódia do preso, colocando-o em liberdade, mas aplica medidas cautelares diferentes da prisão. Dentre elas, é possível a aplicação do tornozelamento eletrônico junto às medidas protetivas”, pontua Anna Kelly.

O Nudem atua na solicitação de medidas protetivas, atendimento judicial e extrajudicial, psicossocial e em todas as demandas que envolvem o rompimento deste ciclo de agressões. No primeiro semestre deste ano, o Núcleo contabilizou 5.239 atendimentos a mulheres vítimas de violência. Durante todo o ano de 2022, foram totalizados 8.284.

Anna Kelly Nantua, titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Anna Kelly Nantua, titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Ceará

De acordo com levantamento da Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), foram realizadas capturas de 707 pessoas suspeitas de descumprir medidas protetivas de urgência contra mulheres em todo o Estado nos primeiros oito meses deste ano. Quando comparado ao mesmo período do ano passado, quando foram 513 capturas, houve aumento de 37,8% no aumento de prisões.

Sobre as prisões em flagrante, no primeiro semestre de 2023, foram registradas 209 por descumprimento de medidas protetivas. O número já é maior que o registrado em todo o ano passado, quando 130 suspeitos foram flagranteados, conforme a pasta.

Medidas protetivas concedidas pelo Judiciário nos últimos três anos em todo o Ceará

Entretanto, o coordenador administrativo e jurídico da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), Luthiane Quezado, ressalta que, ao longo dos últimos nove anos, não foram registradas ocorrências de violência física ou psicológica usando o dispositivo. Ele afirma que são raras as ocasiões de descumprimento.

Em 2024, o equipamento celebra 10 anos em vigor no Ceará. Conforme Quezado, a medida cautelar também reduz os índices de encarceramento, o que torna, portanto, o custo mais barato, haja vista que o preço para manter um detento gira em torno de R$2.500 por mês, enquanto a tornozeleira custa R$250 mensais — o que representa 10% do valor.

Monitoramento em tempo real reforça as medidas protetivas da tornozeleira eletrônica e georreferenciamento. Na imagem, a sede da Central de Monitoramento (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Monitoramento em tempo real reforça as medidas protetivas da tornozeleira eletrônica e georreferenciamento. Na imagem, a sede da Central de Monitoramento

“Já pegamos um caso, às três horas da manhã, em que o agressor estava próximo à casa da vítima. Ele não tinha área de exclusão, mas precisava manter um perímetro de 100 metros de distância (da vítima). Quando ele ultrapassou, o alerta foi disparado, e a Ciops foi ao local. Ele já tinha a intenção (de agredir), sabia que a vítima era feirante e saía de madrugada para trabalhar. Foi o caso mais próximo em que o agressor chegou da mulher”, conta.

A juíza Rosa Mendonça salienta que o monitoramento eletrônico é um método eficaz para a reabilitação do agressor à sociedade, uma vez que ele sai da prisão com a tornozeleira e passa a ser acompanhado 24 horas por dia para evitar que haja contato com a vítima. Porém, ela aponta que o tornozelamento é uma medida grave e, por isso, é importante não banalizar o uso.

“A gente aplica o monitoramento quando vê, realmente, a necessidade de uma medida grave. Até porque a maioria dos envolvidos em Lei Maria da Penha não têm antecedentes criminais. É uma medida muito grandiosa”, comenta.

 

 

As múltiplas faces da violência contra a mulher

A psicóloga Úrsula Malveira Goes, do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Ceará, na Casa da Mulher Brasileira, evidencia que, em determinados casos, o homem pode ser “um filho da violência”.

Isto porque, muitas vezes, o homem também vivenciou abusos dentro do próprio lar e desconhece outra realidade que não seja esta — "o que não significa que tenha o direito de subjugar a parceira", ressalta. Para ela, é importante lembrar que “a violência doméstica é democrática, infelizmente. Não há um perfil específico, ela não tem rosto”.

Com as impressões das conversas com o ex-namorado, Madalena * Os nomes utilizados na reportagem são fictícios para preservar a identidade das vítimas , 26, chegou ao Nudem para registrar a ocorrência e solicitar as medidas protetivas de urgência. O ex-namorado, que ela conheceu na faculdade, a agrediu física e verbalmente.

Traições, constrangimentos e ameaças se tornaram rotina dentro do relacionamento. Ela terminou com ele e saiu da casa onde moravam, mas as perseguições continuaram. Vídeos íntimos dela foram vazados em sites de conteúdo adulto e difundidos nas redes sociais — crime previsto na Lei Rose Leonel Criminaliza a divulgação de imagens íntimas de mulheres, prática que também é conhecida com revenge porn (pornografia de vingança)  (n°13.772/2018), do Código Penal Brasileiro. A punição pode ser de seis meses a um ano de reclusão.

“Tomei coragem para denunciá-lo porque fiquei com medo de envergonhar a minha família. Quero justiça, a prisão dele, e que eu seja indenizada pelo que ele fez comigo, por ter exposto a minha imagem e ter me constrangido publicamente”, traduz.

Úrsula ainda revela que, quando a vítima de violência doméstica chega ao local de atendimento, o intuito é se livrar de tudo que a faz mal e retomar a vida. “O que caracteriza a violência doméstica são os sentimentos de medo e culpa. Pois, ao viver na subserviência de agradar o outro, acabamos esquecendo quem somos”, traduz.

Casa da Mulher Brasileira, um dos espaços onde mulheres podem pedir ajuda contra a violência de gênero(Foto: Ariel Gomes/Governo do Estado)
Foto: Ariel Gomes/Governo do Estado Casa da Mulher Brasileira, um dos espaços onde mulheres podem pedir ajuda contra a violência de gênero

Antônia * Os nomes utilizados na reportagem são fictícios para preservar a identidade das vítimas , 57, foi vítima da violência doméstica pelo próprio filho, de 35 anos. O agravante seria, assim como a vivência de Conceição, o consumo de bebidas alcoólicas. No episódio de violência mais recente, ele arremessou uma garrafa de vidro contra Antônia — que sofre com problemas cardíacos — enquanto a ameaçava de morte.

“Ele é uma pessoa ótima. Está trabalhando. Mas quando os amigos chamam para beber, parece que vira a cabeça dele. Ele pegou uma garrafa de vidro para jogar em mim e eu me agarrei nele, pedindo: ‘Meu filho, não faça isso’”, lembra.

A pedido dela, ele foi preso em cumprimento à Lei Maria da Penha. No entanto, dias depois do ocorrido, ela compareceu ao juizado para retirar a queixa e solicitar o cancelamento da medida protetiva, com a justificativa de não querer deixá-lo sozinho.

“Nenhuma mãe quer ver o filho atrás das grades. Ele faz isso quando bebe, mas não é má pessoa. Quero poder olhar no rosto dele e conversar para que ele entenda que isso não se faz. Sei que ele vai melhorar”, diz.

Números da violência contra a mulher nos últimos 5 anos(*)

 

 

>> Entrevista Elizabeth Chagas

Defensora geral fala sobre criação do dispositivo georreferenciado no Ceará

Questionadora desde pequena, a atual defensora pública geral do Estado, Elizabeth Chagas foi uma das precursoras no desenvolvimento do dispositivo georreferenciado conectado à tornozeleira eletrônica no Ceará. Ideia que, segundo ela, nasceu de um sonho.

Natural de Mamanguape, na Paraíba, ela atua como defensora pública desde 2006, sempre com o viés de garantir a proteção e o direito das mulheres. Pela primeira vez à imprensa, ela revela ao O POVO detalhes da situação de violência vivenciada da forma mais brutal pela própria irmã, vítima de feminicídio aos 19 anos pelo namorado.

O episódio fez com que a “menina dos porquês”, como se denomina, levasse a causa como uma missão vitalícia, para que nenhuma outra mulher precise passar pelas consequências letais do machismo estrutural presente na sociedade.

Defensora Geral, Elizabeth Chagas, defende que a tecnologia precisa evoluir para garantir mais proteção(Foto: FERNANDA BARROS/ O POVO)
Foto: FERNANDA BARROS/ O POVO Defensora Geral, Elizabeth Chagas, defende que a tecnologia precisa evoluir para garantir mais proteção

O POVO - A senhora foi uma das precursoras do uso da tornozeleira no Estado. Gostaria que detalhasse esta trajetória como defensora aliada a esta ideia.

Elizabeth Chagas - Eu trabalhei no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) durante oito anos e uma das grandes preocupações que nós tínhamos era a efetividade da medida protetiva. Muitas vezes, a mulher ficava com uma folha de orientações no caso de descumprimento da eventual medida protetiva. Em uma noite, enquanto dormia, tive a ideia de não só aplicar a tornozeleira para o homem, mas também o aparelho para as mulheres, de um modo que um se comunicasse com o outro. Até 2014, isso não existia no Brasil.

Marcamos uma reunião para poder tratar sobre isso e a Secretaria de Justiça (Sejus) comprou a ideia. Para mim, parecia inimaginável. Por que, afinal, onde é que vai arrumar um aparelho que se comunica com todas as tornozeleiras eletrônicas? A secretária de pasta, Mariana Lobo, descobriu que, nos Estados Unidos, existia um dispositivo que se comunicava com a tornozeleira, mas não era aplicado para Lei Maria da Penha ou para o enfrentamento à violência contra a mulher.

Conseguimos trazer o aparelho para o Brasil. A princípio, a ideia era que não fosse algo pesado, mas que ela (a mulher) pudesse usar como se fosse um celular, e, aliado a isso, tivesse a tornozeleira do homem e uma central de monitoramento dentro da Sejus.

O POVO - Como o dispositivo da vítima funcionava quando foi implementado aqui no Ceará?

Elizabeth - Na época, (a distância) era de 500 metros, e a mulher recebia um alerta: “ele está se aproximando, se afaste”. Se ele não se afastasse, a Polícia era acionada, e eles iam atrás para efetuar a prisão. Tudo para que as mulheres tivessem segurança, confiassem na efetividade da Lei Maria da Penha e na proteção das medidas protetivas. Essa é uma das três melhores leis instauradas no mundo, mas precisa ser tirada do papel, então, para isso, a gente também pensou no projeto Mulher Sem Medo.

Foi um projeto criado para que a vítima tivesse mais um instrumento, junto a todos os outros que já existem, e que, somado aos demais, conseguisse dar efetividade à medida protetiva. Assim, ela conseguiria se sentir segura e passar a não ter esse medo de exercer seu trabalho, brincar com suas crianças e poder se locomover tranquilamente.

O POVO - A senhora, desde o começo, está acompanhando a evolução deste dispositivo. Percebeu mudanças desde a sua criação? Acredita que possa aperfeiçoar algo nele?

Elizabeth - A tecnologia precisa evoluir, tem que ter um formato de tornozeleira em que o agressor não consiga tirar e não vá agredir a mulher. A gente vê que no Estado do Ceará estão acontecendo muitos feminicídios, ainda que os homicídios tenham diminuído. E a gente viu que, na pandemia, aumentaram os números de violência doméstica. Porque, durante este período, as pessoas precisavam, obrigatoriamente, conviver ali dentro de casa, e não podiam pedir ajuda.

Mas onde? E para quem? Se é justamente na hora que essas mulheres levam os filhos para o colégio, ou que o marido vai trabalhar, ou na hora que elas vão trabalhar, que elas pedem socorro. Não é apenas escrever um símbolo na mão. E nem todas elas têm um computador, ou um celular, para poder pedir ajuda.

"A violência contra a mulher é uma ofensa aos direitos humanos extremamente grave, porque ela vai gerar uma pandemia invisível para a sociedade, que só começa a aparecer quando surgem os casos de feminicídios e as mulheres fisicamente violentadas"

O POVO - Quanto ao número de usuários da tornozeleira eletrônica no Ceará, o que se pode considerar?

Elizabeth - Acho pouco ainda o número de tornozeleiras utilizadas no Estado, deveriam ser deferidas mais, porque é até mais barato que a prisão. Temos cerca de 200 dispositivos sendo utilizados atualmente. O tempo estipulado para o uso deve ser enquanto perdurar a ameaça (de violência). Até cessar. E a gente quer que ela cesse de uma forma segura.

O POVO - O sentimento de medo, quando acaba a medida protetiva, é novamente presente?

Elizabeth - A violência contra a mulher é uma ofensa aos direitos humanos extremamente grave, porque ela vai gerar uma pandemia invisível para a sociedade, que só começa a aparecer quando surgem os casos de feminicídios e as mulheres fisicamente violentadas. Mas a violência não é só física.

Eu atendi mulheres, por exemplo, em situações bem estarrecedoras, onde o marido levava a amante para casa, fazia relações com a amante e pedia para a esposa olhar para aprender como fazia. Imagina a cabeça de uma mulher dessas. Atendi, também, maridos que ministravam remédios para as mulheres, para elas ficarem um pouco mais alteradas na frente de outras pessoas.

Então, não é só a violência física que deixa marcas, mas as que também ficam na alma, dentro de cada pessoa. E essas marcas se alastram por toda sociedade. Não tem como falar de uma sociedade saudável enquanto houverem violências como estas.

O POVO - Elizabeth, pesquisando mais sobre este tema, em alguns discursos, a senhora disse que já vivenciou um caso de violência contra a mulher na sua família. Isso te motivou a trabalhar com isso durante a sua carreira?

Elizabeth - Tinha uma irmã. À época, eu tinha 20 e ela 19 anos, e ela foi vítima de um namorado. Foi um tiro no nariz. Um feminicídio, mas na época este nome sequer existia. Ele pegou 14 anos e 6 meses, e até hoje está foragido.

Quando falo que isso muda toda a família, é porque muda mesmo. A vida de mais ninguém será igual depois de sofrer uma violência como esta. E fica ainda mais claro quando você vê uma consequência mais próxima de você, como a vida da minha irmã.

E sim, (a morte dela) tem alguma influência, mas posso lhe dizer que, desde criança, eu tenho um estranhamento com relação às questões pré-moldadas que me são colocadas. Eu ficava brigando para não me inferiorizar. E eu sempre questionava o motivo disso. Era a menina dos porquês.

O sonho dela (da irmã) era ser uma professora de colégio, trabalhar com crianças. Se você falasse de vida, você estava falando sobre ela. É uma perda que marca todo mundo, que durante muitos anos eu não falei, principalmente quando estava no Nudem, porque achava que iriam valorizar menos o meu trabalho se eu dissesse que tinha acontecido algo na minha família.

"Eu gostaria que nenhuma mulher morresse mais, e que nenhuma família passasse pelo que a minha passou"

Hoje falo porque entendo que isto não desvaloriza meu trabalho, mas faz parte de quem eu sou. Isso faz parte da minha vida. Eu sou todas essas coisas, sou tudo o que aconteceu comigo, na família do meu pai, e da minha mãe, tudo isso influenciou a ser quem eu sou hoje. E travar essas lutas também. Nasci com esta inquietação. Quando eu era criança, a fatia de carne era maior para os homens.

Eu dizia: “Oxe, por que é maior para os meninos?”. Me lembro de pegar um tamborete, botar para pegar a carne e comer às 11 horas. Eu não estava com fome, mas eu queria dizer que comi o pedaço maior.

Me lembro do meu tio dizer: “Ah, vou passear ali”. E completava: “Mas são coisas de homem”, ele ia comprar um passarinho. Era um costume. Eu dizia: “Mas eu quero ir também”, e ele respondia: “Mas você não vai”. Eu ficava brigando para não me inferiorizar. E eu sempre questionava o motivo disso. Era a menina dos porquês, ele dizia: “Porque você é mulher”, eu dizia: “Mas você tem braço e perna igual a mim”. Sempre fui de afrontar, neste sentido, porque eu nunca aceitei que as coisas fossem feitas sem serem explicadas.

Essa é minha causa de vida: eu gostaria que nenhuma mulher morresse mais, e que nenhuma família passasse pelo que a minha passou.

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